quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A plague on both your houses

No lindíssimo e comovente "Dora Bruder", que persegue a elusiva figura de uma menina de 15 anos perdida na II Guerra Mundial e morta em Auschwitz, escreve Patrick Modiano: "Mas restam, nos arquivos, centenas e centenas de cartas enderaçadas ao prefeito da polícia da época e às quais ele nunca respondeu. Estiveram ali durante mais de meio século, como sacos de correio escondidos no fundo de um hangar de uma longa etapa do Correio Aéreo. Agora podemos lê-las. Aqueles a quem eram dirigidas não lhes ligaram, e hoje somos nós, que ainda não tínhamos nascido nessa época, os seus destinatários, os seus guardiães:


Senhor Prefeito,
Tenho a honra de chamar a sua atenção para o meu pedido. Trata-se do meu sobrinho Albert Graudens, de nacionalidade francesa, com 16 anos, que foi internado...

Transmitido ao prefeito da polícia:
Solicito da sua benevolência a libertação do meu neto Michael Rubin, de três anos, de mãe francesa, internado em Drancy com a mãe...

Senhor Prefeito,
Ficar-lhe-ia infinitamente grata se anuísse em examinar o caso que venho apresentar-lhe: os meus pais, bastante idosos e doentes, acabam de ser presos na qualidade de judeus, e nós ficámos sozinhas. A minha irmã mais nova chama-se Marie Grosman, de 15 anos 1/2, judia francesa, (...) e eu chamo-me Jeannette Grosman, também judia francesa, de 19 anos, detentora do bilhete de identidade francês...

Senhor Director,
Peço desculpa por me permitir dirigir-me a i, mas eis o meu caso: no dia 16 de Julho de 942, às 4h da madrugada, vieram buscar o meu marido, e como a minha filha estava a chorar, também a levaram.
Ela chama-se Paulette Gothelf, de 14 anos 1/2 de idade, nascida a 19 de Novembro de 1927, em Paris, na 12ª circunscrição, e é francesa..."

Ora, herdar coisas, especialmente memórias e alguma responsabilidade, é sempre ingrato. O que fazer com a tralha, não é? Sentimos sempre que não devíamos ser nós a ter de arcar com a complicação que outros nos passaram. Há papelada a tratar, burocracias a decidir. E nada ilustra melhor esta nossa contrariedade para com "heranças" do que, precisamente, estes rasgos de memória que Modiano re-constrói no seu livro e que, como ele diz, nos pertencem agora, responsabilidade nossa, à nossa guarda.

Mas é tão chato. Da sombra negra que invadiu a Europa nos anos 30 e perdurou, oferece-nos dizer muito pouco. Não tínhamos nascido, não sabemos. As próprias pessoas da altura não sabiam (penso que o excerto de "Dora Bruder" ilustra bem como isso não era verdade - com prisões, internamentos e deportações a acontecer debaixo dos seus narizes, é claro que sabiam). De modo que é uma herança que recusamos - as figuras de todas as pessoas que morreram na altura, crianças, velhos, jovens, famílias. E, como tal, como arcar com responsabilidade e chatice como se fôssemos homenzinhos não é, realmente, o nosso forte, continuamos a iludir-nos de que nada é culpa nossa.

Interrogo-me se futuras gerações vão inventar para nós uma qualquer desculpa como nós inventámos para os europeus da II Guerra. Ah, não sabiam. É que o problema agora é que sabemos. Há todo um admirável mundo novo de tecnologia que nos enfia casa adentro pessoas que morrem afogadas a tentar chegar à Grécia, crianças que levaram com bombas em cima, discursos anormais de gente anormal, de gente má. Podemos escolher o mal, e escolhemos mesmo. Portanto, qual será a nossa desculpa?

sábado, 22 de outubro de 2016

O networking

Não há coisa que me chateie mais do que o chamado "networking". Não percebo. Quer dizer, perceber, percebo, mas acho tão estranho. A internet diz que networking é "
interact with others to exchange information and develop professional or social contacts". Pois.



