quarta-feira, 28 de julho de 2010

Calor

Há dias e dias.
E há dias em que, sinceramente, nada do que normalmente valorizamos importa o mínimo que seja. Dias em que compreendemos que, verdadeiramente, e como Lobo Antunes uma vez escreveu numa crónica, todos os livros do mundo não valem uma noite de amor. Que a vida não se vive em museus, nos poemas do Cesário Verde, nos quadros do Ucello, em discussões sobre didácticas, pedagogias, reformas, filosofias, metafísicas, músicas e musiquinhas, concertos e bares e restaurantes de sushi que não interessam a ninguém, muito menos ao menino Jesus ou ao Camões, que, coitados, já têm tanto com que se preocupar.
Dias em que, com o calor que está, o que salta à vista é que estar de rabo sentado com um copo de água fresca é tão importante como qualquer livro do mundo, ou até mais. Que nada do que alimenta a mente faz qualquer falta - a mente alimenta-se do corpo e isso basta-lhe. Que nada mais há para além do não pensar, e que isso chega.
Tudo o resto são pormenores, infelizmente.
Acrescento timidamente Os Maias ao copo de água fresca, mas fico-me por aí. Há mais em que não pensar, há mais em que viver.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Ainda há quem veja televisão?, ou: singela homenagem à telenovela brasileira

Eu acho graça a ter em casa um sistema que me permite ter não sei quantos canais televisivos que não vejo. E não vejo, não por não ter tempo, mas sim porque, pura e simplesmente, não encontro nada para ver. Nada, nada. Não se trata aqui de não existirem bons programas de TV - eu acho que existem, mas ou não passam nos inúteis canais dos meos e zons e quejandos, ou passam atrasados, ou tarde e a más horas, ou são interrompidos, ou etc. De modo que, neste momento, a minha pessoa encontra-se a pagar um daqueles fabulosos pacotes de telefone + TV + internet apenas devido ao telefone grátis e à internet rápida, complementada por downloads ainda mais rápidos. A televisão, de que eu tanto gostava em pequena, vistese-a? Era o viste-la.
Ok. Sei que a RTP2 ainda tem umas quantas coisas que valem a pena. Os canais de informação vão tendo. Mas são coisas tão esporádicas. Não há nada ali que faça verdadeiramente falta, nem qualquer programa inovador que valha muito a pena ver. Isto para não falar das tentativas de canais novos, aquele interactivo em que se escolhe o programa, Q ou o que é. Nunca lá vi nada de jeito. É tão moderno, tão urbano, tão em cima do acontecimento, tão criativozinho que me dá vontade de lhes varrer as teias de aranha. Que enjoo.
A internet é que safa a coisa. Todos os bons programas de TV que se possam querer ver estão na net, e é bem mais simples e barato arranjá-los lá do que ficar à espera que os canais em Portugal se lembrem de os passar.
O que me surpreende é que os senhores da televisão não tenham ainda "realizado" este estado de coisas. Não percebo o tipo de público a que se dirigem. A quem não tem internet? A quem for parvo? Uma combinação de ambos, ou não sabe/não responde?
No entanto, devo dizer que sinto uma certa saudade de ser pequena e ter menos complicações na cabecinha, já que tal me permitia vibrar com cada novo episódio da telenovela, brasileira e da Globo com se quer, as únicas verdadeiras telenovelas do mundo. A telenovela. O que eu me lembro das discussões sobre a Kananga do Japão, em que a Dora ia para a rua no Rio de Janeiro dançar com o namorado malandro e de má vida, todo vestido de branco, da Tieta, com aquele genérico da senhora desnuda que pôs o país todo em choque (oh, sr Fradique!, diria Eça), a Betty Faria que volta em glória à aldeiazeca que a desprezara, o inesquecível Roque Santeiro, a viúva Porcina, o Sinhozinho Malta, tou certo ou tou errado, e no último episódio mostraram o cientista estranho, acho que era o Professor Astromar, a transformar-se em lobisomem e tudo... ai, o que eu gostava destas animações todas, das cenas de escandaleira e gritos, cafageste!, de choradeiras e paixões, e ainda por cima com bons actores, Lima Duarte, Regina Duarte, Marília Pêra, Glória Pires.
Tenho saudades de me entusiasmar assim. Agora, já não tenho paciência para telenovelas, mesmo que brasileiras. Embora se haja produto que me tenha ensinado a apreciar um bom drama, uma boa faca e alguidar, esse produto foi sem dúvida a telenovela brasileira, e aqui deixo o meu obrigado. Só não aprendi mais porque a minha mãe impunha limites severos na visualização e não me deixava ver os episódios todos à minha vontade.
E para terminar - há par romântico mais espectacular do que Glória Pires e Fábio Jr? Qual Kate e Leo, qual o quê, se é para ser piroso, que se assuma a piroseira e se vá à fonte, ao original. Glória e Fábio forever, é o que digo.
Bom. Isto para dizer que hoje em dia não vejo muita televisão.


