segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Different Class

Olha, afinal vou escrever mais qualquer coisa sobre Oscars e filmes, sim.
Sou uma pessoa que vive numa cidade onde se tem pouco contacto com multiplicidade étnica, pelo menos se compararmos com um sítio como Londres, por exemplo. Isso faz de mim alguém que, por mais que tente, é sempre um bocado entupida no que diz respeito a questões de variedade étnica e assim. No entanto, até eu noto certos exageros que irritam um tanto ou quanto, e entre esses exageros contam-se certos filmes que não pecam necessariamente por pouco multiculturalismo - pecam fundamentalmente por uma hegemonia notória ao nível de estilos de vida ou classe social. Não estamos apenas a falar de filmes exclusivamente compostos por actores brancos, destinados provavelmente a um público branco; estamos a falar de filmes compostos por actores não só brancos, como também lourinhos, de olhos claros, anglo-protestantes, os típicos "wasps" de alta burguesia. Consigo lembrar-me de dois exemplos flagrantes - aquela comédia com a Meryl Streep e o Alec Baldwin do ano passado, It's Complicated, em que toda a gente é tão flagrantemente branquinha e endinheirada que nos entra olhos adentro; curiosamente, a única morenaça deste filme, com um ar mais exótico e mais "estrangeiro", é a boazona que roubou o marido à Meryl Streep. Super-giro, este pormenor.
O outro exemplo de que me lembro é o recente The Kids Are All Right, que entretém, mas que também é tão polidinho, tão burguesinho, que é impossível não reparar nisto. Pode ser um filme sobre lésbicas, mas não faz dele um filme especialmente interessante ou original. Talvez a ideia seja mesmo essa - demonstrar como um casal gay pode ser tão desinteressante, convencional e instalado como  qualquer outro casal heterossexual, branco, classe média alta. É o único substracto sociológico que eu estou mais ou menos a identificar, porque de outra forma o filme não tem grande graça. Há alguns pormenores neste filme que são tão indelevelmente marcados pelo factor "classe" que, mais uma vez, somos obrigados a reparar neles - o facto de Julianne Moore , a certa altura, despedir um pobre jardineiro mexicano, velhote e simpático, sem motivo nenhum, e isto ser apresentado como uma coisa normal; a mesma Julianne Moore, a certa altura, usa uma Tshirt que diz "Licée Français Los Angeles". Uma pessoa só se pode rir com isto - no caso de haver dúvidas, o cliché ficou esclarecidíssimo. Mas, como digo, é possível que isto tenha sido tudo feito de propósito, e que o filme seja precisamente uma inteira paródia a um certo estilo de vida que, à partida, é considerado "alternativo", mas que na verdade não é. Não sei, a minha vã filosofia não alcança.
Num artigo muito interessante que se lê aqui, discute-se o facto de, no cinema americano, as questões de classe serem hoje em dia o que antigamente eram as questões de raça. Muito possivelmente, isto faz sentido. Estranhamente, a sensação que às vezes tenho é que podemos progredir muitíssimo ao nível de  liberdade, igualdade, fraternidade para que, como se diz num outro grande filme, tudo fique na mesma. É pena, mas eu devo estar errada, e espero bem que sim.

O que não tenho a dizer sobre os Oscars

Não vou falar sobre os Oscars porque não tenho paciência para comentar os filmes nomeados, quase todos uma seca.
Queria que os Coen ganhassem tudo e não ganharam nada. Eu, se fosse a eles, nunca mais punha lá os pés, como o Woody Allen, que tem mais que fazer.
Houve nomeações que não percebi de forma nenhuma, como por exemplo nomear o que quer que se relacionasse com um filmeco estilo "The Kids are All Right" ou o Inception por qualquer outra coisa que não se relacionasse com prémios técnicos. Também não percebo bem como é que a cinematografia de um filme com tanto efeito especial pode bem, bem ser avaliada e acabar por ganhar Oscar (refiro-me novamente a Inception).
Não vi o King's Speech; acredito que seja bonzinho. 
Não tenho nada a dizer dos vestidos e da moda, quase tudo feio. 
E enfim, em geral foi uma desilusãozita, uma coisa fraquinha, tal como no ano passado, mas desta vez foi pior porque o James Franco pode ser muito giro e muito bom actor, e eu até acho que é, mas não lhe custava nada ter feito uma forcinha e ter tirado o ar de enjoado que fez enquanto apresentou a cerimónia. Até tive pena da outra, a gritar e a destilar sorrisos por todo lado, para tentar compensar a tromba anódina do James. 
Que seca.
E pronto, isto é o que eu não tenho a dizer sobre os Oscars, porque o que tenho a dizer não é nada.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

