Primeiro, dizer que gosto muito do filme aqui da fotografia, Sunset Boulevard, em português Crepúsculo dos Deuses (este título até está giro), que acho assombroso. A Norma Desmond, personagem do filme, interpretada por Gloria Swanson, também ela uma diva envelhecida e démodé na vida real, é uma velha actriz cujos dias de glória já passaram, só que ela ainda não sabe, e vive fechada em casa, nos seus delírios de outrora, convencida que o mundo ainda a adora e aguarda ansiosamente o seu próximo, e sempre adiado, e consequentemente inexistente, filme. A Norma Desmond vive, apenas e só, na sua cabeça, completamente alheada do mundo exterior, num castelo de ilusões que a sua imaginação,e a devoção do seu fiel mordomo, alimenta. E, por isso, fez-me lembrar esta frase de Famous Blue Raincoat, de Leonard Cohen, "I hear that you're building your little house deep in the desert, you're living for nothing now, la, la, la". É isto que a solitária e abandonada Norma Desmond faz - constrói a sua casa no deserto, em completo isolamento. Ela não é muito diferente de todas as pessoas solitárias, apenas leva a solidão ao extremo, a preparar-se para o seu eterno close-up, uma última vez, frente às câmaras de Cecil B. deMille. É um filme maravilhoso, este, com excertos de filmes mudos protagonizados pela própria Gloria Swanson nos tempos de celebridade. É também neste filme que esta última pronuncia aquele famoso ditado sobre o cinema moderno - "agora têm vozes; nós, naquela altura, não, só tínhamos a cara. Já não há caras no cinema, excepto talvez a de Garbo". Realmente, Garbo tinha uma grande cara. Garbosa e tudo (não resisti à piada seca, peço desculpa).
Também gosto muito de Leonard Cohen. Adoro-o, para ser mais precisa, e infelizmente, por estar, na altura, longe de Lisboa fisicamente, embora presente em espírito, perdi o seu concerto na urbe, e agora tenho de me habituar à ideia de que, com a idade do senhor, nunca o irei ver ao vivo. É tristíssimo. O que me leva ao segundo propósito deste post. A lindíssima canção Famous Blue Raincoat, para mim, pura e simplesmente, a canção perfeita, é sobre quê? Sempre pensei, e a cada audição vou confirmando a minha conjectura, que a história reza assim: o Leonard tinha um amigo que se meteu com a mulher dele (and you treated my woman to a flake of your life, and when she came back she was nobody's wife), e para seu descomunal azar, este grande amigo era Corto Maltese (well, I see you there with the rose in your teeth; one more thin gipsy thief - a mãe de Corto era uma cigana de Gibraltar; Corto é meio cigano, também); o amigo foi-se embora, porque é um solitário, um lobo das estepes, não lhe interessa estar com ninguém (you're living for nothing now, aí está), mas fez a esposa do Leonard feliz por uns tempos, porque, precisamente, era o Corto Maltese (thank you for the trouble you took from her eyes, etc), de tal forma que, ao pé dele, o próprio Leonard, poeta magnífico e perfeito, sente-se meio aburguesado; isto passa-se, e o Leonard percebe que ele nunca poderá fazer a sua mulher feliz, agora que ela conheceu o indomável Corto, e escreve ao amigo (a canção, como percebemos, é uma carta . sincerely, L. Cohen) a dizer-lhe que se vai divorciar (your enemy is sleeping and this woman is free) e que ele pode voltar à vontade (what can I tell you, my brother, my killer, I guess that I miss you, I guess I forgive you, I'm glad you stood in my way). O próprio Leonard tem muitas saudades do seu grande amigo Corto e perdoa-lhe o facto de se ter enrolado com a sua mulher Jane. Esta última, depois da partida de Corto, decidira permanecer com Leonard (I see Jane's awake, she sends her regards - ela ainda vive com Leonard à altura em que este escreve a carta), mas agora que o marido percebeu que o casamento não está a resultar, e com o regresso iminente de Corto, quem sabe?! Narrativa aberta.
Consegui tornar a canção perfeita que Famous Blue Raincoat é numa telenovela. Sou um monstro.
Aceitam-se outras interpretações.
Antes de terminar, queria só reiterar que Famous Blue Raincoat é a canção perfeita.
Famous Blue RaincoatIt's four in the morning, the end of December
I'm writing you now just to see if you're better
New York is cold, but I like where I'm living
There's music on Clinton Street all through the evening.
I hear that you're building your little house deep in the desert
You're living for nothing now, I hope you're keeping some kind of record.
Yes, and Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear
Did you ever go clear?
Ah, the last time we saw you you looked so much older
Your famous blue raincoat was torn at the shoulder
You'd been to the station to meet every train
And you came home without Lili Marlene
And you treated my woman to a flake of your life
And when she came back she was nobody's wife.
Well I see you there with the rose in your teeth
One more thin gypsy thief
Well I see Jane's awake --
She sends her regards.
And what can I tell you my brother, my killer
What can I possibly say?
I guess that I miss you, I guess I forgive you
I'm glad you stood in my way.
If you ever come by here, for Jane or for me
Your enemy is sleeping, and his woman is free.
Yes, and thanks, for the trouble you took from her eyes
I thought it was there for good so I never tried.
And Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear
Sincerely, L. Cohen
I'm writing you now just to see if you're better
New York is cold, but I like where I'm living
There's music on Clinton Street all through the evening.
I hear that you're building your little house deep in the desert
You're living for nothing now, I hope you're keeping some kind of record.
Yes, and Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear
Did you ever go clear?
Ah, the last time we saw you you looked so much older
Your famous blue raincoat was torn at the shoulder
You'd been to the station to meet every train
And you came home without Lili Marlene
And you treated my woman to a flake of your life
And when she came back she was nobody's wife.
Well I see you there with the rose in your teeth
One more thin gypsy thief
Well I see Jane's awake --
She sends her regards.
And what can I tell you my brother, my killer
What can I possibly say?
I guess that I miss you, I guess I forgive you
I'm glad you stood in my way.
If you ever come by here, for Jane or for me
Your enemy is sleeping, and his woman is free.
Yes, and thanks, for the trouble you took from her eyes
I thought it was there for good so I never tried.
And Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear
Sincerely, L. Cohen
3 comentários:
Do que gostei mesmo em O Crepúsculo dos Deuses foi de Erich von Stroheim executando no órgão a Tocata e Fuga em Ré menor, de Bach, enquanto Gloria Swanson explica a William Holden que o lindo tecto do salão foi todo feito em Portugal.
Mais à frente ela irá matá-lo, eu sei, mas não por causa disso.
(Esta piadola plagia em parte um poste que eu mesmo escrevi há mais de dois anos, mas em tratando-se do mesmo autor penso que existem circunstâncias atenuantes.)
Pois é, o tecto vem de Portugal, esse país de Terceiro Mundo cuja geografia, com certeza, a Gloria Swanson, william Holden e até o próprio Billy Wilder com certeza desconheciam.
Auto-plágio não me parece crime grave, ainda por cima se se repete uma piada. Quando algo tem graça uma vez, tem sempre graça, acho eu, embora muitos discordem disto, talvez. :)
Engraçada, Rita, essa análise Famous Blue Raincoat. Só discordo da ideia de que o casamento falhou. Parece-me que a Jane está livre porque se libertou do que a perturbava, que não sabemos ao certo o que era, nem o Len sabe, mas continuam juntos.
O que o Len faz é abrir a porta a um regresso do Corto, embora eu suspeite que este não regressará.
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