Má memória


Estive a ver se encontrava, na Crónica Geral de Espanha, a narrativa da Batalha do Salado, em que o herói é o mestre da Ordem dos Hospitalários, que por acaso calha ser também D. Álvaro Pereira, o pai do Santo Condestável. Giro.

Neste episódio, em que está tudo ocupado a lutar contra os mouros, D. Álvaro está à procura de qualquer coisa de que eu agora não me lembro mas que é essencial para ganhar a batalha, e dizem-lhe algo que eu agora também não me lembro, mas que resulta no Mestre não conseguir encontrar o que procurava, que, como disse, não me lembro o que era. O que me lembro é que há uma frase magnífica em que se descreve o pesar de D. Álvaro pela aparente derrota, e que reza mais ou menos assim: "...e D. Álvaro foi d'esta muy coitado".

Tão lindo. Tão lindo, tão lindo.

Outra coisa de que me lembro é de ter gostado muito de todos os excertos da Crónica Geral de Espanha e dos Livros de Linhagens de D. Pedro que li. Não foram muitos, mas chegaram para compreender que a prosa narrativa medieval é encantadora, porque é ali que nasce tudo.

Este excerto do D. Álvaro muy coitado foi sublinhado por mim e tudo. E agora não o encontro de forma nenhuma. Deve estar enterrado algures, nas resmas e resmas infindáveis de papéis que por aqui pululam. É exasperante.

E deste me vou mui coitada. A Crónica está disponível online, edição crítica de Lindley Cintra, o Grande, de modo que se alguém souber novas do tal excertozinho, alvíssaras, ai Deus e u é.

domingo, 25 de julho de 2010

Materialismo vs eremitismo


Estive a ver uns palacetes em Sintra para comprar (pausa para rir, evidentemente). Na internet, encontram-se uns jeitosos a partir de um milhão de euros. Estamos a falar de um T16 com possibilidade de garagem. Não está mal, embora quanto a mim tudo o que não seja T18 não tenha aquela classe.
A primeira coisa que eu fazia se me saísse o Euromilhões, que eu por acaso nunca jogo, era comprar a Quinta da Regaleira. Comprava aquilo tudo e nunca mais ninguém lá punha os pés sem ser eu. Não mudava nada, porém. Quanto muito, arranjava lá um cantinho para construir uma piscinita, para nem sequer ter de sair de férias para a praia. Passaria, de bom grado, o resto dos meus dias prisioneira na Quinta. Encomendava DVDs e livros da internet. Lia jornais on-line e mandava os supermercados entregarem-me comida à porta. Não é preciso mais nada.
É por isso que penso que, por exemplo, eu sou aquele tipo de pessoa que estava bem como eremita. Qual era o problema de ficar numa propriedade ajardinada, a apanhar laranjas quando está calor para fazer sumo, fazer compras na Amazon e não ter ninguém a chatear? Não há problema nenhum.
Há certas pessoas que não têm feitio para viver uma vida de isolamento. Eu não sou dessas pessoas. Os meus gostos são simples. As minhas exigências são mínimas. Dêem-me a Quinta da Regaleira e nunca mais ouvem falar de mim.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Sintaxes