15 minutos de arte na parede

Pronto, já vi o filme do Banksy, Exit Through the Gift Shop. É giro, mas não aquilo de que eu estava à espera: ao invés de um comentário mais ou menos profundo sobre arte de rua, é um comentário mais ou menos profundo sobre a arte como um negócio. O homenzinho que teve a ideia de fazer o filme é um indivíduo francês, emigrado nos EUA, que se começou a interessar pelo grafitti, sem no entanto ter conseguido a inteligência suficiente para editar o material que recolhia e transformá-lo num verdadeiro documentário - isso só aconteceu porque Banksy decidiu intervir. No entanto, o que o tal homenzinho francês (cujo nome artístico é Mr Brainwash) conseguiu fazer foi produzir uma série de peças "de arte", assim muito pop culture e influenciadas pela arte de rua e tal, organizar uma enorme exposição e, porque conhecia o Banksy e foi ganhando alguma notoriedade à custa disso, atrair a atenção dos media. Resultado: no dia em que abriu a exposição, o tal Mr Brainwash tinha umas 2000 pessoas a fazer fila à porta, não pela qualidade da arte que se exibia, mas sim porque os jornais e a TV o tinham entrevistado e criado uma espécie de "hype" à volta de um homenzinho que era amigo do Banksy.
O que é quase triste é constatar os comentários das pessoas que foram ver a tal exposição - ah, que interessante, ah, que giro, ah, eu só cá vim porque vi no LA Times e estou a adorar, acho que este artista tem algo a dizer sobre a cultura dos nossos dias, e etc. e tal. É dolorosamente óbvio que a última coisa que o homenzinho francês tem a dizer é "algo sobre a cultura dos nossos dias", aliás, é dolorosamente óbvio que ele tem muito pouco a dizer sobre o que quer que seja - é um tipo pouco esperto, que gosta de filmar umas coisas, é tudo.
De modo que a conclusão que eu retirei deste interessante documentário é que é muito fácil enganar o povo - umas notícias no jornal, umas reportagens acertadas no programa de TV alternativo e da moda, ou no blogue certo, e qualquer zé-ninguém se põe a vender "arte" como se não houvesse amanhã. De facto, o Andy Warhol tinha toda a razão - como qualquer outro negócio, o que a arte precisa é da promoção certa e da cultura da celebridade. E se é ou não arte, não interessa assim tanto. Como qualquer outra coisa, é "vendável", como se diz agora. 
E, na verdade, esta questão não é nova, como o velho exemplo de Camilo Castelo Branco demonstra - porque tinha de ganhar dinheiro, escrevia noveletas. Isto diminui a grandeza de Camilo? Será que o Amor de Perdição ou o Calisto Elói são menos arte porque o seu autor teve de passar algum tempo a comprometer o seu talento para ganhar dinheiro? Não me parece. Toda a gente tem renda para pagar e é mesmo assim. Convém é que, em algum momento, o artista que é o verdadeiro artista consiga fazer alguma coisa de jeito, fora dos limites do dinheiro e do tempo, como o Serafim Saudade, por exemplo. Isso é só para alguns, mas vai acontecendo. Felizmente para todos nós.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Acabo de assistir a um magnífico exemplo de excelsa opinião por parte de dois comentadores na SicNotícias, Maria de Belém de um lado, e um indivíduo do PSD que agora não me lembro do nome, mas é que não me lembro mesmo; o que interessa é que este indivíduo, que comenta as escutas do Face Oculta, diz que "estranha esta ânsia de matar uma Inês que não está em Alcobaça, está viva, porque as escutas existem e continuam a existir" , ao que Maria Belém replica "mas olhe que a Inês quando morreu não estava em Alcobaça, estava na Quinta das Lágrimas", respondendo logo o outro, "mas foi para Alcobaça depois, como sabe", "jazente", retorte a outra, "jacente, sim", diz-lhe ele, e ficam ali a discutir a problemática da jazente e/ou jacente Inês de Castro em Alcobaça e/ou Coimbra. O do PSD remata que gosta "de os ver os dois juntos em Alcobaça". 
A Inês, diz que é as escutas. D. Pedro não sei o que é. Alcobaça e a Quinta das Lágrimas também não, mas começo a calcular.
Que comédia de enganos tão gira. Gosto muito de ver televisão e as notícias, é sempre tão divertido.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Nada temos a declarar senão o nosso génio

O ser humano é uma máquina de linguagem impecável. Passamos a nossa vida toda a fazer uma coisa sofisticadíssima, complicadíssima e extraordinária e nem sequer nos apercebemos disso - produzimos frases novas, originais, coerentes, a cada segundo, e dizêmo-las ou pensamo-las (que forma verbal esquisita) automaticamente, sem esforço, como se fosse parte integral de nós. E é mesmo. A partir do momento em que adquirimos uma língua, ou várias línguas (nas quais se incluem as línguas gestuais, obviamente), o nosso cérebro programa-se para um conjunto de sons, regras morfológicas, lexicais e sintácticas e combina todas estas regras complicadas, dificílimas, como se fosse a coisa mais fácil do mundo, e é isso que nos permite falar uma língua. É um processo complexo, sofisticado (quem estuda sintaxe, e quem como eu foi obrigada a estudar sintaxe e a levar com o Chomsky sem nunca perceber bem daquilo, tem uma perfeita ideia da imensa complexidade que esta faculdade mental da linguagem, que esta máquina de formar frases, representa:



