segunda-feira, 2 de julho de 2012

O Drácula é um ser tradicional

O Câmara Clara de ontem foi o meu preferido até hoje, a par daquele em que a Alice Vieira foi entrevistada.
O convidado do programa de ontem foi, então, Francisco Vaz da Silva, que tem investigado profundamente contos orais tradicionais e que organizou recentemente um colóquio sobre os Irmãos Grimm. Foi um programa delicioso e assustador, em que se falou da violência comum a este tipo de contos que, curiosamente, os Grimm aliviaram bastante. Não sendo originalmente contos para crianças, estas histórias tradicionais foram "depuradas" (como se disse até à exaustão no programa) para que se tornassem matéria infantil mais própria. Se ainda hoje estes contos nos parecem tão violentos, o que seriam na sua forma original - uma verdadeira crueza brutal, ao que parece, repleta de relatos de canibalismo, abusos, mutilações. 
A história do Capucinho Vermelho, por exemplo, conta com várias versões, uma delas rezando que, no momento em que a Capuchinho chega a casa da Avó, já o Lobo comeu parte desta última, armazenou o sangue numa garrafa de vinho e reservou suculentos nacos da senhora para conservar na salgadeira. Diz o Lobo ao Capuchinho, com todo o desplante, "vem descansar para a cama comigo, mas antes prova este vinho revigorante e sacia-te com estes suculentos nacos de carne", sugestão que Capuchinho aceita de bom grado antes de ir para o descanso, também ele bastante carnal, com o Lobo, e o resto a gente já imagina (ou não). Este canibalismo descarado, contado de uma forma tão normal, faz lembrar uma outra personagem que conhecemos bem e que também tinha uma mania, canibalesca e um bocado bruta, de corromper as suas vítimas ao fazê-las beber o seu sangue. Essa personagem é o Drácula - a forma de vitimizar as presas não passava só por beber o seu sangue, mas também por fazê-las beber o sangue dele próprio, Drácula, consumando assim a corrupção total da vítima. Ao beber o sangue de Drácula, o incauto inicia um processo de transformação vampiresco, e se insistir na beberagem, acaba mesmo por se tornar  vampiro e nada a fazer. É quase o que acontece à personagem de Mina (na obra de Bram Stoker, diga-se), que Drácula seduz e a quem dá a beber o seu sangue milenar. Lixado, este Drácula. Rancorosozinho.
Bom. Numa outra versão de Capuchinho Vermelho, a menina transforma-se em loba para, de igual para igual, lutar com o Lobo e matá-lo, dispensando a figura masculina do Lenhador. O mesmo se passa com Drácula - ao transformar-se em seu igual, a vítima deixa de ser vítima e reúne a força e o conhecimento necessários para o destruir. Assim o confirma Mina que, depois de ter bebido o sangue do vampiro, mantém com ele uma espécie de laço espiritual, telepático, etc., conseguindo adivinhar-lhe o paradeiro, os desejos, as necessidades, e tornando-se fundamental para que Drácula seja localizado mesmo a tempo, estaca no coração ao nascer do sol, cortar a cabeça e está feito. 
De onde se conclui que isto anda tudo ligado e que as histórias que povoam a nossa cabeça são, no fundo no fundo, as mesmas, o que também quer dizer que a nossa cabeça é, no fundo no fundo, a mesma. Faz lembrar a carruagem que leva a Cinderela ao baile - consegue ser ofuscante na sua sofisticação e brilho, mas não deixa de ser uma abóbora, que é abóbora desde o princípio dos tempos e abóbora permanecerá até ao fim dos tempos. 
Fim.

4 euros à hora

Bom. Eu ia escrever um post sobre um determinado assunto, mas li agora uma notícia no Público que anuncia que os enfermeiros deste país estão a ser contratados por 4 euros à hora.
4 euros à hora.
4 euros à hora. 
4 euros à hora.