Há um certo argumento quantitativo que me irrita bastante, mormente porque discordo absolutamente dele mas não tenho inteiramente a certeza de estar errado. Isto é muito desconcertante.
Por exemplo, quando passava aquela série, Friends, costumava dizer-se que "40 million viewers can't be wrong"; havia quem criticasse a série (eu, por acaso, achava bem gira), e que uns quantos pobretanas não podem viver em Nova Iorque com um estilo de vida tão bom, e que não era realista, e que além disso era tudo filmado em Los Angels, e etc. e tal, e respondia-se a isto com o tal argumento da quantidade - se há tanta gente que vê o programa, seguramente que haverá algo de qualidade no mesmo. Como se a quantidade acarretasse, por si só, a qualidade.
Recentemente, ouvi argumento semelhante relativo ao livro 50 Shades of Grey. Estava a falar disto com alguém, entretida nas diatribes do costume, "bem, eu nunca hei-de ler o livro, já se sabe que é uma grande merda, e a mulherzinha que o escreveu é uma bimba que nem ler sabe e etc. e tal", e respondem-me, "dizes isso, mas há milhares de pessoas que leram o livro e que gostaram. Essa bimba deve estar a fazer qualquer coisa bem".
Fiquei desconcertada com isto. É que fiquei mesmo. Por um lado, diz-me o coração que este argumento está profundamente errado - o Van Gogh, por exemplo, nunca vendeu nenhum quadro na vida, não apelava às massas, e se este tipo de lógica da quantidade lhe tivesse ocorrido, com certeza que em vez de uma orelha cortava logo as duas, mas era. Por outro lado, o mesmo Van Gogh, hoje em dia, goza da sua merecida glória, tornou-se um artista reconhecido pelas massas, e o mesmo se pode dizer de outros artistas soberbamente bons a quem o tempo, acompanhado pela quantidade, isto é, pelo número de pessoas que os reconhecem, fez justiça. E será verdade que, fosse o 50 Shades assim tão mau, haveria tal número de pessoas a lê-lo e a apreciá-lo?
Haveria, sim, Haveria porque aquilo a que a contemporaneidade presta atenção é, muitas vezes, lixo do qual ninguém se lembra daqui a dez ou vinte anos. O facto de toda a gente ler o livro da tal bimba não quer dizer nada (se percorrermos a lista de best-sellers e, até, de poetas laureados em Inglaterra ao longo do século XIX, por exemplo, verificaremos que hoje em dia ninguém se dá ao trabalho de ler metade). Se, porém, ainda houver muita gente a ler o livro daqui a cem anos, talvez isso signifique alguma coisa "no que concerne" à qualidade do mesmo livro.
De modo que a conclusão que eu retiro de tudo isto é que esta história da petição absurda contra o abate do cão que matou um bebé não quer, felizmente, dizer grande coisa. Há idiotas em todo o lado que, como diz o Ricardo Araújo Pereira, gozam de liberdade de expressão para a gente os poder identificar e ficar a saber que são idiotas. A quantidade de gente que assina a petição não muda as leis gerais e abstractas que nos regem, nem muda o valor absoluto da vida humana. A qualidade resiste à quantidade. Por enquanto.