 Isto é uma descrição (uma suposição teórica, vá) sobre o que se passa na nossa cabecinha de cada vez que nos dá para produzir uma frase com aquelas coisas que a gente designa por sujeito e predicado e assim. A coisa vai muito mais longe do que isso, como ilustra este excerto mínimo do Programa Minimalista do Chomsky. Ah, pois, o pessoal de línguas é muito burro e vai para Letras para fugir à Matemática. Seja). E, dizia eu, sem me aventurar por descrições científicas que não consigo explicar nem sequer compreender devidamente, que a sintaxe é só para o pessoal esperto e não para mim, este tal processo de produção linguística é mesmo tecnologia de ponta, chamemos-lhe assim, e no entanto todos nós passamos por ele a cada minuto das nossas vidas, sem percebermos que somos todos uns génios absolutos. É que somos mesmo.
No vídeo abaixo, explica-se como os bebés, desde tenra idade, começam imediatamente a identificar os sons da língua a que têm acesso, passando a, estatisticamente, distinguir os sons da língua que será a sua de sons de outras línguas, que passarão a ser indecifráveis à medida que forem crescendo. Numa fase inicial, no chamado "período crítico", os bebés ainda se encontram a fazer a selecção dos sons que irão reconhecer como seus - assim, como se diz no vídeo, nascemos todos como "cidadãos do mundo" e acabamos como produto da nossa cultura, isto é, como falantes apenas  da língua, ou das línguas, que a nossa cultura nos dita. A capacidade inata e livre de aprender qualquer língua do mundo, e que detemos enquanto bebés, é necessariamente perdida quando crescemos e acabamos por limitar a nossa capacidade mental e física apenas às línguas que efectivamente aprendemos. É mesmo assim, a sociedade domina-nos e não dá para aprender as línguas todas do mundo, por mais desejável que isso seja. O nosso cérebro é um génio, mas com calma.
No entanto, devo dizer que neste momento, em que estou a pensar nisto, sinto-me como o Descartes no século XVII, no esplendor do Racionalismo, deslumbrado pela máquina perfeita, complexa, que é o Homem. E um dos melhores exemplos disto é o facto de falarmos uma língua - uma coisa tão complicada e que, no entanto, tornamos tão simples todos os dias. De modo que há que aproveitar a liberdade de poder falar uma língua, e de aprender várias línguas. Alarga-nos o mundo. Dá-nos pensamento.
Eh pá. De facto, "no que concerne" à problemática da língua, fico sempre fascinada, não há volta a dar.

"Isso dos nazis, eu não tenho nada contra..."

A estação dos Correios onde eu costumo ir é muito pequena e só tem duas pessoas a atender. É patusca e nunca me desilude - é fonte constante de entretenimento. Por detrás do balcão estao um rapaz novo e uma senhora aí de uns 50 anos, que se tratam por tu e inventam conversas para afugentar o tédio. Estão tão habituados a falar um com o outro que até se esquecem dos clientes que ali estão a ouvir tudo o que eles dizem, de modo que é possível chegar lá e, por exemplo, ouvir a senhora de 50 anos a tentar ser espirituosa e fazer jogos de palavras com o número "três", que é um número que ela ainda detém e bem, ao que o rapaz lhe responde "olha, só se for nos ouvidos", e há que dizer que este pequeno diálogo dá logo muita vontade de rir, assim revisteiro.
Bom. No outro dia, tive de ir outra vez à pequena estação de Correios e lá estava o rapaz de um lado, a senhora do outro, embrenhados em conversa e mal olhando para mim, mas eu também estava ocupada a preencher a papelada toda que se tem de preencher quando se envia essa entidade sofisticadíssima que é a chamada "carta registada com aviso de recepção". O que preocupava o rapaz nesse dia era uma senhora que tinha passado por lá e que tinha dado ao filho o nome de Adolfo. O rapaz comentava, "ah, é que isso dos nazis, quer dizer, eu não tenho nada contra, mas... dar ao filho o nome de Adolfo, quer dizer... pronto, eu não tenho nada contra, mas..." e reticências e discurso entrecortado, até finalmente rematar com a magnífica expressão "cada um é como cada qual".
Devo dizer que adoro esta moderaçãozinha, esta contençãozinha, que as pessoas às vezes acham que devem adoptar. "Isso dos nazis, não tenho nada contra" - ah, sim? Olhem que posição tão respeitável. Que boa educação exemplar. Somos todos iguais, "cada um é como cada qual", pois claro, portanto não há que discriminar ninguém com base nessa coisa muitíssimo respeitável que é a "opinião",  qualquer que ela seja. Qual é o problema se a minha opinião for a favor dos nazis? Nenhum, claro. Não há que ter nada contra.
As reticências são dos sinais de pontuação que mais me irritam. A insinuação vaga que deixam no ar, a falta de incisão, o refúgio que permitem, a falta de compromisso - "eu não tenho nada contra, mas...", este "mas" deixado assim no ar sem concretizar o argumento.
Quanto a mim, tenho tudo contra. Se cada um é como cada qual, o problema é deles. Não os torna respeitáveis, ou por outra - podem ser respeitáveis, a opinião deles é que não é. O rapazinho dos Correios devia pensar menos em reticências e mais em pontos finais. É a minha opinião.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Vou falar imenso de "peças" porque às vezes me falta inspiração e pá, apetece-me agora perder tempo com futilidades.

A peça básica que eu recomendaria para qualquer mulher, mas mesmo daquelas peças básicas sem as quais não se pode de forma nenhuma sair à rua, é esta:
Freaky jacket, de Vivienne Westwood, à venda por muitíssimas libras na loja on-line da designer. Uma peça básica. É que eu não passo sem longos casacos pretos, tenho uma espécie de fetiche. É assim. E não há que ter medo de usar preto - o que interessa é que o corte seja impecável. Uma peça preta de bom corte é insuperável. Que isto fique bem claro antes de prosseguirmos.
A nível de sapatos, deixem cá ver o que é que me apraz em termos de calçado, assim um item sem o qual não me sinto gente... penso que terá de ser este itenzito:
Não percebo como é que se pode ter um guarda-roupa sem um par destas belezas. É que é inacreditável como é que há gente que não tem, não é? Ah, ah, ah.
Bom, e como todas sabemos, com um casaco básico e um par de sapatos básicos, estamos vestidas. Mas tentemos ir um pouco mais longe e pensemos em acessórios. Os acessórios são tão importantes como a roupa em si, são aquelas peças que dão verdadeiramente o toque especial e a identidade a qualquer mulher. Daí ser muito importante saber escolher bem a "mala", por exemplo. Aqui, não queremos uma coisa muito ostensiva, que facilmente resvala para o bimbo, como por exemplo:



Desculpem, uma Birkin? Não, não, não, não, meninas, há que desmistificar a Birkin. A Victoria Beckham tem várias - ok? Sem comentários. A Birkin pode ser duradoura, sim, mas destila dinheiro de uma forma muito nova-rica, por ter sido açambarcada por tudo o que é americana loura com 15 minutos de fama. Muito má escolha. Porém, há uma fácil solução, uma solução em que nunca ninguém parece pensar e que resolve este imenso, enorme problema:

 A mala Kelly, igualmente da nossa amiga e indispensável Hermès! Tão mais subtil, com tão mais bom-gosto, mais refinada, clássica, aquilo que em inglês a gente designa por "understated" - mas mais do que suficiente para fazer toda uma toilette. Passem pelo Chiado, pequenas, passem pelo Chiado e logo vêem a diferença.
Ai, e outra coisa, é muitíssimo importante não ceder à tentação de: combinar mala com sapatos, é super demodé, é coisa de Rainha de Inglaterra no mau sentido, já não cabe na cabeça de ninguém; usar óculos escuros muito grandes; usar muitas pulseiras a chocalhar num só pulso, é de pobre (optem por uma coisa simples de prata ou ouro antigo, e se não tiverem aproveitem os saldos até ao fim desta semana); usar a mala pendurada no braço, à Paris Hilton - ou penduram no ombro, ou seguram numa mão; pendurada no bracinho é bimbo.
Estes são os meus conselhos de moda, pequenas coisas que todos os dias tento fazer para me sentir melhor, mais mulher, mais feliz, e por isso pensei que as queridas leitoras iriam gostar também. Gosto muito de me sentir útil.

Olhem, a culpa não é minha de andar sem inspiração nenhuma, já disse muitas vezes que não sei escrever bem exactamente por causa disso, porque dependo exclusivamente da inspiração que não consigo controlar, e portanto este post é o que é e acabou. Ao menos escrevi qualquer coisa, e sinceramente, nem tudo foi assim tão parvo. Pronto. Já não tenho mais desculpas, se não quiserem não leiam, que eu compreendo e até apoio. Um grande bem-haja e continuação de uma boa noite para todos, com muita paz, e amanhã um bom dia de trabalho.
Sem outro assunto, subscrevo-me atenciosamente.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Uma aventura na Segurança Social

Noutro dia, tive de me dirigir à chamada "Segurança Social". Cheguei lá e disse-me a Segurança Social, "olhe, agora sente-se ali numa cadeira e espere. Ainda tem 90 pessoas à frente" - eu fiquei chocada durante uma hora, em estado catatónico, quase sem me conseguir mexer ou falar. Quando voltei a mim, ainda só tinham passado três senhas. Estavam 87 pessoas à frente.
Ao pé de mim estavam dois ucranianos. Não percebi o que eles diziam. Na fila à frente, estava um senhor brasileiro com a filha ao colo a gritar pela avó. A Segurança Social  (doravante SS) disse-lhe para estar calada, porque o barulho daquela sala encafuada e saturada de calor desconfortavelmente humano começava a ser muito. A criança começou a chorar, mas desta vez baixinho.
Entretanto, entrou um senhor novo e tirou senha. Perguntou quanto tempo demoraria a ser atendido. A SS disse-lhe que não fazia ideia nenhuma. O senhor novo começou a falar com uma outra senhora que ele conhecia e que já lá estava há 4 horas. Ela disse-lhe que estava ali porque recebia 370 euros por mês e que ia perder um subsídio qualquer que também recebia da SS - esta última virou-se para a mulher e sorriu-lhe malevolamente.
Depois, assim sem mais nem menos, a SS começou a chamar pessoas para dentro de uma sala. Iam aos grupos de dez. As pessoas entravam para as salas e ninguém as via sair. De meia em meia hora, a Segurança Social chamava novos grupos de dez pessoas para salas recônditas. Abria porta apenas o suficiente para as pessoas entrarem e não se conseguia ver nada lá para dentro, apenas escuridão. Ninguém pedia livro de reclamações, toda a gente se limitava a entrar, e quase todos pareciam aliviados por estar a acontecer qualquer coisa, como se aquilo lhes justificasse a longa espera. 
Quando chegou a minha vez, fiquei com muito medo, mas afinal aquilo não era nada de especial,: entrava-se na sala, estava tão escuro que nem víamos por onde íamos, e de vez em quando sentia-se alguém escorregar por um vácuo fundo e húmido. Quando os meus olhos se habituaram à negritude, vi um grande poço no chão, uma enorme boca fumegante, que era por onde as pessoas que não tinham tacteado juntinho à parede haviam escorregado. Olhando para o tecto, vi um ameaçador pêndulo cortante, que balouçava de um lado ao outro da estreita sala e que ia descendo lentamente. Houve pessoas que se atiraram logo poço abaixo, porque se calhar se enervaram, mas isso foi estúpido, porque saíram dali sem informação nem subsídio, e para isso mais valia nem terem ido à SS. Alguns, antes de se atirarem, ainda perguntavam aos outros se queriam ficar com a senha deles, para o caso de terem um número mais adiantado. À conta disso, fiquei com uma senha dez números à frente da minha o que, contando com os que tinham desistido e atirado poço abaixo, já me oferecia uma vantagenzita simpática.
Irrita-me um tanto ou quanto ficar à espera, mas não havia nada a fazer, porque já se sabe que, quando se vai às repartições públicas, é mesmo assim. O único problema que via ali era o pêndulo, que continuava a descer, e tinha muito ar de aleijar. As outras pessoas também começavam a recear o mesmo, e eu dei por mim a desejar que considerassem a opção do poço, porque era menos gente à frente e eu estava mesmo a precisar de me despachar para ir almoçar. Mas aquilo não atava nem desatava, e a SS não estava a chamar nenhuma senha nova.
E foi aí que eu me lembrei de uma coisa brilhante. Comecei aos gritos, "olhe, se faz favor, eu quero mas é o livro de reclamações!". A SS entrou na sala, muito séria. Trazia um livro amarelo debaixo do braço. Tentou sorrir, amareladamente. Perguntou-me, "mas quer o livro de reclamações só por causa disto?", e eu respondi que sim. A SS deu-me tudo o que eu quis e deixou-me sair da sala. Fui atendida à frente dos outros todos, que ficaram ali a olhar para o pêndulo, mas a culpa não foi minha.
É que as pessoas deste país não reclamam e depois é isto.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

