domingo, 29 de novembro de 2009

Toma lá 100 escudos e não gastes tudo em freiras

Por um lado, gosto do Natal. Gosto das compras (sim, é verdade), do descanso, dos doces, da descontracção da família, do entusiasmo tão peculiar das crianças nesta altura, das decorações todas, gosto sobretudo que haja pelo menos uma época do ano em que toda a gente sente a obrigação de ser boa, embora ninguém cumpra efectivamente este desiderato da bondade.
Por outro lado, não gosto do Natal. Não gosto porque eu, tal como quase toda a gente, não me torno necessariamente bondosa por esta altura, nem mais espiritual, nem mais nada. Quanto muito, tenho mais consciência da minha maldade e do meu egoísmo e sinto-me mil vezes pior com isso do que nos restantes meses do ano, o que provoca ansiedade e stress, o cabelo e a pele ressentem-se, e a depressão está a um passo. É um fenómeno complicado.
Vê-se mais gente a pedir para a caridade, na rua, durante o Natal. Cancros, crianças abandonadas, drogados, sem-abrigo, há gente a pedir para tudo. E há pedintes. Há os pedintes de Lisboa, que estão sempre em todo o lado, mas que no Natal parecem ainda mais flagrantes, mais incomodativos, mais berrantes. Cortam o coração de forma ainda mais profunda, são mais difíceis de ignorar, a gente pensa "mas como é que é possível viver numa sociedade em que estas coisas se tornaram normais?", e depois viramos as costas e tentamos esquecer. E esquecemos. Eu, pelo menos, esqueço, o que é repugnante mas no entanto verdadeiro.
Não consigo dar uma moeda a um pedinte. Não por ter medo que ele vá gastar tudo em freiras, como dizia João César Monteiro, mas porque considero uma indignidade dar um euro, dois, três, quatro, cinco, o que seja, a outra pessoa, que teve o azar de estar ali, naquela situação. Sinto-me mal, sinto que é ofensivo para a pessoa que eu lhe dê dinheiro. Podia ser eu. Não sou, mas podia ser. Eu tive sorte, a outra pessoa teve azar. E o poder que eu, ou qualquer outra pessoa como eu, acaba por ter numa situação como estas, face a um pedinte, é algo de ilegítimo, de grotesco, de bizarro. Não consigo lidar com esta bizarria grotesca, e por isso nunca dou dinheiro, embora saiba que talvez devesse dar. Prefiro consolar-me numa "dor que não dói" e contribuir para instituições de apoio organizadas. Assim é que se ajuda, não é? Não é a dar dinheiro aos pedintes na rua, não é? Sim, claro que é. Por exemplo, aquela senhora que vejo todos os dias na escada do metro, velhota, de lenço na cabeça, com um pequeno cartão riscanhado a preto, "ajude, bem-haja, etc". O meu euro não lhe faria qualquer diferença. Claro que não. O que é que se compra hoje em dia com um euro, não é?
Não lhe faria qualquer diferença. Não faria.
Regresso de um blog que fazia muita falta, aqui. Fico muito contente, e que desta vez o blog se mantenha firme e hirto por muitos e longos anos.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Como os sentimentos esdrúxulos, as cartas de amor são naturalmente ridículas

Eu dantes tinha uma mania, que era: escrever cartas de amor.
Sempre que pensava estar apaixonada, escrevia muitas cartas; enviava algumas, não enviava outras, mas escrevia sempre muitas. Já nessa altura sabia que Fernando Pessoa as considerava ridículas, mas eu discordava em absoluto. As minhas cartas de amor eram profundas e filosóficas, cheias de verdades importantíssimas sobre a vida e os sentimentos, e seriam tudo menos efémeras. Ou, pelo menos, eu assim pensava, naquela altura.
É evidente que a grande tristeza de crescer é compreender que a verdade está não nas minhas cartas de amor que o tempo levou, mas antes em Fernando Pessoa. É claro que todas as cartas de amor são ridículas, e não só, as minhas em particular ainda são mais, porque as escrevi com a arrogância da convicção de que não eram ridículas. Resta-me a consolação de saber que também eu recebi algumas cartas de amor, e que também estas foram ridículas. De modo que foi troca por troca, o que é simpático refrigério.
E compreendo agora que tudo o que tenha a ver com sentimentos, mimosos estados de alma e doces amores, se reveste de um ridículo que eu não consigo discernir de onde vem, mas que existe. Não estou a falar sequer da parafernália grotesca do S. Valentim, estou a falar de coisas normais, de ver duas pessoas apaixonadas a olhar uma para outra e termos de desviar a cara para não nos sentirmos envergonhados por elas. Devíamos aplaudi-los, e no entanto ficamos ali, contrafeitos, embaraçados, desconfortáveis. Excepto, é claro, quando somos nós os pombos apaixonados, e envergonhamos nós os outros.
Não percebo porque é que o amor tem de ser ridículo, mas o que é certo é que o é. Mesmo. No entanto, talvez este ridículo seja necessário ao amor. O fofinho, o queridinho, tem de fazer parte do amor, mesmo que depois, enfim, a pessoa entre em expiação e compense com uma data de filmes suecos ou qualquer outra coisa que provoque sofrimento e pessimismo, para que o equilíbrio se restabeleça. Mas o fofinho é necessário ao amor.
Eu, porém, cortei com as cartas de amor. São, efectivamente, ridículas. O fofinho não tem de ir tão longe.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Que me metam entre cobertores e não me façam mais nada, que a porta do meu quarto fique para sempre fechada...

