quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Pecado original

A ideia de pecado original sempre me pareceu muito cruel. Uma injustiça. Quer dizer, uma pessoa está muito bem sem fazer nada e quando dá por ela, zás, já tem um pecado em cima. Assim, só por ter nascido. Hã?
Quando eu era pequena, diziam-me, a mim e aos outros todos da catequese, que quem não é baptizado carrega o pecado original como uma marca flamejante para sempre. Por acaso, esta da marca flamejante acrescentei eu, mas o resto é verdade. O que me angustiava é que, mesmo que a questão do baptismo estivesse resolvida e o pecado original expurgado e arrumado, a pessoa ainda tinha de se preocupar com os pecados todos que cometia diariamente, alguns deles que nem sabia se eram pecados ou não, e esses só passavam com a confissão e a absolvição e a comunhão; no entanto, a tal confissão e restantes métodos  eram só para pessoas de uma certa idade, não eram para crianças. De modo que, de certa forma, eu invejava os adultos, porque esses tinham uma maneira de, regularmente, seguir procedimentos claros para, em tempo útil e sede própria, se livrarem do Mal, fazendo uma espécie de tábua rasa para começar de novo, ao passo que as crianças estavam bem arranjadas, pecado original (ou não) e ainda por cima mais os outros pecados todos. Também me angustiava não saber exactamente que pecados eram esses, não haver assim uma espécie de grelha que me dissesse, isto igual a pecado, aquilo igual a pecado mas pequenino, aqueloutro pecado enorme, e assim por diante.
Isto para dizer que bem cedo me apercebi da natureza pecaminosa do ser humano, e ainda hoje acho terrível que não nos seja concedida uma margem de dúvida, do estilo - olha, a partir do momento em que vens ao mundo, tens cadastro limpíssimo; a partir daí, começas a asneirar e começa a contagem decrescente; se chegar ao menos zero, vais para o inferno, mas pelo menos tens, logo à partida, uma oportunidade decente. Estando as coisas como estão, e já nascendo a pessoa em estado pecaminoso, que hipótese é que se tem?
Por acaso, lembrei-me disto há pouco tempo, quando estava a conduzir com o ipod aos berros, que calhou parar no It's a Sin, dos Pet Shop Boys. Era uma manhã horrível em Lisboa, cedíssimo, o trânsito que se movia lento como uma jibóia gorda que acabou de engolir um elefante do dobro do tamanho, e eu ali encafuada a olhar para as pessoas nos outros carros, sonolentas, feiosas, umas fumavam, outras, no lugar do pendura, abandonavam-se ao sono de tal forma que metiam pena, outras ainda olhavam em frente, tristonhas, e à minha volta e à volta delas prédios pingões, cinzentões, sujos. Seria claro para qualquer pessoa que ainda tivesse ilusões que, àquela hora, naquele sítio, se estava face à evidência de que a raça humana é tudo menos perfeita. E, sabendo nós isto, sabendo nós que somos tão feios, porcos e maus, que ninguém escapa, ainda temos de aguentar o pecado original? Não está correcto.