1 - "interact with others" - fale com pessoas que, na vida real, não lhe interessariam para nada, mas que talvez lhe possam trazer alguma vantagem profissional



2 - "exchange information" - sim, aqui talvez haja algum mérito. Troca de informação é sempre benéfica, mesmo quando esta é fundamentalmente para dizer que x ou y se está a divorciar e que isso tem afectado imenso o seu trabalho, e que portanto talvez haja hipótese de ele/ela ir parar ao meio da rua, logo deixando uma posiçãozinha por preencher, e talvez essa posiçãozinha possa ir para alguém, mormente o "networker"



3 - "develop professional or social contacts" - lembra-se dessas tais pessoas que na vida real não lhe interessariam para nada? Pois bem, se quer subir na vida, esqueça-se de quem é, seja simpático/a na medida certa, vista-se bem, ponha um sotaque ligeiramente afectado para que, apenas subtilmente, as pessoas pensem que é da Linha ou tem lá família, vá a certas missas para ver certas pessoas se a situação assim o exigir (para optimizar, vá a certas conferências e finja admiração por pessoas cuja o trabalho nunca leu), vá à Gulbenkian a certos dias, porque não ao S. Carlos em determinados dias-chave, e isso vai ter de descobrir quais são,
e encontre novamente todas essas pessoas que, na vida real, não lhe interessariam para nada. Corteje-as, seja simpático na medida certa, compre roupa a 20 euros na Zara mas use sapatos deslumbrantes. Conhece alguém em Bruxelas? Não interessa o que essa pessoa faz, se por acaso até nem vive bem, bem em Bruxelas, ou até nem trabalha bem, bem em Bruxelas, ou se por acaso até nem conhece essa pessoa bem, bem, Diga apenas que "tem um amigo que está em Bruxelas", assim-comá-assim ninguém está a dizer que esse amigo é seu íntimo e que trabalha na UE. As pessoas apenas vão assumir que sim, e é mais um ponto para o networker. E bom, se essas tais pessoas que não lhe interessariam para nada mencionarem que dali vão jantar a um qualquer "Pestana" e quejandos, diga que sim, que também estava a pensar lá ir, que graça. Vá, beba um copo, coma um bife, um folhado de alheira com puré de maçã, a recuperação da comida tradicional portuguesa, dos vinhos portugueses, dos alentejanos, dos douros, que maravilha. Finja que adora o que faz. Que a sua vida é aquilo. Cause boa impressão. Transforme-se, esconda quem é muito longe dentro de si e esqueça-se desse pequeno "eu" que só incomoda. Para que o conheçam e adorem no seu pequeno meio, tão
 insignificante para o resto do mundo que se esboroa e que bem se está a borrifar para si (e ninguém sabe tão profundamente esta verdade como o "networker"). Smile and the world smiles with you, right?


4 - Regra de ouro - não esquecer que o Trump se aproxima da vitória, que a Síria continua em guerra, que a UE oscila e derrapa, e que o seu mundinho tão pequenino do networker, tão cheio de insignificantes vitórias, vai acabar em breve. E que ninguém quer verdadeiramente saber do "networker" para nada, especialmente aqueles a quem a vida concedeu privilégios, ou que os conquistaram. E que quanto mais pensa que sabe e conhece, mais rapidamente se aproxima do fim.

Fim (ou: por que não gosto do networking. Como diria um magnífico bicho do mato que muito prezo, "o menino dorme. Tudo o mais acabou").



quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Pais e mães

Não tenho, na verdade, muito a dizer sobre pais e mães, excepto que agora valorizo mais esta ocupação, porque! Tudo aquilo que os velhotes nos diziam e ao qual não ligávamos nada é absolutamente verdade, posso afiançar. Custa muito, tem-se muito trabalho, "quem tem filhos tem cadilhos" ou lá como é o provérbio (não sei muitos provérbios e erro sempre, mas enfim, agora não me apetece ir ver ao google). Eles fazem birras, chichi na cama, não querem comer nada que lhes pareça minimamente estranho, sendo que o seu conceito de "estranho" abrange coisas da ordem do tomate, passando pela cenoura, salmão e ovos mexidos, perguntam até à exaustão "porque é que eu não posso saltar como o Homem Aranha", choram se lhes explicamos que o Homem Aranha não existe e, se existe, não são eles de certezinha absoluta, tentam levantar-se da mesa mil vezes à hora da refeição porque "mas é que eu agora tenho mesmo de ir fazer cocó" ou "mas é que eu lembrei-me de uma música e queria ir dançar", falam aos berros no meio da rua, fogem e fazem-nos correr atrás deles esbaforidos, qual avó preocupada com os netos na praia da Concelação, saias até ao joelho e água a dar pelas canelas, porque a mais não se atrevem, a desfazer-se em berros "ó Briã, tu sai da água qu'o mar tá bravo e ainda t´acontece uma desgraça", e etc.

