Como hoje está frio e chuva, ouvi em repeat Alice, de Tom Waits, cujo primeiro e bonito verso é it's dreamy weather, que eu acho que se aplica muito a dias de chuva. Adoro esta canção. Este álbum de Tom Waits, intitulado precisamente Alice, é a banda sonora que Waits fez para a peça de Bob Wilson, intitulada precisamente Alice, e baseada, como se adivinha, precisamente em Alice in Wonderland, de Lewis Carrol, que esteve precisamente no CCB em Lisboa, precisamente há uma data de anos. Não consegui bilhetes, ou melhor, não pedi à minha mãe a tempo que me arranjasse bilhetes, porque eu naquela altura vivia do dinheiro parental e não tinha dinheiro nem para mandar cantar um cego, e hoje continuo a não ter, a questão é que agora tenho de trabalhar para não ter dinheiro para mandar cantar o tal cego, seja lá onde for que ele se encontra.
A Alice (in Wonderland e Through the Looking Glass) é daqueles livros fundamentais de que toda a gente gosta, e ainda bem. Eu gosto muito, principalmente da parte com Tweedledee e Tweedledum, em Through the Looking Glass, onde John Lennon se inspirou para escrever o fabuloso I am the Walrus. Mas o que gosto particularmente neste capítulo é da discussão que a Alice trava com os esquisitos irmãos Tweedledee e Tweedledum a propósito do sonho do Red Kind, profundíssima discussão em que os irmãos relativizam a realidade - nada existe, ou como saber que as coisas existem? como saber se o que pensamos e fazemos é real e não apenas um sonho? podemos ser todos fragmentos do sonho de alguém e nem sequer sabemos - ao passo que Alice afirma que sim, que ela sabe que existe, recusando admitir que os irmãos podem ter razão (o diálogo segue abaixo, ligeiramente comentado por mim). No fundo, a Alice só tem a sua própria vontade e crença que lhe asseguram a existência. Ela acredita que é real, mas não consegue responder quando Tweedledee e Dum lhe perguntam como é que ela pode ter a certeza de que as suas lágrimas são reais. Muito à Schopenhauer. Alice sofre, solipsista, encerrada em si, sem saber se existe ou não, porém sabendo que tem vontade de existir.
E foi esta conclusão brilhante que retirei de um tão simples acto cometido num dia chuvoso, que foi ouvir Alice de Tom Waits, e que demonstra igualmente que, nos dias em que insistimos em escrever posts apesar de não termos nem uma única ideia de jeito nem nada para dizer, inventamos as parvoíces mais maribolantes para que saia qualquer coisa do teclado. Desculpe qualquer coisinha.
He's dreaming now,' said Tweedledee: `and what do you think he's dreaming about?'
Alice said `Nobody can guess that.'
`Why, about YOU!' Tweedledee exclaimed, clapping his hands triumphantly. `And if he left off dreaming about you, where do you suppose you'd be?'
`Where I am now, of course,' said Alice.
`Not you!' Tweedledee retorted contemptuously. `You'd be nowhere. Why, you're only a sort of thing in his dream!'
`If that there King was to wake,' added Tweedledum, `you'd go out -- bang! -- just like a candle!'
`I shouldn't!' Alice exclaimed indignantly. `Besides, if I'M only a sort of thing in his dream, what are YOU, I should like to know?'
`Ditto' said Tweedledum.
`Ditto, ditto' cried Tweedledee.
He shouted this so loud that Alice couldn't help saying, `Hush! You'll be waking him, I'm afraid, if you make so much noise.'
`Well, it's no use YOUR talking about waking him,' said Tweedledum, `when you're only one of the things in his dream. You know very well you're not real.' (rio-me sempre com esta afirmação peremptória de Tweedledum, como se estivesse a dizer uma coisa muito normal, do estilo, "sabes muito bem que tens de ir à escola" ou algo semelhante).
`I AM real!' said Alice and began to cry.
`You won't make yourself a bit realler by crying,' ("a bit realler", outra pérola) Tweedledee remarked: `there's nothing to cry about.'
`If I wasn't real,' Alice said -- half-laughing though her tears, it all seemed so ridiculous -- `I shouldn't be able to cry.'
`I hope you don't suppose those are real tears?' Tweedledum interrupted in a tone of great contempt.
`I know they're talking nonsense,' Alice thought to herself: `and it's foolish to cry about it.' So she brushed away her tears, and went on as cheerfully as she could. (aqui está, vontade indómita de existir; não há qualquer argumento racional e lógico para a existência, ou se há, Alice não o consegue encontrar. Descartes, dá cá um saltinho que tens de vir resolver isto).
Aproveito para dizer que a edição que tenho da Alice é muitíssimo boa, "The Annotated Alice", edição crítica de Martin Gardner, publicada pela Penguin, e com os lindíssimos desenhos originais de Tenniel. Vale muito a pena, para todos os fãs da querida Alice. A maravilha da Internet também me informou de que Tim Burton está a preparar a sua versão cinematográfica da obra de Lewis Carrol, o que me deixa em grande expectativa, uma vez que, fã de Burton que sou, não consigo lembrar-me de ninguém melhor para levar Alice ao silverscreen.
3 comentários:
Eu estive no CCB! (Não sei porquê, assim de repente senti o peso dos anos) E foi uma das melhores peças de teatro que vi na minha vida.
Para os curiosos da Alice recomendo uma BD fabulosa chamada Alice in Sunderland. E venha lá o Burton que já faz falta...
Li este comentário e fiquei verde. Verde, verde, verde - de inveja. :)
Obrigada pela recomendação da BD, vou ver se a encontro para ler. O que encontrei na net pareceu-me bem interessante.
Rita muito obrigada pela dica, vou mesmo procurar a edicao que falas. (e já agora também agradeco ao Bruno pela dica da BD...também espero ansiosamente pela versao do Burton!).
Acabei de descobrir o teu blog e estou a adorar :-)
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