sábado, 23 de outubro de 2010

Muralhas, rochas, ilhas, coisas assim

Há anos que não ouvia Simon & Garfunkel. Sempre gostei muito deles, mas calhou deixá-los escapar da minha vida por muitos anos até ao dia de ontem, em que comprei daqueles CDs que são uma espécie de best of, retrospectiva e assim. Pensei que não ia gostar tanto das músicas como gostava há 10 anos, e de uma certa forma de facto não gostei, mas algumas canções houve que recordei com quase tanto entusiasmo como quando era adolescente e as sabia de cor e salteado. Sem dúvida que uma das minhas preferidas sempre foi (continua a ser) I am a Rock - o adolescente fechado no quarto, a olhar a neve da janela, a sentir-se reconfortado por não precisar de ninguém e ninguém precisar dele. "I have my books and my poetry to protect me". De facto, esta ideia é muito reconfortante. Os livros são seguros, abrigadinhos. As pessoas não, só dão chatices. 
Hemingway encontrou o título do seu livro "For Whom the Bells Toll", John Donne, que também escreveu, no mesmo texto ou ensaio ou poema, não sei, "no man is an island". E daí os sinos tocarem por todos nós. E daí um certo texto de Brecht* bastante conhecido, aquele que diz "vieram buscar os comunistas, e eu não era comunista, e depois vieram buscar os católicos e eu não era católico, e depois os judeus e eu não era judeu, e depois vieram-me buscar a mim. Não havia mais ninguém." (o texto não é assim ipsis verbis; estou a inventar porque não me lembro, mas sei que a ideia é exactamente esta).
Bom. Isto para dizer que agora, como cidadã e como ser humano que tento ser, estou consciente de que nenhum homem é uma ilha nem uma rocha e que precisa de bem mais do que livros para viver. E, no entanto, também me parece verdade que conseguimos, se quisermos, viver bem separados de todos os outros. No último filme de Woody Allen que vi, Whatever Works, Larry David diz, a certa altura, que lê o jornal, vê todas aquelas desgraças inimagináveis e o que é que faz? Não faz nada,  ignora, e isto porque é demasiadamente insuportável viver sabendo que aquelas catástrofes acontecem. "What can you do? It's overwhelming", diz ele, e tem razão.
E quanto ao resto, sinceramente, todos sabemos o quão fácil é não deixar que os outros não nos chateiem, se não quisermos de facto sermos incomodados. Eu raramente quero, se me puser a pensar com alguma honestidade.
Portanto, de uma certa forma, sim, cada homem é uma ilha, com os seus livros, a sua poesia, os seus filminhos, coisas que, controladamente, propositadamente, escolhemos a dedo para nos serem próximas. Por outro lado, não, não somos ilhas, porque como diz o Brecht,* quando nos invadirem a ilha e nos vierem buscar a nós (e eu acho que mais tarde ou mais cedo vêm, porque tendo a ser pessimista, mas também realista), como é que é? Nem que seja para, mais uma vez, velar pelos nossos próprios interesses, temos mesmo de, olha, como se costuma dizer, ser uns para os outros.
O meu problema com isto é que dá um trabalhão e raramente apetece. Estou a tentar resolver este dilema.
Realmente, Simon & Garfunkel têm canções muito interessantes.



* Um leitor atencioso fez o favor de me informar que a frase não é de Brecht, como eu pensava, mas sim do pastor Martin Niemoller, tal como pode ser confirmado na Wikipedia. Aqui fica a correcção.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Uma coisa é ser mulher, outra coisa é ser senhora

Estava aqui a ler este lindo blog e deparei-me com a citação do dia, que calhou ser de Margaret Thatcher  (espero que a Lenor não se importe que eu cite aqui algo que encontrei citado no blog dela):

Being powerful is like being a lady. If you have to tell people you are, you aren't.

Isto não se aplica apenas às pessoas poderosa e/ou às senhoras. Aplica-se a toda a gente que quer ser vista de uma determinada forma e não é: quem é bonito não precisa de dizer que é bonito; quem é inteligente não precisa de dizer que o é; quem é rico não precisa de dizer que é; quem é, em geral, bom, isto é, pessoa de qualidade, não precisa de dizer que é, e de facto não diz, e etc. 
De modo que hoje já tive a surpresa do dia, que é concordar com algo que a Margaret Thatcher tenha dito, e encontro-me agora a indagar o que é isto de ser "uma senhora". Parece-me uma questão algo premente. Durante muito tempo, pensei que era não ter ouvidos, aquilo que tantas vezes me foi ensinado como única resposta digna aos comentários libidinosos que qualquer mulher, senhora, rapariga, menina, o que se quiser, tem necessariamente de ouvir, com maior ou menor frequência, só por se limitar a andar na rua. As senhoras, mulheres, raparigas, o que seja, têm de aprender cedo, neste país.
Dizia Simone de Beauvoir que não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres. E senhoras? Da mesma forma que se aprende culturalmente a ser mulher e homem, também se aprenderá culturalmente a ser senhor e senhora, e usar garfo e faca e flute de champanhe e etc, ou ser senhora quer apenas dizer não ser prostituta, ou quer apenas dizer que se pode ser o que se quiser, prostituta e tudo, desde que seja honesta, ou é o quê? A minha vã filosofia não alcança. 
A afirmação de Margaret Thatcher, que eu por acaso acredito que seja mulher  e além disso senhora, talvez queira dizer que ser "senhora" é uma qualidade intrínseca, da mesma forma que certos homens são "gentis homens", e que isso ou é inato ou não é. Não se pode aprender, não se pode fazer esforço para  o ser e andar por aí a dizer às pessoas, como aquele indivíduo do Little Britain, "I'm a lady, I'm a lady". 
Pois é. A questão é que esta ideia do inatismo, sobre a qual se escreveram imensos livros, nomeadamente um manual de boas maneiras interessantíssimo e tremendamente popular no Renascimento, chamado Il Cortegiano, tem muito que se lhe diga. Neste manual cortês, por exemplo, Castiglione (o autor) defendia que ser cortesão é uma qualidade inata, que no entanto pode e deve ser trabalhada, e porque não refinada, por quem nasceu com ela - mas claro, há que nascer com ela. 
De modo que a conclusão que eu retiro disto tudo é que, como dizia a Susaninha, amiga da Mafalda (a banda desenhada), "uma coisa é ser mulher, outra coisa é ser senhora".  Eu, realmente, concordo. Não vamos agora estar a confundir as coisas e a comprometer valores e princípios, os mesmos que rezam que  cada macaco tem de estar devidamente no seu galho, e é mesmo assim.
Pronto.