Metade da minha vida é passada com sono.
Acordo com sono, vou trabalhar com sono, almoço, fico cheia de sono depois do almoço, os cafés não têm qualquer efeito em mim, passo a tarde com sono, chego a casa com sono, tomo café outra vez, e mesmo assim janto com sono.
Só não tenho sono imediatamente após o jantar. É o único momento da minha vida em que não tenho sono nenhum.
Vejo televisão e não tenho sono.
Leio e não tenho sono.
Ouço música, ouço os vizinhos aos berros, os vizinhos calam-se finalmente e vão dormir, tudo finalmente silencioso, e eu ainda sem sono.
Até quando adormeço, não tenho sono. Acordo no outro dia, desta vez cheia de sono, sem saber bem como adormeci. Espera-me um dia repleto da vontade terrível e cruel de fechar os olhos e descansar, e porém sem o poder fazer.
As pessoas falam comigo e eu só peço que se calem, já que sou perfeitamente incapaz de compreender o que dizem, acontece-me tantas vezes as pessoas falarem comigo e eu a desesperar-me, porque me esqueci daquilo que disseram há dois segundos, distraída que estava, quase sonâmbula. Já estou assim há alguns anos, e portanto hoje em dia já quase toda a gente que conheço se aborreceu comigo, de modo que não tenho amigos, nem conhecidos, nem nada, passo a vida ostracizada e cheia de sono.
Tinha uma amiga que era assim. O caso dela foi ainda pior. Tinha insónias de tal modo agudas que passava a noite em claro. Morria de sono o dia todo.
Deixou de ter energia mórbida para fazer exercício físico mórbido e ficou ela obesa mórbida.
Deixou de ir de carro para o emprego porque teve dezenas de acidentes por adormecer ao volante.
Deixou de ir ao emprego porque não se conseguia levantar de manhã. Foi despedida.
Ficou sem rendimentos. Perdeu a casa. Perdeu o carro estampado. Foi viver com os pais. Engordou ainda mais. Ficou sem poder sair de casa. Continuou sem dormir, embora não tenha a certeza, deixei de me dar com ela.
É essencial saber vencer a insónia.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

The Man with No Name


Se não me estivesse a doer muito a cabeça, falaria de Clint Eastwood e de como o adoro ver, velho e enrugado, a resmungar contra tudo e contra todos e a polir o seu magnífico Gran Torino verde, ou azul, ou o que era, e como adoro aquela dança final no The Good, The Bad and the Ugly, aquele olhar de desprezo, o andar firme, a postura toda convencida, a figura estilizada até à perfeição do duro de roer, batido pela vida e por isso invencível. O criminoso reformado e de bom coração em Unforgiven, o foragido espertalhão de Alcatraz, até o polícia quase psicopata que é Dirty Harry, adoro tudo, adoro o semblante de pedra, áspero, silencioso. Gosto, sobretudo, do facto de Clint Eastwood falar pouco mas, quando fala, é para fazer justiça, ou então para pôr alguém no seu miserável lugar - é que é uma coisa que entusiasma uma pessoa, de facto.
No entanto, o que eu gostava verdadeiramente era de poder, um dia, ver a dança final, icónica, de The Good, The Bad... no luxo de uma sala de cinema, com aquela música intensa e entusiasmante a retumbar. Isso e o Ran. É um sonho que eu acalento.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Ir à rua pôr o lixo

Há uma grande desvantagem relativamente aos momentos catárticos, como por exemplo o concerto dos Massive Attack do post anterior, e que é o sentimento profundo e arrasador da ressaca. Regressei a casa sábado à noite limpa de todos os pecados e inundada por uma alegria eufórica, com os ouvidos ainda a retumbar daquele ritmo contagiante e frenético; acordei Domingo à tarde cansada e sem dar sentido à vida. Era como se as coisas só voltassem a fazer sentido se pudesse reviver momentos semelhantes aos da felicidade da noite anterior. Tinha olheiras e um grande sentimento de frustração.
Voltei para a cama. Doía-me a cabeça e tremia de frio. Passei o dia a chá e bolachas. Não vi televisão. Não consegui ler. Tudo um supremíssimo cansaço.
Hoje, consigo suportar a rotina apenas e só porque penso numa mesa de café, uma chávena escaldada, o líquido a ferver, a comemoração do fim do dia. É só mesmo isso que me aguenta. Sim, porque o concerto, esse, já é passado. Como diria o Herman num dos episódios do Tal Canal, "visteze-o? Era o viste-lo".
As alegrias, as catarses, as limpezas emocionais, trazem muito lixo ao de cima. E depois toda a gente tem preguiça de ir à rua deitar o lixo fora.