As palavras do profeta estão nos muros?

Exit Through the Gift Shop é um documentário de Banksy sobre o grafitti e a arte de rua. Não sei se é bom, se é mau, mas sei que está nomeado para Óscar. O que parece quase uma contradição nos termos - Banksy, absolutamente zeloso e protector da sua identidade, e a exuberância do fenómeno global que são os Óscares. Resta saber se o artista vai mesmo aparecer na cerimónia, mas parece que não.
Aqui pode ler-se uma reportagem, quanto a mim interessante, da validade que a arte de rua ainda tem - ou não. Mais do que isso, questiona-se se a arte de rua (que deveria ser, na sua essência, marginal) ainda é efectivamente marginal, considerando que artistas como Banksy são agora conhecidíssimos, vendidos em galerias, reproduzidos, enfim, absorvidos pelo mainstream. Por exemplo, uma pessoa como eu, que não sabe quase nada de graffiti, conhece o trabalho do Banksy desde há muito, e gosta, e isto porque há livros, reproduções, museus, que exibem o mesmo trabalho. Ou seja, não é efectivamente necessário contactar com arte de rua no elemento a que esta primordialmente pertence - na rua. Quanto mais notoriedade, menos rua. Até que ponto, então, é a arte de rua ainda da rua e cada vez mais de museu, de galeria, domesticada?
Não faço intenções nenhumas de responder a esta pergunta, porque infelizmente não sei nada sobre este assunto. O que me parece, porém, é que além da criatividade óbvia que esta arte ainda tem (exemplo:
vi isto em Londres, e infelizmente já está tapado por outras coisas, pelo menos no sítio onde o vi, mas fiquei muito contente por ter conseguido apanhar uma foto na internet), também me parece que o grafitti continua a cumprir um papel importante de protesto, de contestação, de voz anti-sistema que é necessária. Lembro-me de um dito enorme escrito numa rua ali na zona de Campolide (não me lembro do nome da rua, acho que é aquela que a gente apanha para ir para a Praça de Espanha, mas se calhar é uma qualquer que vai para as Amoreiras, enfim, é por aí) que reza: "Precários nos querem, rebeldes nos terão". Se calhar é propaganda a algum partido -  também não me lembro. Lembro-me é desta frase e de gostar de a ler cada vez que a vejo, independentemente do possível partido que a patrocina. Estou a marimbar-me para o partido, o que me interessa é que, como cantavam Simon & Garfunkel, "the words of the prophet are written on the subway walls". Eu espero bem que ainda seja assim.
A canção dos Deolinda precisa de vozes nas paredes, para dar uma ajudinha. Eu, se tivesse mais jeitinho para o desenho, era o que fazia.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Palavra da semana que me intriga: "mica"

"Pede-se aos utentes para deixarem os boletins de vacinas nas micas numeradas"
"Preciso de pôr estes documentos numa mica, que é para não os perder"
"Porque é que não pões as folhas naqueles dossiers com micas, que é para não se dobrarem?"
De todas as bizarrias exuberantes da língua portuguesa, esta é com certeza das mais feias e das mais cómicas. Mica. Mica. Mas quem é que se lembrou disto? Qual era o problema de dizer "folha plastificada", por exemplo, que sempre tem alguma dignidade, por pouca que seja? Agora "mica" é coisa sem dignidade nenhuma, sem ponta por onde se lhe pegue, parece sinónimo de palavras ao nível de "caganita" que, como sabemos e bem, são de enxovalho. Mica. Alguém percebe isto? Eu não, e duvido que um dicionário etimológico me vá ajudar nesta problemática - é uma sensação que eu tenho, que não vai ajudar.
Ai, agora vou ali que preciso de comprar umas micas. Umas micas. Não percebo isto. 
Mica. Quase tão estranho como "cunhado". Acho "cunhado" uma palavra estranhíssima, parece que se está a falar de um mafioso - "ah, eu e o meu cunhado arranjámos um negóciozito, comprámos umas casitas", sei lá, parece que se está envolvido numa associação manhosa em que "cunhado" é um título hierárquico. "Eh pá, agora vou ali de férias com a minha mulher e o meu cunhado e a mulher dele" - soa tão manhoso. A culpa não é de quem tem cunhados e tem de usar o duvidoso vocábulo, evidentemente. Mas é palavra a evitar. 
Realmente, a língua portuguesa é um esplendor, mas não é feliz no que respeita a designações de parentesco - genro, nora, sogro, "cunhado", etc. Raramente se ouvem palavras mais feias.
À excepção de "mica". Mica.