A causa que se perdeu

Não consigo evitar, e nem sequer quero. Quando penso em pessoas deste estilo:





o que ouço é isto:



Nas palavras de Mago, o gato d'Os Bichos: misérias desta vida.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Sôbolos rios que vão

Descobri hoje que o novo romance de Lobo Antunes tem como título este verso do Camões. Não sei se vou ler, se não (o mais recente que li de Lobo foi "Não Entres Tão Depressa...". Não gostei, houve ali qualquer magia que não se deu). De qualquer forma, fiquei com um certo apetite, porque o título é espectacular. E é espectacular porque o poema também o é. A minha parte favorita (do poema) é:


Bem são rios estas águas,
com que banho este papel;
bem parece ser cruel
variedade de mágoas
e confusão de Babel.

Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou:

Assi, despois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: - Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.

Se calhar, foi por isto que Lobo deu ao livro o título de Camões - é o guerreiro que se retira, que pendura as armas, que já não tem força para a guerra. Não sei, pode ser. Talvez. 

Parasitas

No fim de semana que passou, ouvi na Antena3 uma parte de um programa interessante sobre o DocLisboa, em que Fernando Alvim entrevistava a senhora que escreveu o livro que saiu há pouco tempo sobre António Feio, e o realizador do documentário Os Lisboetas, o Sérgio Trefaut. A certa altura, Fernando Alvim diz qualquer coisa como "os documentários não precisam de subsídio", sendo que isso era uma vantagem que tinham relativamente à ficção. Sérgio Trefaut ficou bastante agastado com isto - disse que aquilo que na verdade subjazia a este tipo de comentários é a velha, triste mentalidade de que tudo o que seja artista é parasita e tem de viver de apoios estatais em vez de andar a trabalhar a sério; que só havia, no mundo, quatro países que conseguiam uma indústria cinematográfica independente dos tais subsídios públicos (EUA, Índia, Egipto e outro de que não me consigo mesmo lembrar); que na Europa, e em geral, não há documentários sem subsídios (ou pensava ele, Fernando Alvim, que o documentarista que seguiu Saramago por 15 países andava a ser sustentado pelo pai e pela mãe, perguntava Sérgio); lá pelo meio, ouvi nitidamente a expressão "atrasado mental", mas não consigo precisar nem garantir se Sérgio Trefaut chamou mesmo isto ao entrevistador, embora perceba inteiramente que tivesse vontade.
Já se sabe que, em tempos de crise, a chamada "cultura" é a primeira a sofrer profundamente, porque em geral as pessoas acham que é supérflua. Também se sabe, curiosamente, que a qualidade de vida das pessoas tem a ver, entre outras coisas, com o acesso que têm a teatro, música, dança, exposições, coisas que sejam aprazíveis, que façam pensar, descontrair, enfim, que nos dêem uma emoção. Se não há meios privados que garantam isto, mecenas ou patrocinadores ou o que seja, então tem de ser o Estado. Não estou a ver outra possibilidade. Percebo que seja contra subsídios para a cultura quem igualmente também acha que as pessoas não precisam verdadeiramente da mesma cultura para viver, e que esta não passa de um luxo que deve estar à disposição apenas daqueles que a podem ou querem pagar. Quem, porém, eventualmente partilhe da opinião de que a vida de qualquer cidadão não pode ser só reduções de salários, aumentos de IRS, orçamentos de estado aprovados ou chumbados, partidos políticos em espectáculos miseráveis, um parlamento com os pés para a cova e em geral um esfacelamento apagado e vil da democracia em geral, de tal forma que ouvir as notícias se torna algo quase abjecto, enfim, as pessoas que ainda querem alguma qualidade de vida para si e para os outros perceberão, penso eu, que os subsídios estatais serão, talvez, e por enquanto, a única forma de se conseguir que ainda haja filmes para ver, e peças de teatro, e bailados, e coisas assim bonitas em geral.
De modo que gostei bastante de ouvir Sérgio Trefaut e estou com ele e com todos os outros artistas. Não me consigo lembrar de nenhum artista que seja parasita, mas consigo lembrar-me de muitos parasitas que não são artistas, por exemplo. E contra esses ninguém resmunga. Portanto, o Estado deve pagar e calar, quanto a mim, que pago impostos e blá blá blá. 
Fim. 