Toy-like people make me boy-like


Ai, gostei tanto de os ver este fim-de-semana. De tanto cantar, saltar e dançar, saí do Campo Pequeno a sentir-me quase "expurgada" de aborrecimentos, contrariedades, irritações. A música tem este efeito de catarse. Se todos os fins-de-semana as pessoas pudessem ir a um concerto de uma banda de que gostam muito, muito, muito, não precisavam de ser alcoólicas nem de se meterem na droga. É um conselho que eu aqui deixo, em vez da metadona, que se experimente a música.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

No princípio, eram verbos como este...

D. DINIS

CANTIGA D'AMIGO


Levantou-s' a velida
levantou-s' alva
e vai lavar camisas
eno alto:
vai-las lavar alva.

Levantou-s' a louçana
levantou-s' alva
e vai lavar delgadas
eno alto:
vai-las lavar alva.

(E) vai lavar camisas,
levantou-s' alva;
o vento lhas desvia
eno alto:
vai-las lavar alva.

E vai lavar delgadas,
levantou-s' alva;
o vento lhas levava
eno alto:
vai-las lavar alva.

O vento lh'as desvia;
levantou-s' alva;
meteu-s' alva en ira
eno alto:
vai-las lavar alva.

O vento lh'as levava;
levantou-s' alva;
meteu-s' alva en sanha
eno alto:
vai-las lavar alva.

D. Dinis

Encontrei a transcrição aqui, neste belo blog, que figura também na listinha à direita, e onde se pode encontrar a "tradução" do mesmo poema para português moderno, de Natália Correia. Está aqui o princípio de tudo - da música, da poesia, da literatura, do português. Quer dizer, o princípio está em nós. Poemas como este de D. Dinis talvez sejam, digamos, a "verbalização", e essa, nem todos a conseguem fazer. Só os grandes.

Contra a sinceridade, marchar, marchar

Assim um post à pressa, que tenho uma pilha de papelada aqui mesmo ao pé de mim.
Há uma coisa, acho que talvez já tenha escrito sobre isso, dizia, há uma coisa que eu considero uma daquelas mentiras universais que nos ensinam só porque é bonito, só porque, enfim, as criancinhas ainda têm de crescer com alguns princípios, e que é a sinceridade. Desde quando é que a sinceridade é uma qualidade? Não me parece que seja.
Em primeiro lugar, quando as pessoas me vêm com "olha, desculpa lá a sinceridade", ou "olha, já sabes que eu vou ser muito sincera", este elevado predicado da sinceridade só serve para anunciar, como bem sabemos, que lá vem merda. É o intróito muitíssimo moral que as pessoas gostam de usar para prefaciar uma ofensa, ou algo desagradabilíssimo que já sabem que não vamos gostar de ouvir. Um insulto, portanto ("tu já sabes que eu sou muito sincera - acho que estás a ser parva, acho que és uma besta", etc). Lamento dizer que a sinceridade não atribui elevação moral a ninguém para vir chatear os outros. Não atribui, não.
Em segundo lugar, se desse na cabeça de toda a gente começar a ser "sincera", a sociedade resvalava e esfarelava-se toda, ainda mais do que já está. Todo o convívio humano, toda a base diária que nos permite suportar os outros, assenta em não sermos sinceros. Exemplos:
1.
- Achas que sou boa no meu trabalho?
- Ah, acho que sim... quer dizer, a pessoa tem de estar sempre a fazer um esforço, sempre a estudar, não é, mas sim, acho que sim.
- Ah, obrigada. Então vou continuar, com muita vontade e esforço.
(exemplo de cordialidade, comunicação harmoniosa e, lá está, desonestidade)
2.
- Achas que sou boa no meu trabalho?
- Não, realmente acho que não, acho que és um bocado burra, muito limitada, podes matar-te a estudar que nunca vais perceber isto.
- Minha grande vaca, tens a mania, espera que te vou bater.
(tradução do exemplo anterior em linguagem sincera)

A própria língua está organizada em torno da não-sinceridade. O que é a delicadeza senão uma mentira? O que são as formas de tratamento, o senhor, a senhora, o respeitoso Vossa Excelência, a Sua Majestade, senão metáforas mentirosas que se destinavam/destinam a cumprir um desígnio bem mais importante do que a sinceridade - a harmonia das relações sociais (sim, porque chamar "Sua Majestade" a monarcas como, digamos, D. João III, por exemplo, é realmente uma metáfora mal enjorcada, mas que cumpria o seu propósito)?
Eu sou uma pessoa que é contra a sinceridade. Com a sinceridade, não vamos a lado nenhum. Contra a sinceridade, há que protestar, porque não há interesse em saber o que as pessoas realmente pensam, nem elas, se fossem espertas, teriam qualquer interesse em revelar-nos aquilo que a sua moral sinceridade pensa. A sinceridade é do foro íntimo, é tão íntima como qualquer segredo bem guardado, e é aí que deve ficar - sob pena de ninguém se entender neste pequeno mundo que, já de si, é tão dado à beligerância.