Cheguei a uma conclusão no que respeita à sintaxe da língua portuguesa.
Não gosto de frases pequenas, e não gosto das chamadas não-frases. Acho que entrecortam os textos de uma maneira feia.
Quando se escreve, por exemplo:
Tenho saudades tuas. Muitas.
Em geral, não gosto disto. Prefiro apenas "tenho muitas saudades tuas", com o sujeito e o predicado em seu devido sítio, organizadinho, escorreitinho. De outra forma, parece que estamos a repartir ideias, o que torna a leitura um bocado desagradável.
Talvez as pessoas usem esta técnica para enfatizar, por exemplo: "concordo. Tanto.", mas quanto a mim isto cria um certo efeito sentimental que me parece meio escusado. Em geral, sentimentalismos ostensivos incomodam-me um tanto ou quanto, especialmente na escrita. Mas talvez eu também não lhes consiga fugir e estou para aqui a criticar.
Era. Só. Para. Dizer. Isto.
Hoje. Não. Tenho. Muito. Que. Contar.
Ultimamente. Não. Tenho. Tido. Muitas. Ideias. De. Modo. Que. Também. Não. Há. Necessidade. De. As. Enfatizar. Com. Ou. Sem. Frases. Pequenas.

Redenção


Menu do almoço deste Domingo que, como se compreenderá, foi igualmente a única refeição do dia:

Entrada - gaspacho fresquinho e apurado, com guarnições (cebola picadinha, tomates e pepinos picadinhos, generosos pedaços de pão frito, ovo cozido picadinho)

Prato principal - sardinhas na brasa, carapaus na brasa e seu acompanhamento, por outras palavras, batata cozida, pimentos assados, salada mista (ou mística, como se prefere em certos estabelecimentos) - nem o suculento rabanete lhe faltava - pão de milho em abundância, ainda morno, azeite, aquele molho que tem um nome que eu não sei e que é azeite, cebola picada, salsa ou coentros e imensa paprica, como diria o grande Herman.

Sobremesa - salada de fruta, mousse de chocolate, pão-de- ló.

Espectacular.
Não tão espectaccular é o efeito a posteriori que a conjugação de sardinha e pimento produz e do qual ainda sinto resquícios, mas enfim, os grandes prazeres encerram eles próprios a sua dose de sofrimento. A vida é assim.
E aqui se encerra esta série de posts sobre comida porque pronto, sinceramente, também já aborrece.
Achei tanta piadola a isto.
Muito bem visto.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

These are a few of my favourite things

Bacalhau com natas.
Bacalhau assado.
Bacalhau cozido com grão.
Sardinhas assadas com pimentos.
Robalo grelhado.
Dourada grelhada.
Cherne no forno.
Arroz de marisco.
Gambas grelhadas.
Peixe frito com arroz de tomate malandrinho.
Petingas e jaquinzinhos, que ainda por cima não dão trabalho a comer.
Peixe no forno (aquele que é gordo e grande, não sei se se chama cardeal ou imperador, só sei que é muito bom), com muita cebola e molhenga do próprio peixe.
Arroz de tamboril.
Caldeirada.
Vinho branco ou tinto.
É só isto.

Peixe!


Por razões geográficas, tenho comido muito pouco peixe, que é como quem diz, há semana e meia que não como peixe. E compreendo agora como tal prejudica o estado de espírito.
A carne embrutece um bocado. Sanguinolenta, animal, pesada, acompanhada por molho ou batatas ou arroz, tudo ali se conjuga para nos cair no estômago como uma bola mal amanhada de massa pastosa, avermelhada, que se espalha pelo sangue e nos torna moles, indolentes, pusilânimes, dormentes.
Nada como um peixinho grelhado para animar. Neste momento, sinto que se comesse peixe, o sangue correria nas veias com outra força, o coração bateria com mais aprumo, o cérebro, que sinto perro, enferrujado, estulto, sacudiria todas as teias de aranha e entraria rapidamente no seu funcionamento mais perfeito, bem oleado e eficaz, pronto a decifrar todas as complexidades do mundo exterior que, neste momento, me parece uma amálgama meio amorfa de cores, sons desarticulados, movimentos vagos.
De modo que, neste momento, os meus sonhos estão repletos de suculentos robalos bojudos, que chegam até mim com a pele a estalar, dourada e saborosa, e com o garfo, cuidadosamente, afasto a cobertura estaladiça em que brilham os grãos de sal e vejo as postas brancas a fumegar, a esperar que o garfo as desfie com cuidado em gordos pedaços que irão acalmar o meu sistema digestivo, que deles bem está necessitado. Ou, em alternativa, um bacalhauzinho na grelha, a cheirar a alho e azeite, adornado por batatinhas bem esmurradas, a saltar da pele castanha. Ai.
Que bem que se come em Portugal.
Que bem que o peixe faz ao espírito.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Nada em que pensar

Eh pá, está a dar o Titanic na televisão e lá está a cena da porta.
Isto intriga-me, a sério que me intriga. A rapariga em cima da porta e o rapaz a congelar na água. Mas porque é que não se revezaram? E agora lá está ela a chorar, muito espantada e triste por ele ter congelado.
Um bocadinho mais de realismo. Se for só com o barco a partir-se ao meio e a afundar, não vamos lá. Um bocadinho mais de realismo.