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Razões pelas quais estou contente de ler as BDs do Corto Maltese (para além das óbvias razões estéticas, o brinco na orelha, o cabelo escuro, moreno, alto, lindo, ai, ai, pronto, vou parar)

 
Na aventura na Sibéria, Rasputine, que é um doido, tenta matar Corto com um punhal, mas falha a facada. Corto pergunta-lhe o que se passa com ele, Rasputine, que costumava ser exímio matador. Rasputine diz que era só uma partida, e continua:

Hoje, escondi-me enquanto falavas e feri-me ligeiramente para te fazer crer que me tinha acontecido alguma coisa. Quis dar-te uma emoção, Corto, porque gosto de ti...

É mesmo das coisas mais bonitas que nos podem dar, uma emoção. Com ou sem punhalada, é uma coisa bonita. Concordo com Rasputine. Ainda melhor é conseguirmos ser nós a dar a emoção.
Pode ser uma lamechiche, mas tudo isto é verdade.

Razões pelas quais estou contente por persistir na releitura do Auto dos Danados

Como tudo na vida, há vantagens e desvantagens. Comecemos pelas desvantagens, que são:

1) "Como os corpos na morgue, a Ana embrulhava-se naa colcha na extremidade da cama, e o piaçaba dos cabelos emaranhados despontava da roupa. O pingo triste de cera de um calcanhar defunto tombava no chão"

2) "Edward G. Robinson observou de esguelha o pechisbeque enquanto contornava o capot. A pistola debruçava-se do sovaco como uma lágrima de um olho"

3) aquela sensação mais ou menos desconfortável, ou pouco original, de que estamos face a uma versão portuguesa do Som e a Fúria, mas no mau sentido, porque cada livro deve ser único; ainda que um livro faça lembrar outro, uma proximidade tão grande, ou uma inspiração tão pronunciada noutra obra, não é muito agradável para o leitor. Isto, a meu ver, claro.

Passemos às vantagens, que superam as desvantagens, como penso que este excerto demonstra amplamente:

"... e eu calei-me por prudência, absorvido no caminho, em lugar de dizer que se tratava de uma família nojenta de cabras e bois mansos a devorarem-se mutuamente no casarão do Guadiana, a sonegarem-se as heranças, a odiarem-se, a roubarem-se, a esmagarem-se, a destruírem-se, e tudo isto debaixo da boquilha e da pálpebra cáustica do avô, derramado na cadeira de baloiço da sala, a assistir numa alegria formidável à agonia da sua matriz, como se não suportasse que nada de seu sobrevivesse no fim..."