 E é também verdade que ter filhos é ascender a todo um mundo novo de felicidade. Sim, isto é verdade, e é a mais importante verdade. Como dizia o Seinfeld, uma pessoa depois de ter filhos está-se a marimbar para o resto - "I can make my own people now!"

Oferece-me, porém, dizer determinadas coisas. Primeiro, a análise de Marx sobre a mulher "duas vezes escrava, dua vezes proletária" é igualmente verdadeira, e isto não tem nada a ver com ser de esquerda ou de direita. Há gente que, mal se profere o nome do Marx, começa logo a benzer-se, ai que vêm aí os comunistas comer-nos as criancinhas, mas isto está errado. Marx faz uma análise da sociedade aguçadíssima e ainda hoje completamente "spot on", como diriam os insulares que têm a mania de que a Europa não é para eles. Mas dizia, a análise está certa, e é válida para todas as mulheres, exceptuando aquelas que vivem num T10 com duas empregadas e uma ama. Para todas aquelas que não desfrutam destas condições, como eu (eu não desfruto, entenda-se), a vida é cumprir com o trabalho, o que dá uma trabalheira horrenda, e depois chegar a casa e ainda tentar que a mesma casa não se torne numa pocilga absoluta. E ainda que os meninos andem arranjadinhos, que pelo menos não pareçam uns indigentes. Pelo menos isso. Vamos manter os padrões da classe média, se faz favor. Mas manter os padrões da classe média obriga a isto, a ser um ás no trabalho e em casa ser igualmente competente. De modo que, sinceramente, a propaganda do trabalho ser muito bom e ser a verdadeira emancipação é converseta que, comigo, não pega. Emancipação, ter de andar numa correria pegada e dar graças a Deus pela creche, senão onde ficariam os pequeninos? Estão a gozar com a minha cara. Todo o mundo, toda a sociedade, toda a criatura que inventou esta propaganda ideológica do "trabalho" está a gozar com a minha cara.

Posto isto. Há ainda uma outra questão "derivada" da parentalidade, que é a das pessoas perderem a cabeça com as criancinhas. A criancinha tosse - médico (e convém que seja privado - a classe média que se preza não gosta do público, ai-que-horror. Temos educação e saúde públicas desde 1974, o que historicamente não é nada, e já estamos prontos a deixar que se enterre tudo cano abaixo. Não deixa de ser curioso). A criancinha levou um pontapé do outro miúdo na escola - quero uma reunião com o director, quero o outro expulso, quero isto e aquilo. A criancinha é insuportável - é criança índigo ou lá o que ditam as New Ages. Estou a exagerar, claro, mas a verdade é que na nossa atitude com as crianças existe igualmente um certo exagero - ou são magnificas, ou são monstros. Raramente são tratadas como elas realmente são, pequeninos seres humanos, adoráveis, que precisam de atenção, de cuidado, de amor, mas fundamentalmente pessoas normais com a sua vidinha pequenina a florescer.

Há uma coisa que me parece imprescindível nas crianças, que as torna efectivamente especiais, e que espero que algumas possam preservar (e agora aproxima-se a lamechice) - a poesia. Tudo o  que é visto pelos olhos de uma criança é novo, original, único. Vêem a beleza das coisas que para nós está escondida sob a opacidade da rotina. Nós vemos tudo cinzento, mas as crianças alegram-se com o azul do céu num dia de sol, com o verde pardacento do mar quando está nublado, com o púrpura laranja do pôr do sol, com os minúsculos malmequeres à beira da estrada, com aqueles insectos feiosos que não são bem joaninhas mas que eles acham que são. E isto, sim, isto é o tipo de coisas que abre os olhos de um adulto "duas vezes escravo, duas vezes proletário" e lhe traz o tipo de alegria que, enfim, nem a literatura consegue dar. Por isso, e para terminar também com literatura, "mas o melhor do mundo são as crianças".