domingo, 15 de novembro de 2009

Manhã Pura

Agora que tenho o meu ipod e respectivo itunes de volta ao seu estado normal (um obrigado encarecido às almas caridosas que me auxiliaram), volto ao fru-fru (haverá expressão mais pavorosa que esta, eh eh?) das playlists e dos shuffles e dessas coisas todas muito deslumbrantes.
Bom, uma coisa que tem despertado o interesse é o facto de haver certas músicas que se adaptam particularmente bem a certas alturas do dia. Já escrevi que, por exemplo, ouvir Tom Waits de manhã é coisa que não resulta. O Tom tem de ter um espírito e um ambiente bem mais obscuros - o que o torna particularmente bom para um dia escuro e chuvoso como este.
No entanto, como ouvir música de manhã é muito importante para mim, pois se não ouço algo de jeito antes de começar a trabalhar, sou, digamos que, uma mistura de zombie ressacado deprimido mal disposto com sede de sangue, o que é bastante negativo (exemplo, retirado convenientemente desse grande filme que é A Noite dos Mortos - Vivos:







mesmo de meter medo),






dizia, como fico num estado miserabilíssimo, preciso, de facto, de uma música matinal eficaz. De modo que ando a estudar uma playlist matinal que resulte mesmo, que condense a mistura ideal de energia, melodia, profundidade e alegria inconsequente, para dispor bem.
Até agora, tenho um top 5, como diria John Cusack nesse outro grande filme que é o Alta Fidelidade, do qual constam:
1. o fundamental e indispensável Unfinished Sympathy, Massive (já escrevi sobre isto antes, não me vou alongar muito sobre esta canção; tenho apenas uma pequena ressalva, que é: bilhetinho para o Campo Pequeno já cá canta, ponto de exclamação)
2. o imprescindível Pure Morning, Placebo (o que eu gosto destes indivíduos, gosto, gosto)
3. Are You Ready To Be Heartbroken, do grande Lloyd Cole (esta música traz à playlist aquela parte da profundidade, da filosofia, para nos convencer que o dia que está prestes a começar tem uma qualquer relevância. Infelizmente, não encontro um vídeo decente desta canção no youtube para postar aqui)
4. Postcards From Italy, dos Beirut (a alegria inconsequente, meio folk, meio havaina, dá vontade de cantar, muito giro e querido)
5. uma escolha recente, mas que não consigo parar de cantarolar, e que portanto consolida o sentimento eufórico e alegre que já vem dos Beirut, e que é You Don't Know Me, Ben Folds e Regina Spektor.

O importante para começarmos bem a manhã é mesmo, reitero, o equilíbrio perfeito entre a euforia alegre e a filosofia. Até hoje, estas musiquinhas têm impedido o meu lado zombie-feio de emergir de uma forma absolutamente descarada, mas sei que ainda há muito trabalho a fazer.
Tenho também pensado na playlist adequada para o fim do dia, quando se sai do trabalho, cansada e farta e a precisar de um mimo. Mas isso fica para outro post, que é matéria mais complexa.


sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Gaja que faz o meu estilo: Elis Regina


Ilumina a mina escura e funda, o trem da minha vida

Esta frase, cantada pela voz grande da Elis e que ouvi em pequena, produziu uma marca indelével na minha imaginação infantil, pela sua força intensa, que me impressionava.
Lembro-me de, em pequena, ver a Elis na televisão, muito sorridente e de cabelo curtinho, e de a ter achado fascinante (sempre fui uma criança com apurado sentido estético no que toca a cabelos). Lembro-me de a minha mãe ouvir "em repeat" este Romaria, de arrepiar. Ouvir a Elis continua, surpreendentemente, a produzir em mim exactamente o mesmo efeito de quando eu era pequena - uma comoção que quase dá um nó na garganta. Límpida e intensa - a voz, a presença, tudo.
E deixo aqui este vídeo. Também de arrepiar, de dar nó na garganta. Grande Elis.




quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Kafka está a rir-se de mim


Provavelmente, este seria o tipo de coisa que deveria escrever no facebook ou twitter, que não tenho, ou quejandos. Mas vou escrever aqui.
Comprei um ipod. Um objecto minúsculo que custa centenas de euros. Enchi-o de música até transbordar. Mudei de computador. E a música que tenho no ipod, que eu comprei, que é meu, por alguma razão que desconheço, não pode ser transferida para o computador, que também é meu. Quer dizer, é tudo meu, paguei tudo sem ficar a dever nada e, alegremente, a querida Apple, qual velha beata a velar pelos seus ricos santinhos, parece não ter pensado num método prático e simples que me permita ter a minha musiquinha na minha biblioteca do itunes, facilmente, sempre que mudo de computador. Se o disco vai abaixo, pumba, vai tudo abaixo. Então mas o quê, agora tenho de ir "queimar" os CDs todos outra vez e perder horas neste processo? Compro um ipod novo?
A culpa é toda minha. Isto é uma grande lição. Gasta-se o virtual dinheiro, que julgamos nosso, num deslumbramento bimbo pelas tecnologias que facilitam tudo, facilitam imenso, e algo tão simples, como ter a nossa música (sublinho o determinante possessivo e, já agora, sublinho possessivo) no nosso pc a partir do nosso ipod (reitero o determinante possessivo) é impossível.
Por favor, alguém que me diga que isto é tudo uma grande inépcia da minha parte, fraca de espírito que sou em relação a tecnologias e informáticas, e que poderei, num ápice, transferir a música do ipod para o novo pc. Que isto sou tudo eu, que sou estúpida, e venho para aqui injustamente vilipendiar a sedenta Apple, na sua enjoada e insuportável missão de proteger direitos de autor e, já agora, ganhar uns trocos à custa disso (e à nossa custa, também). Digam-me que isto é tudo injustiça minha e, já agora, em podendo e por caridade, informem-me de como proceder para efectuar a dita transferência. Um sentido bem-haja.