Safa. Nos Danados, há este efeito quase de espiral destruidora, que eu acho que Lobo Antunes consegue muito bem em certos livros, e em que se descobre mais e mais das personagens e da história, e é tudo cada vez mais estéril, horrível, desesperado. A estrutura da narrativa, fragmentada em várias vozes, vem de facto do Som e a Fúria, mas acaba, de uma certa forma, por compensar o leitor, porque o deixa em sofrimento absoluto ao ir descobrindo cada vez mais da força avassaladora de uma família em derrocada.
E depois há esta ideia central nos Danados, que explica o título do livro e também o verdadeiro sofrimento que provoca (pelo menos em mim, provoca): a destruição total que a família, como unidade primordial da sociedade (as sociologias e as economias dizem que sim) pode representar. Se há força que consegue dar tanta felicidade como também esterilidade total, por mais paradoxal que seja, é a família.
Agora estou a sentir-me um bocado mal. Vou ter de ficar por aqui. A ler o Auto dos Danados, que vale a pena, pá.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

One night stands



As noites passam-se como se quer, que cada um é como cada qual. Para mim, esta canção sempre disse tudo.
Os Pulp eram uma banda muito sensível e eloquente, quanto a mim.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Com Deus não se brinca, Zé Rafael!

To criticise a person for their race is a manifestly irrational and ridiculous. But to criticise their religion - that is a right. That is a freedom. And a law that attempts to say you can criticise or ridicule ideas, as long as they are not religious ideas, is a very peculiar law indeed. It all points to the promotion of the idea there should be a right not to be offended... In my view, the right to offend is far more important than any right not to be offended.

Quem diz isto é o Rowan Atkinson, que costumava ter muita piada a fazer de Mr Bean e de Blackadder. O artigo, publicado no Guardian, é antigo, de 2004, mas tem muita relevância, acho eu.
Este argumento de se dizer que " não se brinca com aquilo em que as pessoas acreditam" é um tanto ou quanto, não sei, diria que parvo. Brinca-se, goza-se, troça-se, e paciência. É assim. A lei apenas pode prevenir e proibir a discriminação efectiva, não pode nunca proteger ninguém que sente que foi ofendido porque as suas crenças religiosas foram insultadas, troçadas, alvo de crítica ou graça.
Se me perguntarem, "ah, mas gostavas que gozassem contigo por causa da tua religião?", é evidente que não, não gostava. Não considero que se deva incitar as pessoas a troçarem umas das outras por causa da religião ou valores pessoais. No entanto, não podemos perspectivar as coisas neste plano. Por exemplo, eu sou contra a pena de morte e tenho dificuldade em aceitar que haja gente que seja a favor. As pessoas a favor costumam perguntar-me, "mas se te acontecesse isto ou aquilo a ti, não querias que o criminoso morresse, não achas que o deviam condenar à morte?". É evidente que sim, que o desejaria, que o matassem, esfolassem, etc. - eu, em particular. Eu não sou o Estado (com alguma pena minha). Daí a considerar que o Estado deve poder andar por aí a matar gente, vai uma grande distância.
Quando a notícia linkada ali em cima saiu no Guardian, andava tudo em alvoroço devido àquele jornal dinamarquês que tinha publicado uns cartoons com imagens de Maomé, que algumas comunidades muçulmanas consideraram muito ofensivas. É uma pena que tal tenha acontecido, e é pena que as pessoas se tenham sentido ofendidas. Sabemos, também, que nenhum direito é ilimitado, muito menos o direito à liberdade de expressão. Mas não me parece que isto se possa controlar - há que aceitar que a religião pode estar sujeita a ofensas, que quem ofende tem o direito de ofender e que quem é ofendido tem o direito de se sentir ofendido. Pode fazer-se alguma coisa relativamente a isto? Não.
Como diz Rowan Atkinson, e a meu ver bem, há uma diferença fundamental entre ofender alguém com base na sua etnia, nacionalidade, etc., e ofender alguém quanto à religião que escolhe seguir.
Não chora, colabora (prometo que vou para de usar esta frase num destes dias).
É que Deus, com certeza, também precisa de se rir e brincar de vez em quando, como se ilustra no vídeo aqui em baixo.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Vira-casacas