As varandas dos outros

Sou uma pessoa que nunca lava as varandas. Os meus vizinhos, no seu aprumo burguês que não posso senão respeitar e, de certo modo, até invejar, têm sempre as varandas impecáveis. Sempre que vou à janela, aproveito para dar uma espreitadela e lá estão elas, as varandas dos outros, reluzentes, brancas, com uma plantinha bem regada, ou uma roupinha bem lavada a secar, ou uma cadeirinha que nunca é usada, evidentemente - mas está lá, e isso é que importa.
As minhas varandas, não. Estão sempre sujas. O pó acumula-se e deixa manchas negras que se misturam com o verdete da humidade e sim, de certo modo aceito que apelidem isto de "nojento", mas para mim não é, para mim costumava ser um sinal da minha individualidade, da mesma forma que o Nicholas Cage tinha aquele casaco pele de cobra no Wild at Heart e andava sempre com ele, porque dizia que o blusão era o símbolo da sua liberdade e individualidade. As minhas varandas sujas eram assim, era eu a dizer aos meus vizinhos e consequentemente ao mundo - "vocês não pensem que eu tenho as vossas vidinhas simples, vidas em que há tempo e espaço mental para andarem a pensar em limpar varandas; eu não, eu sou uma pessoa diferente, uma pessoa que pensa noutras coisas, como diz o Lobo Antunes, tenho lá tempo para me preocupar com varandas", e este raciocínio adensava-se numa espiral louca que chegou a um ponto em que as varandas quanto mais sujas melhor, até tudo culminar num outro ponto em que eu olhei para as mesmas varandas e me vi impossibilitada de pôr o pé lá fora. Chegada a este estado, eu, que me considero uma pessoa higiénica, uma pessoa com certas exigências, fui obrigada a reconhecer que seria bom dar uma limpezazita às varandas, limpeza essa que se concretizou com engenho e arte. 
E agora vem esta chuva parva, intolerável, gélida, este vento das profundezas do Inverno, e tem uma pessoa de ver todo o seu esforço deitado por terra, as varandas todas as sujas outras vez. Até tenho vontade de chorar - porque fui eu comprometer, ofender os meus valores e individualidade, a minha luta contra o conforto burguês domingueiro da varanda lavadinha com a plantinha bem regada, a alcatifa bem aspirada, o bibelot, o naperon, o Volkswagen bem esfregado com matrícula "2010", que só não é 2011 porque o imposto subiu e toda a gente se pôs a comprar em 2010 e assim se vê os problemas que atravessamos com a crise, dizia, o serviço de cozinha, o faqueiro, roupa interior passada a ferro? Para que fui eu lavar varandas para me aproximar deste estilo de vida, inconscientemente, é certo, mas de qualquer modo foi o que fiz? Para vir a chuva e gozar com a minha cara?
É um castigo da Natureza. É o mundo a dizer-me: "bem feita, não és coerente, dizes mal dos burgueses e depois queres ser igual, e agora é isto que te acontece, vem a chuva e estraga-te as varandinhas todas, as mesmas que tu não tiveste coragem para deixar sujas. Devias ter vergonha. Porque é que não vais para o Colombo ao fim-de-semana? Não te ponhas com coisas, que o que tu queres ser eu, ir para a Fnac a rebentar de gente, ir para o Continente, se fores com crianças vais àqueles PlayCentres ou sei lá - ou achas que és melhor do que isso, minha pretensiosa?"
Eu respondo - sim, acho que sou. Mas sei que não sou. São as terríveis contradições do ser humano, a espinhosa escolha entre aquilo que nos torna melhores mas nos faz sentir pior e aquilo que nos torna piores mas nos faz sentir melhor. 
Eh pá, conclusão: quando esta chuva acabar, nunca mais volto a limpar varanda nenhuma. Os vizinhos que se esfalfem nas deles. Eu penso noutras coisas.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Não consigo evitar, estas coisas irritam-me

Uma extensa crítica, quando tudo se resume a uma afirmação inicial, que até tem piada, por um escritor que até tem piada: 


