quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Pequenos, minúsculos, pormenores

É muito engraçado descobrirmos pormenores na música ou nos livros de que gostamos, e que nos fazem gostar ainda mais deles. Por exemplo, já escrevi antes de que uma das razões pelas quais gosto muito, muito, muito de Measure for Measure, de Shakespeare, é o facto de Claudio, condenado à morte, replicar à irmã com um simples "Death is a fearful thing", ao tomar conhecimento que Isabella, a sua irmã, tem hipótese de o salvar se se oferecer carnalmente ao governador da cidade.

Vinha hoje no carro com o ipod no shuffle (bem, os tempos modernos fazem-nos usar cada item lexical mais foleiro e anglófono que, para me redimir do que acabei de escrever, só umas 200 Ave-Marias e 500 Pai Nossos, aposto), dizia, vinha então com essa glória da tecnologia, que é o ipod, programada para o auge das suas capacidades cognitivas e reprodutoras, que é o shuffle de mil e tal canções (vivemos, sem dúvida, numa sociedade de excesso; um instrumento que pesa meia grama e que alberga mil e tal canções, como é que isto é possível?! como é possível conhecer-se mil e tal canções, e o que é certo é que conhecemos, e até mais), hoje estou a divagar, dizia, ipod no shuffle, e calha o mesmo ipod passar a versão de Where Did You Sleep Last Night dos Nirvana.

Gosto dos Nirvana. Quando lançaram o histórico Nevermind, estava eu em plena, pleníssima, adolescência, e, estimulada pelos gostos musicais de um irmão todo cool que passava a vida em guitarradas no quarto, comecei desde logo a ouvir Nirvana, e a discutir quem era melhor banda, se Nirvana, se Pearl Jam, talvez até Sound Garden (ná, ou Nirvana, ou Pearl Jam) e a concluir que, em geral, a cena de Seattle era, toda ela, muito boa (concluí eu e o meu irmão, do alto dos anos de adolescente, muitíssimo orgulhosos do nosso conhecimento musical). Gosto dos Nirvana porque me fazem lembrar uma altura em que a música era tudo na vida- havia que ter bandas favoritas e intocáveis, havia que saber letras de cor e decifrar o inglês, havia que discutir a qualidade musical deste e daquele, havia que decidir se o enorme sucesso dos Oasis se justicava ou não, eu, por exemplo, era mais adepta dos Blur, havia que descobrir um número infindável de bandas mais antigas e essenciais, os Led Zeppelin, os Deep Purple, os Jefferson Airplane, a Janis Joplin, a perfeição dos Beatles, havia que gostar de Doors e decidir se o Jim Morrison era ou não o Rei Lagarto, havia que ir a concertos ou ouvi-los em directo na Antena 3, havia que sentir aquela emoção genuína de ir a um concerto pela primeira vez e pensar que aquele é o momento mais importante, mais entusiasmante da nossa vida inteira, estamos mesmo na mesma sala que aquela banda importantíssima, eles vão mesmo tocar para mim, nada é melhor do que isto, comprar revistas de música, ler os pregões parvalhões do Blitz (ainda existem?) e decidir qual era o mais parvalhão, pensar no que é que os Faith no More queriam dizer com "well it's a dirty job but someone's gotta do it", ou o Lenny Kravitz com "are you gonna go my way", estavam tristes?, estavam bem dispostos?, aquilo era uma mensagem importante ou não?

Enfim. Todo um rol de coisas que se tornam insignificantes quando crescemos, ainda que continuemos a gostar muito de música e a ouvir muita música. Esta torna-se ócio, lazer, e não o centro do nosso universo, que passa a ser ocupado por outras coisas não necessariamente más (algumas até francamente boas, felizmente) - apenas outras coisas.

Isto para dizer que o meu ipod escolheu, aleatoriamente, Where Did You Sleep Last Night dos Nirvana, Unplugged, que eu absolutamente adoro. De todo o Unplugged, acho que a minha preferida é mesmo esta, apesar de não ser um original da banda. Entre outras coisas, gosto muito desta canção porque, para o fim, o Kurt Cobain está a cantar e solta um suspiro doloroso entre I shiveeeeeeeeeeer the whole... e night through (confirmar minuto 4:30 e seguintes no vídeo abaixo). É provavelmente um suspiro de cansaço da parte do Kurt, por ter desfeito o shiver num grito emocionado, mas o que é certo é que este suspiro, para mim, encerra a intensidade toda desta canção. Ouço-a do princípio em grande antecipação, ansiosa por chegar à parte do suspiro. Um pormenor, nada mais do que isso, mas tão importante.

Estou a sentir-me muito adolescente, hoje.

Uma pequena nota antes de terminar, quando comprei o ipod nunca pensei que fosse usar o shuffle. Pensei que era o tipo de pessoa que faria playlist atrás de playlist (oh pá, estes termos da modernidade matam-me, o shuffle, a playlist, meu Deus...), com muita personalidade, umas para ouvir de manhã, outras para ouvir à noite, outras para descontrair, outras para dar adrenalina, e que nunca recorreria ao shuffle, que isso era coisa anódina de quem não sabe o que quer ouvir. Mas a verdade é que, passado o entusiasmo das playlists, reconheço que o shuffle, de facto, dá um imenso jeito e satisfaz o nosso desejo, muitíssimo adolescente, não de requinte, mas antes de conhecer bem esta banda, e a outra, e a outra, e a outra...

3 comentários:

Bruno Taborda disse...

Ter o iPod em shuffle (o meu anda sempre nas 3000 músicas) é como ouvir uma rádio que só toca aquelas músicas que nós gostamos mesmo e ainda assim consegue-nos surpreender quando consegue fazer sequências perfeitas.

Zorze disse...

O melhor pregão parvalhão do(a) Blitz, foi num dois primeiros números depois de terem adoptado o formato revista, que tinha a (nossa, numa onda a nossa Vanessa) Nelly Furtado, acabada de lançar o segundo (ou terceiro) álbum e dizia: "Nelly Furtado - de boazinha a boazona".

Rita F. disse...

Bruno, essa é uma visão muito acertada em relação ao shuffle. Vou passar a aplicá-la -a rádio perfeita, é isso mesmo.
Zorze Caetano - eh eh eh!