Até quando é que uma pessoa se deve esforçar?
O que pergunto é se há uma idade aceitável a partir da qual a pessoa não tem de pensar no que diz e a quem diz, como se deve vestir, quem deve conhecer e quem deve ignorar, o que deve ou não comprar, como se deve comportar, que trabalho deve ter, que emprego não deve aceitar, quantos livros ler e que livros, quantos filmes ver e que filmes, etc.
John Cusack diz, em Alta Fidelidade, e com uma certa razão: "what matters is what you like, not what you are like". Até que ponto é que aquilo de que gostamos é diferente daquilo que somos? Se eu gostasse da Britney Spears, era menos pessoa por causa disso? Se calhar, era. Não, não era nada, que disparate.
Quem diz que não se deixa influenciar por estas coisas, que não quer saber, está a mentir. Nunca conheci ninguém que não quisesse saber, mas já conheci muita gente que pensa não querer saber. Não estamos só a falar de aparências - estamos a falar de um esforço constante que vamos adaptando à situação, ora aqui deixa-me esconder que sou de esquerda, ora aqui convém disfarçar que sou mais neoliberal de direita, e aqui não vou dizer que não gostei do Guerra e Paz, vou só dizer que tenho de ler outra vez, quando for mais velha, e aqui vou dizer que sim senhora, até ouço Sigur Ros, e mais tarde já digo que não, realmente Sigur Ros são uma seca (por acaso, acho que são mesmo, já escrevi sobre isso, blá blá blá).
Sei muito bem o que me vão dizer - ah, realmente, que vira-casacas. Nada disso, ou por outra - acho que o sou na exacta medida em que os outros também são. Adapto-me. É uma questão de sobrevivência, de uma diplomacia inata que nos permite ir manobrando a vida até esta se tornar suportável na dimensão de chatices que comporta.
Mas requer algum esforço. Uma coisa é vir para um blog, escrever o que apetece de forma quase anónima, outra bem diferente é todos os dias lidar com colegas, chefes, superiores ou inferiores, o que seja, e ter não necessariamente de agradar a toda a gente, mas manter uma máscara de civilização. Se alguém no trabalho me diz que acha muita graça a ir a concertos da Anastasia, a ouvir as anedotas do Fernando Rocha e ir à Madeira no Ano Novo porque o fogo-de-artifício é tãããããão giro, faço o quê, dou-lhes um estalo na cara?, ou opto por um meio sorriso, sim senhora, a Madeira e tal, por acaso nunca fui, gostava de ir, se calhar no Ano Novo é bom, disseram-me que a Anastasia é muito profisisonal ao vivo, dá grandes concertos, quanto a Fernando Rocha calo-me, e assim por diante.
E pronto, sinceramente, é tanto esforço que uma pessoa se cansa amiúde. Dizem-me que só quando eu for reformada é que isto passa, mas pelo andar da carruagem e pelas previsões dessa instituição que é, digamos que, espectacular, o FMI, nem sequer vou ter reforma nenhuma, portanto estou sem saída.
Como dizia o outro, e como já escrevi antes, não chora, colabora.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Bicicleta

Hoje tinha tanta, tanta, tanta vontade de andar de bicicleta, pedalar e pedalar, e ver os prédios a passar muito depressa, e tocar à campainha com força para as pessoas saírem do caminho, e continuar a pedalar, e aquele lugar-comum de sentir o vento na cara e sermos saudáveis e sentirmos que o mundo é todo nosso é mesmo verdade, e mesmo quem anda mal de bicicleta, como eu, e tem de parar nas rampas e empurrar aquilo por ali acima até ficar ofegante que é uma vergonha, ou então descer rampas quase a travar até se arriscar a cair da bicicleta abaixo, dizia eu, até quem é assim gosta de andar de bicicleta, e depois chega-se a casa e as pernas doem tanto, e lá fora estava frio mas nós estamos encalorados e é tão bom.
Já há muitos anos que não tenho uma bicicleta minha, e a última vez que andei estava em Londres, o tempo estava curiosamente lindo, fui para o meio do campo no meio de Londres, o que, também curiosamente, pode acontecer, e pedalei até me fartar, e toda a gente se desviou do caminho, e o sol brilhava no rio, e tudo parecia tão perfeito que nem parecia um dia normal, mas era, e havia um silêncio tão grande, nem os cães que passeavam com os donos faziam barulho, era mesmo campo, e isto no meio de uma grande cidade, mas depois tive de voltar para casa por ruas mais agitadas, já era de noite e apareceu-me um daqueles autocarros de dois andares por trás e tive de subir para o passeio, e isso assustou-me um bocadinho, mas não aconteceu nada, cheguei a casa sã e salva e orgulhosa de mim própria, e tinha um cachecol de lã muito quente que a minha mãe me fez, muito bonito, e um kispo muito feio, à homem, por cima, que tive mesmo de usar por causa da temperatura, e tinha as calças arregaçadas para não se prenderem nas correntes e as pernas ficaram todas arranhadas e sujas de óleo e eu não me importei nada, e as minhas mãos, sem luvas porque não tinha luvas, estavam rígidas e quase congeladas de agarrarem no guiador com tanta força, e eu senti-me tão bem, melhor do que nunca.
Hoje tenho saudades de uma bicicletazinha. Pronto. O Almada Negreiros dizia que a salvação não está nos livros, mas se calhar está numa bicicleta a toda a velocidade. A salvação e a liberdade.
O post é mesmo só isto.