Da mesma forma, poderia eu dizer que escrever isto sobre os Coen não só é crítica já batida e lugar-comum (repete-se sempre que os Coen lançam um filme novo, à excepção de No Country...), como é a ideia que uma pessoa apenas moderamente esperta tem do que deve ser uma crítica muitíssimo inteligente a estes irmãos. 
Não sei porquê, lembro-me de ser adolescente e de ter constatado que, de repente, os Stone Temple Pilots tinham deixado de ser muitíssimo bons para passarem a ser apenas "medianos" ou até, pura e simplesmente, "medíocres". Nunca percebi bem como se deu a mudança. Há coisas que a crítica às vezes convenciona e que depois se disseminam incendiariamente, e vai a carneirada toda atrás. Tudo bem, um dos meus ditos preferidos da língua portuguesa é "cada um é como cada qual", seguido daquilo que a mãe do Diácono Remédios costumava dizer sobre as opiniões, e portanto todos nós temos direito a gostar, ou deixar de gostar, das coisas.
Mas esta crítica permanente aos Coen agasta-me, porque me parece injusta. É verdade que fazem filmitos que não interessam muito - lembro-me, por exemplo, de LadyKillers, que nem sequer consegui ver. The Hudsucker Proxy foi outro que também não consegui acabar de ver, porque me aborreceu. Intolerable Cruelty também não entusiasma ninguém. Mas, inversamente, a (relativa) frieza com que Oh Brother Where Art Thou é acolhido, ou ainda mais flagrantemente, The Man Who Wasn't There, é algo que me deixa atónita. Este último, parece-me, é de uma beleza inegável sob todos os aspectos. Mas enfim.
Quanto a mim, espero ansiosamente pela estreia de True Grit (só o trailer, com aquela música do Johnny Cash, já me deixa aos pulos na cadeira). Se não gostar, não gosto, paciência, mas não será isso que me vai impedir de continuar a apreciar, muitíssimo e sempre, coisas como Blood Simple, Barton Fink, Fargo, Raising Arizona, Oh Brother..., The Man Who Wasn't There, o fundamental Big Lebowski. De modo que sim, eu, uma pessoa moderamente esperta, tem efectivamente a convicção de que os Coen não são apenas aquilo que "auteurs" americanos devem ser, como tem igualmente a convicção de que os Coen são aquilo que autores de cinema devem ser, americanos ou não. Fim. 

Revolução no Egipto

Ontem, nos blocos noticiários sobre o que se passa no Egipto, a RTPN falava de "revolta" no Egipto; uma outra estação, penso que a SicNotícias (não posso assegurar) apresentava as imagens com a legenda "revolução" no Egipto.
Há diferenças, e diferentes pesos e medidas, nestas escolhas linguísticas - não é um dicionário que nos vai indicar em que medida uma revolta é diferente de uma revolução. São as nossas escolhas, e as perspectivas que queremos ter, que o vão fazer.
A língua portuguesa nunca cessa de me fascinar.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A que cabeleireiro é que tenho de ir...

... para ficar com um cabelo assim?
Ou assim:
Ou assim:
Ou até assim:





O resto já não peço, é mesmo só o cabelo. Ai, os problemas desta vida...

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O facebook não gosta de mim

Eu, em termos de facebook, sou a pessoa mais falhada que existe. E é muito simples constatar este triste facto - enquanto todas as outra pessoas que eu conheço coleccionam "amigos" e "amigos" e mais "amigos", eu estou sempre a perder. Quase todos os dias perco amigos. Tenho um número de contactos absolutamente flutuante e estranho no facebook - há dias em que tenho um x número, outros em que tenho outro. Pode diminuir, pode aumentar. Ninguém percebe isto. Ultimamente, tem diminuido. Disseram-me, "as pessoas bloqueiam-te", ou "as pessoas já não querem ser tuas amigas". Sinceramente, nem no jardim-escola isto me acontecia de forma tão ostensiva e quando acontecia, eu sabia sempre porquê - ou não tinha emprestado a boneca às outras meninas, ou não as tinha deixado serem elas as princesas ou elas é que não me tinham deixado a mim. Normalmente, o assunto resolvia-se com um "assim já não gosto de ti" e, ao menos, eu ficava logo a saber. Depois, puxavam-se uns cabelos ou isso para consumar a vendetta, e voltava-se ao normal. Mas agora, a forma como as coisas se passam no facebook ultrapassa-me. Sou assim tão má pessoa para os outros andarem por aí em hordas a decidir que não querem ser meus amigos? É que se é assim estamos muito mal, porque uma pessoa não anda por aí a resolver a adolescência tão bem quanto é possível para depois chegar ao facebook e ter de se andar a preocupar outra vez em auto-estima e se os outros gostam de nós ou não, e ai se sou popular, e ai se falam mal de mim e ai se sou má pessoa e sei lá mais o quê.
Realmente, qual a razão dos meus esforços para ser uma adulta responsável e madura quando afinal as questiúnculas que nos assombravam na escola secundária acabam por ser as mesmas? E tudo por causa do facebook, essa "plataforma" tão parva e perniciosa. 
Oh pá. Se o número de amigos não subir amanhã, acho que vou desistir do facebook. Dou-me muito melhor com a vida real, o que pode não contar muito nos dias que correm, mas para mim continua a ser bem mais importante.

Ensaio sobre a cegueira

Não vai ser ensaio nenhum, o título é só para chamar a atenção. Houve uma senhora que morreu e deixou um cadáver, e esse cadáver ficou 9 anos fechado num apartamento. Houve também um familiar que tentou 13 vezes que o Tribunal desse ordem para arrombar a porta mas parece que não deu. Também se contactaram uns sobrinhos e a polícia, mas mais uma vez não deve ter dado. A senhora que deixou cadáver tinha uns animais que morreram na varanda, com certeza de fome. Isto digo eu. Se calhar, também adoeceram. 
A situação descobriu-se porque as Finanças começaram a considerar no mínimo estranho que existisse sujeito passivo tão inerte, tão mau pagador, ou havia uma penhora qualquer, ou uma coisa assim burocrática parecida. A senhora que deixou cadáver foi identificada, a sua existência, ou falta dela, foi notada porque havia um número, num qualquer sistema estatal hierárquico e burocrático, que tinha o registo dela. Quer dizer, mais ninguém tinha - mas na hierarquia de poderes bem definidinha que o Estado impõe, havia um número (provavelmente de contribuinte), e esse número apontava para o cadáver. Como diz Foucault na sua Vida dos Homens Infames (S., o livro é teu, tenho de te devolver!) - todas aquelas vidas, que estavam destinadas a passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido ditas, não puderam deixar traços senão em virtude do seu contacto momentâneo com o poder.
Pois é. Quem não tem número de contribuinte e pensa que tem identidade, desengane-se. A nossa existência, como diz Foucault apenas dos "homens infames", mas como pode ser alargado a quem quer que viva sob a alçada do Estado, Providência ou mínimo, dizia, a nossa existência e identidade dependem de uma coisinha apenas, o tal "confronto com o poder", o momento em que o Estado nos regista e reconhece.
A não ser que sejamos o Corto Maltese. Obviamente, o Corto Maltese não precisa de número de contribuinte. Podia é ter número de telefone, que isso é que me dava jeito. É mesmo assim, sem registo e sem números a nossa vida não vai a lado nenhum. 
Que converseta tão deprimente.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Para conhecimento