Escritas


Quando escrevi este post, não tinha encontrado muitos exemplos de mulheres detentoras de uma escrita masculina. Agora, acho que já encontrei:

I'm member and preacher to that church where the blind don't see and the lame don't walk and what's dead stays that way.

Não sei definir o que é uma escrita masculina ou feminina, como disse antes, nem quero dizer que uma escrita dita "masculina" é superior à feminina (as irmãs Bronte, por exemplo, que eu adoro e admiro desde sempre, têm uma escrita feminina, quanto a mim; até o Monte dos Vendavais, tão violento e intenso e tal e coisa, me parece muito feminino). E, no entanto, Flannery O'Connor, neste Wise Blood, tem uma dureza, uma circunspecção, uma sobriedade que, não soubesse eu ser este um livro escrito por uma mulher, diria vindo do Cormac McCarthy ou assim. Hazel Motes, personagem principal, é de uma brutalidade e antipatia tais que fazem lembrar aquele sociopata do Haverá Sangue.
É assim tudo a mesma coisa, tudo do sul.

vã glória de aconselhar

Se há coisa de que eu gosto, é daquelas pessoas que sabem sempre tudo, inclusivamente o que é melhor para nós. É uma idiossincrasia minha, gosto, pronto. E aprecio aquele instinto quase maternal, ou paternal, que elas têm, dizendo, "se queres um conselho, não te candidates ao emprego tal, que não vais a lado nenhum", ou "se comprares casa no sítio x, estás a comprar mal, vais arrepender-te", e assim e assado.
Têm opinião sobre tudo. É outra coisa de que eu realmente gosto, pessoas com opinião sobre tudo. Desde sapatos a vestidos e verniz para as unhas e cabeleireiros, passando pelo preenchimento do IRS, ginásios onde compensa ir e em que horário, coisas que se devem ou não comprar no Pingo Doce,até chegar a tarifários de telemóvel, há gente que sabe sempre tudo e, por consequência, partilham connosco a sua dota opinião, em particular - e isto é importante - se a gente nunca a pediu. Penso que o facto de não pedirmos opinião é, aqui,um factor de grande importância - estas pessoas sabedouras dão a sua opinião na razão inversa às solicitações que recebem, isto é, quando menos pedimos, mais opiniões recebemos. Isto é de uma caridade exemplar.
Por acaso lembrei-me disto porque me estava a lembrar de uma das universidades que frequentei. Antes de ir para lá, disseram-me, "Rita, aproveita bem. Essa universidade é das melhores".
Eu mal conhecia esta pessoa. Esta pessoa, que me disse isto, mal conhecia a universidade para onde eu ia. E, no entanto, sentiu esta necessidade gira de me aconselhar a "aproveitar" bem. Que faria eu se ela não me tivesse dito para aproveitar bem porque a universidade era das melhores? Certamente chumbava tudo, andava para aí perdida e drogada, ao invés de ter a vida que tenho agora que, realmente, sim senhora, também deve ser "das melhores", especialmente a atentar no meu saldo bancário, sempre tão saudável. Nem a crise o abala.
Isto tudo para dizer que as pessoas que sabem sempre tudo nunca sabem nada, são normalmente parvas e deviam perceber que o mundo não quer nem precisa da sua vã glória de mandar.
E com isto me calo.