domingo, 10 de outubro de 2010

Nozes, dentes, chicotes

Em Melinda e Melinda, de Woody Allen, há uma personagem, Lee, que está com a sua jovem amante e fala da mulher com desprezo. Diz que a mulher não faz mais do que almoçar e ir às compras, e quando a amante lhe pergunta se ela não faz mesmo mais nada, Lee responde que ela de vez em quando dá aulas de música numa escola (a mulher de Lee, interpretada por Chloe Sevingy, tinha grande talento para o piano). Lee termina a sua tirada desagradável sobre a mulher dizendo algo como it's funny, but life has a malicious way of dealing with great talent.
Deixando de parte o comentário óbvio, que é o facto de os filmes de Woody Allen, por mais repetitivos que sejam, tenham sempre, sempre, sempre algo que vale a pena, a verdade é que esta tirada de Lee é assustadoramente verdadeira. A História está repleta de exemplos de grandes génios, talentos imensos, para quem a vida foi muito mais difícil precisamente por causa do seu talento (olha o Mozart, olha o Camões, olha o Antero de Quental, olha o Edgar Allan Poe, olha o Van Gogh e etc.). Para toda esta gente, a vida devia ter sido mais fácil, o mundo devia imediatamente ter-se rendido ao talento extraordinário. Mas a vida foi, para eles e para outros com talento, muito mais complicada do que deveria ter sido. Tenho pensado, por exemplo, em Billie Holiday, sobre quem vi um documentário há pouco tempo. A Billie estava a cantar com uma banda de swing de músicos brancos e, num dos hóteis em que actuaram, foi-lhe exigido que usasse o elevador de serviço, dos empregados, para não incomodar os clientes. Em qualquer sítio em que cantasse, o mínimo que a Billie Holiday mereceria era um silêncio reverente de admiração. Mas não, em vez disso, elevador de serviço, para aprenderes que o teu talento não serve para nada e não é nada comparado com outros valores que, na altura, e infelizmente, se levantavam.
Parece que as coisas são sempre mais fáceis para os vaidosos, medíocres, talvez porque estes, como dizem os brasileiros numa expressão de que eu gosto bastante, "não se enxergam". Quem se enxerga e tem talento talvez tenha um poder de auto-crítica que será, eventualmente, quase destruidor.
Truman Capote escreveu um belíssimo texto sobre mais ou menos isto. Na introdução ao "Music for Chameleons", Truman diz que Deus, ao conceder-lhe talento para escrita, lhe tinha dado também um permanente chicote que o feria constantemente. O seu talento era também a sua tortura.
Mas pelo menos quem tem um chicote é obrigado a fazer algo com o seu talento. Há gente que tem talento, não tem chicote e depois não sabe o que fazer com o talento que tem, o que quase equivale a não ter talento nenhum. É a tal história das nozes a quem não tem dentes. Portanto, Deus, além das nozes e dos dentes, nunca se deveria esquecer de dar também um chicote bem estaladiço às pessoas, tal como deu ao Truman.

