segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Demonstração de como todos os livros nos fazem pensar, até mesmo aqueles que não são assim muito bons

Quando era mais pequena, li um livro daqueles típicos de literatura para mulherzinhas, um clássico francês que se chamava "O Romance de Isabel", de Berthe Bernage, penso. Deveria, aliás, ter dito "livros", pois este "Romance" era uma coisa estóica de não sei quantos volumes, que eu li avidamente, porque gostei muito. (na hipótese, que me aventuro a classificar de improvável, de alguém querer ler esta obra, devo avisar que daqui para a frente há spoilers). Não me lembro bem da história toda, que ainda dava umas voltas, mas lembro-me de que, quando Isabel adormecia, a cena era descrita de forma muito poética ("e, quando os olhos se fechavam sobre a claridade azul..." - a tenra idade fez-me achar isto lindo); lembro-me também de que Isabel tinha um noivo que foi para a II Grande Guerra; que tinha uma madrasta má que, tendo fatalmente escolhido a Normandia para ir de férias no Verão de 1944, acabou por ser severamente castigada. Que justiça poética tão cruel.
De qualquer forma, lembro-me de forma vívida que esta madrasta, antes do azar do Dia D, fazia da vida do pai da Isabelinha uma verdadeira miséria, tratava-o por "manga de alpaca" e dizia que ele era pouco homem, e portanto o pai de Isabel, qual recatado Kafka na repartição, escrevia poemas angustiados nas horas livres. Depois publicou os poemas e ficou famoso, e aí já a madrasta gostava dele, mas o pobre pai da Isabel pagou caro esta felicidade conjugal, porque a sua veia artística começou a declinar e passou a escrever maus poemas, levando os críticos a interrogarem-se:"Será que um artista, para ser bom, precisa de ser infeliz?".
Nunca me esqueci deste pormenor do "Romance de Isabel", e sempre pensei nisto. Alguém me dizia, há uns anos atrás, que tinha deixado de gostar de Paul Auster agora que ele estava bem casado, com filhos e feliz, porque só escrevia superficialidades. A felicidade impedia-lhe a boa escrita.
Acreditando na capacidade criativa do pessimismo, e desconfiando sempre da displiciência do optimismo, tenho tendência para pensar que isto será verdade.
Haverá exemplos de grandes poetas e escritores abertamente felizes, que não têm nenhuma ferida aberta, nenhum problema mais marcante que os torne interessantes? Não me consigo lembrar de nenhum. Como já escrevi antes, se até o Almeida Garrett, que me vem sempre à cabeça por se saber que foi vaidosão e exuberante, tinha os seus sofrimentos e torturas, e que escrevia, precisamente, sobre isso, talvez a felicidade impeça, de facto, a boa escrita.
É em momentos como este que o meu pessimismo até sorri e fica contente por não ser artista.

3 comentários:

José Bandeira disse...

Trocar um "olha como sofro" por um "olha como sofro magnificamente o que sofro" ajuda, acho. Mas não queria ser categórico nisso, que sei eu, um ignorante.

What a beautifully written blog! (só para ser bilingue :), vim cá parar pela Adriana e foi uma revelação, mais, um réveillon! (ok, trilingue, e note o ponto de exclamação posposto a réveillon).

Parabéns e um ano feliz.

Rita F. disse...

JB, fico muito contente que tenha gostado da minha querida Rua.
Além do ponto de exclamação, o que também gostei verdadeiramente no seu comentário foi o "posposto". Muitíssimo bom.

Xantipa disse...

Eu ia fazer as apresentações: Rita, Zé Bandeira; Zé Bandeira, Rita. Mas como já estão feitas, não preciso.
E para mostrar mais a inutilidades deste comentário, a verificação que o blogger me pede que faça diz «releya», algo que faço pouco, como se vê...
Beijinhos, minha querida!
Tia N.