Love affair #4



Às vezes, há certas coisas que não elevam a mente mas que descontraem o corpinho.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Coisas de que são feitos os sonhos

Nesta exposição muitíssimo interessante da National Gallery explicam-se algumas, digamos que, falcatruas do mundo da arte - obras falsamente atribuídas a mestres apenas para se tornarem sucesso de vendas, obras modificadas por aprendizes tão argutos e proficientes que a diferença entre o seu traço e, por exemplo, o de Rembrandt se torna quase indiscernível, ou pura e simplesmente quadros que se pensaram, durante muitos anos, falsos e que afinal eram verdadeiros. Como por exemplo, este:


Esta obra de Ucello não cessa de me maravilhar. Parece-me quase inacreditável que tenha sido produzida no século XV, quando me parece tão moderna, vinda de uma banda desenhada do século XX. Repare-se no magnífico dragão, na estética da princesa, nas nuvens de fumo em segundo plano. E porém, Ucello pintou esta maravilha por volta de 1450. Durante séculos, pensou-se que era uma fraude - pintada em tela, coisa rara para a altura por ser tão frágil, e com cobertura a óleo, ao invés de "tempera" de ovo, não poderia com certeza ser obra quatrocentista. E, afinal, era.
E porém. Imaginemos que nunca se conseguira provar que Ucello pintara este dragão inesquecível em 1450, e que a modernidade do quadro anunciava com certeza um século mais recente. Pertenceria o quadro, efectivamente, ao século XV? Como, se todos acreditariam que não?
Sabemos com grande grau de certeza que Van Gogh pintou girassóis, que Caravaggio pintou Baco e cestos de fruta e martírios claros e obscuros, que Guardi pintou Veneza. Mas, no fundo, acreditamos - acreditamos que os girassóis são de Van Gogh e que Veneza é de Guardi. Se houver a possibilidade, remota, é certo, de os quadros que conhecemos terem saído da mão de um desconhecido qualquer, isso não faz, com certeza, diferença.
Temos situação semelhante com as Cartas da querida Soror Mariana. Alguns dizem que quem as escreveu foi um padre francês, que a pobre Soror lá viveu enterrada no seu convento sem nunca ter conhecido rega-bofes menos próprios com tropas. Outros, como eu, pura e simplesmente acreditam que a querida Marianinha Alcoforado escreveu as cartas - principalmente depois de as ter lido. E, portanto, se eu acredito nisto, o facto de as cartas terem sido, eventualmente, escritas por outra pessoa qualquer não me faz qualquer diferença.
A Gloria Swanson também acreditou até ao fim que o Sr DeMille aguardava o seu famoso close-up. A diferença, no caso dela, é que era a única. Mais ninguém a acompanhava na crença. No entanto, quando o mundo inteiro acredita numa mentira, e se não há ninguém que saiba a verdade, onde está a fronteira entre a verdade e a mentira?
Como dizia o velho e sábio Shakespeare, tudo é ilusão.
Para acabar, a belíssima exposição na National Gallery é, mais uma vez, de graça.
E para os queridos leitores que tiveram a paciência de ler este longo post até ao fim, o meu sentido obrigado, boa noite, até uma próxima e muita saúde.

quarta-feira, 7 de julho de 2010


Mas, neste edifício, há, em compensação, muitas pessoas inteligentes, que lêem livros e falam de coisas super-científicas quando vão tomar café. Não sei é dizer se jogam Sims3 ou não, porque muitas deles têm computadores e podem muito bem jogar às escondidas.
Agora a sério - a Biblioteca Britânica tem um painel bem visível à porta, lindíssimo, que diz: "Come in. Knowledge freely available".
É mesmo de graça. Com ou sem Sims3.