(estão a ver, este sorrisinho ironicozinho do Kafka, pior que a Mona Lisa? Ah, pois. Quem sabe, sabe, e os parvos como eu ficam a olhar).

E se este blog fosse assim...


Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
Rainer Maria Rilke


Olho o sol indiferente da baça janela.
As pessoas caminham com uma tranquilidade fria.
Não sei quem és, mas sei que te conheço. O olhar rasgado e vedor nessa presença física e diáfana que me outorgas. O beijo simples. A partida certa.
O dia voltará a amanhecer, tão certo como o teu regresso. A solidão é o meu abraço, o meu colo, o meu mais frio lençol, um toque gélido na pele de mar e luz.
Não sei quem és, mas sei que te conheço.



Há uma razão para este blog não ser nada disto, e essa razão é:
(junto o meu ao riso do Nelson)

Pessimismo

Não havia mais ninguém a comprar castanhas.

Optimismo

Hoje vi uma senhora rechonchuda a comprar castanhas quentes e boas a um senhor, na rua.
A senhora estava muito sorridente.
Tinha um ar mesmo satisfeito, enquanto procurava troco na carteira para dar ao homem.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Não sou eu, não

Estou cheia de sono.
Estou a morrer de sono.
E o mundo lá fora quer coisas práticas, respostas directas, sucesso, competência, eficiência.
Eu tenho uma resposta muito clara a estas coisas que o mundo quer. E vou dá-la da forma mais clara possível, para que o mundo perceba bem, de uma vez por todas:





Há muitas alturas na vida em que eu gostaria de cantar esta canção, ou por outra, recitar esta canção. Resolveria muita coisa.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Homo homini lupus?


Estou irremediavelmente dividida entre um humanismo optimista e o terrível pessimismo de Hobbes, "o homem é lobo do homem".
Como é que uma matilha de lobos, ou até mesmo um lobo terrível e solitário, com sede de sangue e de poder, consegue, ao mesmo tempo que ostenta este carácter tão assassino, fazer coisas como a literatura, a a arquitectura, a pintura, enfim, coisas que encarnam qualquer ideia possível de perfeição? Um professor da FLUL, Manuel Frias Martins, escreveu um livro sobre literatura e chamava a esta ideia da perfeição (pelo menos, acho que era isso que ele queria dizer) a "matéria negra".
Mas o homem é lobo do homem. Como é que um lobo com sede de sangue consegue, ao mesmo tempo que ostenta um carácter tão assassino, fazer coisas como a literatura, a a arquitectura, enfim, a perfeição, a matéria negra?
É deste círculo vicioso que não me consigo livrar.

domingo, 8 de novembro de 2009

O artista é um bom artista

Espero ansiosamente por qualquer estreia dos Irmãos Coen - A Serious Man, neste caso. Alguns filmes são melhores do que outros, já se sabe, e daí estes realizadores passarem do 8 ao 80 aos olhos da crítica - tanto são adorados com Fargos, Este País..., Bartons Finks, como são vilipendiados com Lady Killers, Burn After Reading e até (esta, sinceramente, não percebo), o magnífico Oh Brother Where Art Thou, que eu adoro, mas acerca do qual nunca li críticas tão entusiastas como deveria haver (quando Este País... estreou, cheguei a ler uma crítica em que se dizia que os Coen tinham, finalmente, feito o seu primeiro grande filme desde Fargo. Infelizmente, não consegui encontrar esta pérola na internet para postar aqui, mas tenho a certeza absoluta de ter lido tal monstruosidade, penso que no Público; no entanto, como digo, não posso provar).
Há pessoas que já fizeram coisas tão boas que não precisam de comprovar constantemente a sua genialidade. Tudo o que fazem que não é uma obra-prima é, pelo menos, bom. Os Irmãos Coen (tal como o Woody Allen, o Tim Burton ou o Nick Cave, quanto a mim) são exemplos paradigmáticos desse tipo de pessoas. Nunca vi nada deles que não merecesse ser visto.
Também gosto daquele tipo de artistas que recompensa o público. Adoro quando o Woody Allen recheia os seus filmes mais recentes com diálogos e citações de filmes anteriores, como que a piscar o olho àqueles que reconhecem de imediato a referência; gosto quando Nick Cave conta uma história do princípio ao fim nas suas canções, terminando numa apoteose (daí coisas como Stagger Lee serem fabulosas, na escalada narrativa e de violência que oferece); gosto quando os irmãos Coen pegam num elenco reduzido, em cenários simples, em narrativas vindas do noir, contadas anteriormente centenas de vezes, e conseguem um diamante perfeito como este:




ou:





The Man Who Wasn't There é, visualmente, dos filmes mais bonitos que existe. Esta foto aqui acima parece quase retirada do Citizen Kane. Além disso, tem o Billy Bob Thornton a fumar da forma mais estilosa que já vi, em, literalmente, todas as cenas. Deve ser dos filmes em que mais se fuma, mais ainda do que os originais noir que serviram de inspiração. E que bem que se fuma neste filme, é uma beleza...
Tal como este Nick Cave, cheio de pinta, a destilar pinta, diria até, é também uma beleza, a cantar Stagger Lee.
O artista que é um bom artista, mesmo que tente, nunca consegue deixar de ser bom. E, como diz Truman Capote, se isso é uma vantagem, também não deixa de ser um chicote, permanente a exigir mais.