Venho por este meio dar conhecimento aos chamados fãs "die hard" da série televisiva Os Sopranos, The Sopranos no original, se há ainda por aí alguns, nomeadamente aos sujeitos passivos que, em tempo útil e em sede própria, se recusaram a dispender 200 e remanescentes euros no sentido de adquirir a referida série em disco DVD, temporadas um a seis, por considerarem, em tal momento, que teriam mais do que fazer ao dinheiro, de que a mesma série, temporadas um a seis, em disco DVD, se encontra de momento, e até à data de 9 de Fevereiro do ano de 2011, em promoção no sítio de internet amazon.co.uk, ostentando o preço de 51.24 libras, vulgo 60 euros, IVA e portes de envio incluídos, deste modo representando significativa redução face ao preço inicial. A gerência deste sítio da internet toma a liberdade de aconselhar a aquisição destes discos aos supra-mencionados sujeitos passivos, sem prejuízo de possível e eventual fruição do visionamento de episódios da referida série na internet, por meios cuja legitmidade não nos é dada apreciar, por não se encontrar sob o escopo do presente post (nem sequer do presente blogue).
Mais se informa de que a escassez de posts neste sítio da internet é profundamente lamentada pela responsável, que se tem encontrado em situação que a impede de actualizar de forma regular um blogue que se deseja abundante em escrita, por ser seu objectivo primordial e fundador a já referida escrita e consequente leitura. A lacuna aludida será colmatada assim que possível, com a maior brevidade, e pela ausência e falha deseja a responsável apresentar as suas sinceras desculpas.

Gratos pela atenção dispensada, subscrevemo-nos atenciosamente,

A Girência

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos

E, já que estamos (ou estou eu) numa de crueldade, vou aqui citar isto:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Quando se fala do peso da idade, deve ser disto que se fala. A perda do amor. Já não haver ninguém que goste de nós como quando éramos pequenos. O amor que tomamos como dado adquirido, por não poder ser de outra forma, dos pais, dos tios, dos avós. De toda a gente, no fundo. É como se todo o mundo estivesse orientado só para gostar de nós.
E, como explica Fernando Pessoa, desta forma tão cruelmente bonita, quando a casa se esvazia e ficamos nós ali como fósforo frio a olhar para a humidade nas paredes... eh pá, fazemos o quê? De repente, fazem-nos falta. Os tios, os avós, toda a gente. Os cuidados com a festa de aniversário. Fazerem bolos na cozinha. Imagine-se - fazer bolos e rissóis e tudo em casa porque nós fazemos anos. E depois ficarmos sem isso.
Não se faz.

Abril é o mês mais cruel

Aquele primeiro verso de The Wasteland merece todas as conversas mais ou menos intelectuais, inteligentes, pretensiosas ou simples, que se travaram sobre ele: April is the cruellest month.
E depois continua: ... breeding lilacs out of the dead.
Lembro-me de ter lido isto e de o impacto sonoro ter ficado a ecoar - April is the cruellest month, April is the cruellest month, e depois imaginar o roxo dos lilases, lilases misturados com cadáveres, a despontar de cadáveres, que coisa tão impressionante - breeding lilacs out of the dead.
Era o que eu imaginava, e imagino, quando leio Wasteland. E é verdade que Abril é um mês cruel. O confronto com a renovação, o renascimento, saber que o mundo continua independentemente de nós - e se formos nós os cadáveres? É que, se fizermos parte do renascer da esperança, está tudo muito bem. Mas, de facto, se os lilases crescem por cima de nós, indiferentes à nossa presença, enfim - se formos nós os mortos, o que fazer?
É que os cadáveres, podemos ser nós. Podemos mesmo. E a Primavera enterra-nos sob o esplendor que traz consigo, aquela exibição exuberante da vitalidade de tudo. E nós mortos, a olhar para aquilo, a ver os lilases que nos rebentam das mãos e dos pés e por todo o lado.
Eu sei que este post parece uma tentativa muito fraquinha de arremessar à chamada "prosa poética", mas não é nada disso. Eu estou mesmo a tentar ser muito realista. Só porque agora Abril não é cruel para mim, não quer dizer que não tenha sido, que não possa ser, que não seja. Quando se diz "em Abril, águas mil", estas águas podem ser muitas coisas, podem ser os sôbolos rios que vão e podem ser as águas que às vezes a gente tem de chorar.
A vida é assim porque, como canta a grande Amália e o grande Camões talvez tenha escrito, "triste quero viver pois se mudou em tristeza a alegria do passado". A gente nunca sabe com o que pode contar. É ir aguentando. Aproveitar a felicidadezinha que se tem, quando ela chega.