Eu posso gostar de Sims3 mas ainda sou pessoa

Pode ler-se, no Y da semana passada, uma entrevista com Alberto Manguel em que este diz que dantes as pessoas tinham vergonha de dizer que eram estúpidas, que só se interessavam por moda ou por jogos de computador, e que hoje em dia já não; hoje em dia, destrói-se "o valor do acto intelectual" e já ninguém tem vergonha de ser estúpido - pelo contrário, é, às vezes, motivo de vanglória.
E a razão para, em geral, haver mais gente estúpida é porque há muito dinheiro a ganhar com gente estúpida e pouco dinheiro a ganhar com gente inteligente. Pois é.
Nota para dizer que, depois de ler esta entrevista, senti-me muitíssimo mal por ter escrito aqui que gosto de jogar Sims3. Se tivesse lido isto antes, nunca teria admitido tal coisa em público. Agora é tarde demais.
Continuando, que isto foi só uma espécie de declaração de interesse, muito honesta, e isso é de louvar. Dizia-se, então, que há mais dinheiro a ganhar com a estupidez do que com a inteligência. Sim. Mas também há um argumento falso de que os media e o consumo promovem a estupidez porque "é isso que as pessoas querem".
Os media e a sociedade de consumo promovem a estupidez porque é mais fácil ser estúpido do que ser inteligente. Não acredito muito que sejam as pessoas que procuram a estupidez. Ah, mas as pessoas vêem o Big Brother, e lêem o 24 Horas (agora já não - faz falta aqui o Nelson, dos Simpsons. Favor confirmar http://www.youtube.com/watch?v=AzSnk3Rbkgk) e gostam das telenovelas da TVI. Pois é. Mas também gostam de outras coisas. Ou poderiam gostar. A gente habitua-se a tudo.
De modo que a estupidez parte, de facto, dos media e deste apelo desenfreado ao consumo (cada vez tenho menos respeito pelos meios de comunicação social, especialmente porque reconheço a sua importância fundamental; vê-los insistir em trilhar um caminho de estupidez fácil e de pouco rigor é que é inaceitável). Sim, quem vai na conversa tem a sua parte de estupidez. E talvez haja gente mesmo estúpida. De facto, há. Mas eu tenho uma inefável, estranhamente optimista sensação de que são uma minoria.
Wishful thinking.

Cotovia voa voa


Comemoram-se os 50 anos de To Kill a Mockingbird (nota para dizer que a tradução do título em português, Não Matem a Cotovia, não faz justiça à grandeza do livro; o título português parece uma coisa Paulo Coelho - hippie - ecologista chato. Há que pensar noutras opções).
Harper Lee, que escreveu o livro, ainda vive, é uma reclusa e não fala com ninguém, apenas ocasionalmente permitindo que os seus amigos e familiares dêem entrevistas por ela. O seu grande amigo de infância, Truman Capote, gostou sempre de espalhafato até morrer, mas não escapou a um certo anti-climax à hora da morte. Talvez Lee queira evitar esse sentimento de perda e, antecipando-o, refugia-se do mundo, evitando que este a deite fora no fim, qual Greta Garbo.
Sempre me interroguei porque é que Harper Lee nunca voltou a escrever um romance, considerando que o único que produziu é tão bom. E talvez a razão se encontre aqui, na qualidade imensa do primeiro romance.
Talvez haja um limite, um racionamento, da inspiração. Talvez certas pessoas sejam brilhantes, mas apenas consigam usar o seu brilhantismo uma vez na vida. Escrevem aquilo e pronto. Harper Lee escreveu a cotovia. Orson Wells fez o Citizen Kane. Emily Bronte escreveu Wuthering Heights.
Outras pessoas há que conseguem racionar com mais equilíbrio o seu talento. Picasso não pintou só a Guernica; Saramago não escreveu só o Memorial; Truman Capote não escreveu só o In Cold Blood; Beethoven não compôs apenas a 9ª Sinfonia, e por aí fora.
Porém, o que parece certo é que há sempre um momento maior, uma chama mais intensa, que depois se apaga necessariamente. Há pessoas que escrevem melhor quando começam, e para o fim da vida já não se aturam. Há outras que estão apenas a praticar com os primeiros livros, e os últimos que publicam são verdadeiramente os monumentos. Seja qual for o caso, o momento de glória parece ser escasso, reduzido, único.
Não faço ideia porque é que Harper Lee não fala com ninguém, não publica romances, prefere que se esqueçam dela. Talvez saiba que nunca conseguirá escrever outra cotovia. Talvez prefira não escrever. Talvez tenha escrito mas não queira publicar. Talvez tenha medo do olhar crítico daqueles que esperam dela um outro rasgo de brilhantismo.
As pessoas brilhantes têm, de facto, um caminho duro a percorrer. Têm a responsabilidade de cumprir sempre com as exigências do seu brilhantismo, e o que fazer naqueles dias em que a cabeça só dá para pizza e cerveja? O mundo à espera, necessitado, de um monumento, do romance, filme, quadro fundamental, ou da revolução do século XXII, e a pessoa capaz de fazer tudo acontecer está ali, a beber cerveja e a comer pizza.
Talvez Harper Lee tenha decidido que a sua contribuição para o mundo estava feita, concretizada e acabada com um único romance. Humildemente, a minha opinião é que deveria ter continuado a publicar romances, mesmo que tudo o que escrevesse não passasse de algodão doce que enjoa e dá dores de estômago.
Mas talvez seja um peso demasiadamente grande, aquele que Harper Lee escolheu não carregar. E, considerando o livro que nos deixou, a gente perdoa.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A merda acontece