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Este blog faz um aninho... oh, coisa má fofa.
Tentei mudar as cores, o fundo, o template, para comemorar, mas não deu. Gosto como está, não me conseguiria habituar a outra coisa. Espero que consiga durar mais um ano; gosto da passadeira desta Rua.

A elite, esse papão

Uma vez, numa discussão entre "amigos" sobre o Processo de Bolonha, fui instada a dar a minha opinião; disse que as universidades deviam promover o saber pelo saber. Respondeu-me um "amigo": "a tua perspectiva é elitista e estúpida". Eu, que não sou pessoa de levar desaforo para casa, como dizem os nossos companheiros brasileiros, encetei uma bulha e criou-se ali um escarcéu. Mas no fim tudo se resolveu.
Aquilo que me irrita profundamente é evocar-se "elitismo" e "elite" como se fossem coisas nefastas para o país, quando o problema deste país, de qualquer país, é o não ter elite de qualquer espécie. O que me parece é que, quando as pessoas despendem o seu latim a vilipendiar o elitismo e a elite, é na verdade em algo semelhante à plutocracia que estão a pensar. O problema resolve-se muito facilmente com um objecto, que deveria ser de uso diário, designado comummente por "dicionário".
As elites, um grupo de pessoas de excelência, que são superiores pelo mérito e pela qualidade intelectual ou técnica que detêm (não pelo poder, pelo dinheiro ou pelas cunhas) - sublinho a palavra mérito - são essenciais. Qualquer país precisa de alguém que estabeleça padrões educacionais, culturais, civilizacionais, até. E nem todos estão em condições para o fazer, pura e simplesmente. Temos todos os mesmos direitos, somos todos seres humanos dignos e respeitáveis, mas há pessoas que, pura e simplesmente, são melhores do que nós. E estas pessoas, esta tão odiada "elite", seriam aqueles que, ao invés de nivelar por baixo, como se costuma dizer, estabeleceriam padrões de exigência tais que o nível estaria sempre nos píncaros.
Não é o que se passa neste jardim à beira-mar plantado, da mesma forma que não é o que se passa nos outros países europeus que conheço minimamente (não são assim muitos, digo já). Políticos, intelectuais, escritores, a "inteligência" em geral, foi para o estrangeiro, ou vive na semi-obscuridade. Quem alcança relevância mediática ou profissional é, na maior parte dos casos, ou mediano, ou pura e simplesmente medíocre. E isto é aceite por todos porque se pensa, erradamente, deturpadamente, que a democracia é isto, quando nunca ninguém disse que a democracia é o poder da mediocridade. E o que se devia dizer é que este ódio às elites e a recompensa outorgada aos medíocres é a derrocada de qualquer futuro.
A hegemonia da mediocridade está bem à vista, tendo chegado já há muito às escolas e, até, à única instituição onde nunca poderia ter chegado, com consequências desastrosas - a universidade.
Por isso, aquilo que eu desejo para 2010 é que este país consiga ter uma elite digna desse nome.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Melhor Blogger Hipotético: Leonard Woolf


22nd March 1941

Oh, woman, please do shut up, do shut your big, massive gob, please do!
No. No such luck. Here she comes again (if I have to listen to that whinning little voice of hers one more time , "Lenny, I hear voices", "Lenny, I can't write today", "Lenny, I am a dreadful housewife, do you not think so?", "Lenny, I say, for the life of me I am at a loss with Mrs Dalloway, what shall she do after buying the flowers, I simply cannot fathom, perhaps a trip to a lighthouse...", the way she babbles on, oooooooh!). Now she is telling me she cannot write. Again.
Of course you can't, dear. You're too busy bothering me with that appaling depression of yours. I am not a doctor, helloo-O!
And this bloody war going on... what is happening to my people?

25th March 1941

Right. I am a busy man. Busy and concerned. I am deeply concerned with the faith of my people in "Europe", for example (what a ghastly place - I dare say, every gentleman ought to have been born a British man). So, I do have all these worries.
And this woman gives me no peace. I cannot work. I cannot print my pamphlets. All my life is now devoted to her needs, her writing, her thoughts... oh, God.
For example, the other day. She made me read the rubbish she was writing. I could not follow a bloody sentence! I do not know what she is on about half the time! This woman just ignores the meaning of "punc-tua-tion". But of course, I could not tell her that, oh God, no, we wouldn't want another of her fits, would we?, so I just told her, "This is all quite lovely, Ginnie, old girl, but perhaps a comma or two, a stop or two, wouldn't hurt?" Even this harmless remark made her cry. Hours spent trying to appease her... oh, what to do!
If only I could go back to living alone, without "her"... I need to help with the war effort somehow, I can't have her breathing down my neck, she and her "depression".

27th March 1941

I have had what I believe is just about the most brilliant idea any man in my situation could have had. The most brilliant idea! Now, Ginnie is depressed, everybody knows that - what if something happens, something that... if she had a crisis... I could put stones in her pockets...

29th March 1941
Oh, the grief.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Diário deprimente da pessoa impotente



Abri a caixa de email e o único email novo que tinha era:
"A Mega TV & Eddy sugerem-lhe: que prendas vai dar no Natal?". Não respondi porque não sei quem são a Mega TV e o Eddy.
Depois, fiquei em casa à espera que alguém me telefonasse. Verifiquei se o telefone estava a funcionar. Estava.
Verifiquei se o telemóvel tinha bateria. Tinha.
Fui ao facebook. Não tinha mensagens novas nem comentários. Fui ver a quinta, o café, o yoville. Preenchi mais meia-hora do meu tempo.
Depois, enquanto permanecia em casa e esperava que o telefone tocasse, revi as coisas que teria de fazer no trabalho, no dia seguinte. Ficou tudo visto e revisto.
Verifiquei se o telemóvel tinha bateria. Tinha.
Verifiquei se o telefone estava a funcionar. Estava.
A medo, não fosse o telefone tocar, decidi ir tomar café. Levei o telemóvel comigo, não fosse alguém precisar de me contactar. Tomei café. Pedi também um croissanzinho minúsculo, com docinho de ovo.
Fui a casa ver se tinha chamadas não atendidas. Não tinha. O telefone estava a funcionar. Verifiquei o email. Ponderei responder à Mega TV e ao Eddy. A minha mãe diz que eu tenho de aprender a fazer amigos e a ser sociável.
Como ninguém precisava, pelos vistos, de falar comigo, fui ao supermercado comprar bombons e gelado. Voltei rapidamente para casa.
Nada de chamadas não atendidas.
Suspirei.
Bebi água.
Voltei a ler o email da Mega TV e do Eddy.
Abri uma lata de atum. Foi o meu jantar.
Sentei-me no sofá da sala e percorri todos os canais de televisão em dois minutos. 57 channels and nothing on, como diz o Bruce Springsteen. Sou uma pessoa cheia de referências.
(o telemóvel silencioso tinha bateria)
Voltei ao facebook. Não havia mensagens novas, nem comentários novos, nem amigos novos. Fui à quinta, apanhei os legumes, subi de nível. Fui ao café, servi os pratos, subi de nível. Voltei ao perfil. Tudo igual.
(o telefone estava a funcionar)
Estava tão cansada.
Voltei ao email. Quem será o Eddy, onde ficará a Mega TV?
Fui dormir. Adormeci logo, surpreendentemente, de tão cansada que estava.
O telemóvel, esse, tocou finalmente. Era o alarme do despertador.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Bulhão Pato & Gomes de Sá

Apetecia-me escrever sobre livros (porque não vou poder ir ao debate na Bertrand, esta quinta-feira, sobre livros-fenómeno, apesar de tudo o que tenha a moderação de Anabela Mota Ribeiro, lamento muito e peço muita desculpa, me suscitar grande desconfiança, e apesar também de já não conseguir suportar a crítica fácil ao Dan Brown, só nisto o Expresso gastou três artigos este fim-de-semana, já se sabe que Dan Brown é mau escritor e que as suas personagens são risíveis, mas sinceramente, não é o único, nem sequer o pior, e além disso, parece-me a mim, a maior crítica, e a mais grave, que se pode fazer a este indivíduo é a grande desonestidade intelectual que ostenta, porque, sejamos honestos, quem de facto acreditar na existência do Priorado do Sião tem de ter um qualquer problema mental seriamente incapacitante, talvez Dan Brown de facto padeça disso, mas enfim, o que será pior, Dan Brown e as suas mentiras parvas a ritmo acelerado, ou alguém como o João Aguiar, que é uma pessoa respeitável, se ter dado ao trabalho de escrever um livro meio paródia, meio crítica, ao Código Da Vinci, com coisas como o Priorado do Cifrão pelo meio, mas o que é isto?, sinceramente, as pessoas às vezes perdem a noção com estas fúrias desproporcionadas contra os tais livros-fenómeno).
Lá querer escrever sobre livros, queria. No entanto, e incontornavelmente, só me vêem à cabeça os nomes estranhos da culinária portuguesa e as mistelas que apresenta, quase todas muitíssimo boas, mas sem dúvida muito estranhas:
Feijoada de choco.
Ovo "a cavalo".
Bitoque.
Abatanado.
Bifana.
Arroz à valenciana.
Bacalhau à Zé do Pipo.
Chouriço.
Bica.
Arroz malandrinho.
Rissol (se há vocábulo que me faça rir, é sem dúvida este - rissol; no entanto, dizer que nada tenho contra a natureza do género alimentício, que um rissolinho de camarão quentinho, a estalar, ui, é daqui, como se costuma dizer, e agora estou a fazer aquele gesto tão parvo que até envergonha que é apertar o lóbulo da orelha entre os dedos - mentira, nunca faço este gesto).
Bá-bá (é um bolo, descobri há uns anos).
Chispe.
Sandocha e mini, ou "sande" e "mine" (estas já são clássicas).
Não sei porque é que eu, querendo escrever um post minimamente inteligente, só me consigo lembrar disto. Talvez porque a língua portuguesa tenha maravilhas que a própria maravilha desconhece, e nada lhe escapa.