Ao que parece, o escritor Martin Amis recusa-se a aceitar, e consegue até bloquear, uma sua biografia escrita por um professor da Universidade de Ulster, Richard Bradford. Amis não gosta de certos aspectos e eventos mencionados, não concorda com o retrato que é pintado, é amigo de quem se diz que é inimigo, inimigo de quem se diz que é amigo, e quer manter a ex-mulher bem resguardada de atenções bisbilhoteiras.
A vida retratada é, de facto, de Martin Amis. Parece natural e legítimo que tenha uma palavra a dizer. Mas, como igualmente se compreende, a palavra que Amis tem a dizer não é apenas uma palavra ou um esclarecimento de factos - é, verdadeiramente, uma errata. O que ele quer, como qualquer ser humano, é, muito naturalmente, fazer uma errata à sua vida - elimina o que ficou mal escrito, apura o que está bem escrito.
Eu adorava, também, poder fazer tal coisa. Já escrevi antes que me dava um jeitão fazer uma errata à vida - onde fui burra, deve ler-se "fui extremamente inteligente"; onde fiz figura de parva e sofri rejeições, embaraços, parvoíceis, desentendidos, equívocos e quejandos, deve ler-se "fui presciente, consciente, ciente, inteligente". E assim por diante. Se, para além disto, eu pudesse publicar esta errata, sabendo que os olhos do mundo pousavam, interessados, em mim, tanto melhor. Qual seria a diferença entre aquilo que realmente sou e aquilo que o mundo acredita que eu sou? Além de mim, não haveria ninguém que pudesse contradizer a errata e afiançar a verdade - a verdade, era eu que a construía. E o meu novo Eu, corrigido e emendado, permaneceria irrepreensível, à imagem e semelhança da perfeição que eu quisesse.
Ou seja - com uma errata, seria a minha hagiografia, e não a minha biografia, que eu poderia construir, e fá-lo-ia com todo o prazer. Martin Amis está na posição de o conseguir.
Mas, como Bardford aponta e bem, uma biografia não é uma hagiografia. Como se diz em estrangeiro, a merda acontece e faz parte da vida. É uma chatice, mas também uma evidência a que ninguém escapa - a vida, no fundo, é como um cadastro que nunca se apaga. A gente faz uma parvoíce qualquer e aquilo fica lá sempre, no passado, a pulsar, a lembrar-nos daquela vez em que fomos tão imperdoavelmente parvos, e agora o precedente está criado e não há perdão.
Kierkegaard sabia disto muito bem e Martin Amis devia lê-lo.
É o meu conselho para ti, ó Martin.

sábado, 3 de julho de 2010

Normal

Conheço uma pessoa que tem muito jeito para descrever gente normal, como se constata pelo seguinte excerto:

...e, finalmente, aquela categoria de pessoas que é possível caracterizar com uma só palavra: cinzentas. São pessoas que, por força da roupa, da cara, do cabelo e dos olhos, têm uma aparência turva, cinzenta, como um dia em que não há tempestade no céu mas também não há sol, nem isto nem aquilo: paira uma neblina que tira toda a nitidez aos objectos. (...) Tais pessoas são completamente impassíveis, caminham sem olharem para nada, calam-se sem pensarem em nada.

É a mesma pessoa que, no seu Almas Mortas, descreveu certa personagem como "daquelas pessoas que não é carne nem peixe", o que está bem visto.
A normalidade parece muito simples, sem nada que se lhe diga, mas na verdade não é. Carne é carne; peixe é peixe; ambos são possíveis de definir. O que é não ser carne nem peixe, nem um nem outro? Não se consegue explicar.
Toda a gente pensa que não é normal porque toda a gente quer ser especial. Mas, na verdade, toda a gente é normal. A normalidade também tem destas coisas - quanto mais lhe queremos fugir, mais normal nos tornamos, porque é normal querer ser especial e não conseguir.
Gosto de ler sobre a normalidade. Aprecio muitíssimo quem a identifica e cristaliza exemplarmente. Não é fácil. O extra-ordinário chama mais a atenção do que o ordinário. É mais fácil escrever sobre ele.