Vale a pena

Está mesmo muito bom, este texto. Sim, senhora.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

As armas e as malas assinaladas

Ulisses voltou para casa, estafado.
Finalmente - Ítaca. Ele, que tinha calcorreado tantos quilómetros, com tanta gaja maluca a azucriná-lo, a transformar-lhe a tripulação em animais, ele a ter de se amarrar ao mastro do navio, não fosse isso e ia borda fora com o canto daquelas sirenes com o cio, as mulheres, realmente, só cargas de trabalhos.
As mulheres todas - menos a sua, a doce Penélope, entretida a fiar e a desfiar, a fiar e a desfiar, confiante no seu regresso.
De modo que Ulisses estava feliz, de largo sorriso no rosto, já confiante na alegria que Penélope sentiria ao olhar para ele, ainda por cima quando voltava a casa ainda tão atlético, tão bem conservado. Querida Penélope.
Mas afinal Penélope não tinha esperado. Fiar, desfiar, fiar, desfiar, aquilo não era para ela, mulher ainda jovem, dinâmica, que gostava de viver a vida. Tinha um galifão mais novo, que deixava o robusto Ulisses a um canto, como se costuma dizer.
E o que fez Ulisses para reconquistar a afinal atrevida Penélope, que não tinha esperado por ele?
O galifão podia ser mais novo e enérgico, mas mais rico e com mais gosto não era. Para alguma coisa tinha Ulisses passado tanto tempo a guerrear e no mar, fazem-se umas economias jeitosas com tão parco estilo de vida. E o que Ulisses tinha a dar à sua mulher, que o galifão não tinha, era isto:



A insuperável Louboutin Cadeau "evening wear". O derradeiro cavalo de tróia do espertalhão Ulisses, sempre arguto e homem de gosto, a que nenhuma mulher, nem mesmo a firme Penélope, conseguia resistir.
E a ordem natural das coisas repôs-se.

domingo, 1 de novembro de 2009

Penitência linguística (post deselegante)

Hoje, ao regressar a casa depois de ir tomar café com a minha amiga Alexandra, reparei que ando a dizer muito mais palavrões do que o normal.
Normalmente, não gosto de palavrões. Acho que a língua portuguesa tem muitos recursos, todos eles de grande expressividade e até comicidade, que substituem perfeitamente os palavrões. Mas, devido talvez ao facto de estar extremamente "stressada" (fiz ontem cinco testes de stress na internet e o resultado foi sempre invariável: "you're extremely stressed. Please click here for a full list of doctors and clinics in your area" - eu cliquei e fiz várias marcações para vários médicos nigerianos que descobri serem meus vizinhos, e até já paguei as consultas e tudo, custou-me os olhos da cara mas há-de valer, com certeza, a pena), dizia, devido ao meu profundo stress, reparo que, em ambientes de familiaridade, digo mais palavrões.
E agora compreendo, enfim, a grande necessidade de haver palavrões na língua, em qualquer língua. É que, por vezes, certas tristezas só podem ser descritas com um bem empregado palavrão, ou, em linguagem técnica que é para amenizar, um belo "expeletivo".
A minha questão, porém, é - que poderei fazer para me penitenciar e para entrar no bom caminho da graça linguística, deixando de parte os pecaminosos palavrões? É esta a questão que agora me angustia, que me provoca mais stress e, consequentemente, me faz empregar mais palavrões.
Merda, pá, e agora...

Supremíssima moleza


Os Domingos são os dias mais moles de sempre. Tudo é mole e flácido num Domingo, mesmo o tempo - se o sol brilha, os raios emanam aquele calor que derrete na pele, pegajoso; se está chuva, caem gotículas húmidas e cerradas do céu, que empapam tudo, oleosas.
As ruas estão desertas, e quem decide andar a pé vai vagarosamente, preguiçosamente; os olhos das pessoas são inexpressivos, inertes, moles, tudo é mole.
É impressionante. Não conheço dia mais aborrecido, onde o tédio se respira no próprio ar.
As crónicas do Lobo Antunes ilustram este sentimento de inutilidade e moleza dos Domingos exemplarmente - o homem que se perdia nos centros comerciais e ia para casa com uma mulher igual à sua, que porém não era a sua, e só descobria o erro já a semana ia a meio; e o outro homem que temia os Domingos, numa companhia forçada e quase desesperante com a mulher, que lhe falava de frangos assados e microondas a prestações, e o homem já a desejar voltar ao trabalho, à repartição, para ao menos pensar noutras coisas que não microondas e marquises.
Os Domingos são feitos disto - marquises, frango assado, centros comerciais, seats ibiza, pastelarias vazias, céu cinzento, rua molhada e escorregadia, unhas descascadas, pipocas no cinema repleto de adolescentes, música de elevador, renatos rafael, marcos paulos, preguiça, preguiça, tédio, moleza.
Uma supremíssima moleza.