O que é bom quando nasce é para todos

No Facebook, há um grupo que pede "o regresso da exibição regular de cinema na RTP2". Já apoiei, sugeri a amigos e assinei a petição. Concordo com o que se diz na mesma - se há um canal público, este não deve ser irresponsável e optar por programação generalista  e descuidada só porque todos os outros canais privados o fazem.
Não queria, porém, dar aqui razão àqueles que se insurgem contra o facto de a RTP2 passar programas que só 0,00002% da população vê, e que assim não pode ser, porque é um canal "elitista". Em primeiro lugar, não vejo problema nenhum com o elitismo, e seria até bom que o país em geral fosse menos generalista e menos elitista. Sobre isso já escrevi, não vou repetir. Em segundo lugar, esta mania de que certos programas são para ser vistos por uma percentagem mínima de gente é um bocado ridícula. Qualquer pessoa prefere um programa bom, independentemente de todas as telenovelas e concursos que a TVI se lembre de passar. Não acredito que uma pessoa que comece a ver um filme do Hitchcock, por exemplo, passando depois para uma telenovela, não acabe por se aborrecer e mudar outra vez para o canal que está a dar Hitchcock. É só uma questão de ter ambos os programas igualmente acessíveis, em horário equivalente, com publicidade equivalente.
A ideia de que certas coisas são "difíceis" e não são para todos é perniciosa e mentirosa. Tudo aquilo que é bom é para todos - faz parte do facto de ser bom. O que é mau, pelo contrário, é que não é para todos. É apenas e só para os medíocres. A maior parte das pessoas pode não ser um génio, mas bolas, todos nós somos pelo menos normais.  Eu sei bem o que dizem as sondagens, e as sondagens dizem que as pessoas vêem o telejornal da TVI, concursos e telenovelas. Ora, eu não acredito que esta gente toda seja medíocre. É um bocado absurdo pensar-se isso. As pessoas escolhem a televisão que vêem pelo que é mais fácil. Se se tornar o Hitchcock mais fácil (horário nobre, logo a seguir às notícias, por exemplo), as pessoas vêem, porque se divertem mais. Entre os Pássaros e as Tardes de Cocó ou da Júlia ou lá o que é, o que é que qualquer pessoa minimamente inteligente prefere? Os Pássaros, claro.
Ainda que a RTP2 passasse cinema só para os tais 0,00002% da população, eu continuaria a apoiar, porque qualquer canal do Estado tem de ter programas para todo o tipo de cidadãos, minorias ou não, elites ou não. Mas não me parece ser este o caso. Penso que se trata mais de dar às pessoas uma hipótese de escolha mais honesta - ora aqui têm as Tardes de Cocó e a telenovela Xixi na Cara, ou então um Hitchcockzinho, um Woody Allenzito, e assim por diante. Entre dejectos e Woody Allen, eu acho que as pessoas com algum grau de sanidade mental vão mais para o Woody Allen. E não penso que esteja a ser demasiadamente optimista, acho que é mesmo assim.
Portanto, sejamos realistas, exijamos (? que forma verbal esquisita) o impossível, tornemo-lo possível e toca a ter todo o Portugal a ver bom cinema, a horas decentes.
Eu tenho um sonho.

sábado, 9 de outubro de 2010

Príncipe Encantado vs Pobrezinho mas Honrado

Uma das minhas canções de sempre, com um texto de sempre, é a Canção do Engate, de António Variações, o Grande. E sim, levem-me em auto de fé e vilipendiem-me em público qual Maria Antonieta, ainda por cima eu, que posso não ter tantos vestidos como ela mas que bem aprecio bolinhos, mas gosto muito também da versão dos Delfins, essa banda que tão rapidamente, e por culpa dos próprios, se tornou em motivo de chacota por parte de quem ouve música.
Mas continuando. Desde adolescente que me interrogo se será verdade que "o amor é um momento em que me dou e tu te dás" e, ainda mais fundamentalmente, se será verdade que é possível ficar-se à espera "do melhor que já não vem, e a esperança foi encontrada antes de ti por alguém. E eu sou melhor que nada".
Eu queria que isto não fosse verdade. Mas assim em geral, acho que é. Acho que é fácil as pessoas, e eu também, contentarem-se não com o "melhor", seja isso o que for, mas com o possível. Pronto, não é o Príncipe Encantado, mas é Pobrezinho mas Honrado, e é isso que interessa, não é?
Não, não é. O Príncipe Encantado nunca serviu para nada, mas Pobrezinho mas Honrado, ou seja, contentarmo-nos com aquilo que, na vida, nos parece apenas "o possível" também não chega, muito menos se se está a pensar naquelas coisas que maior parte das pessoas quer fazer, ou sente que tem de fazer - casar, ter filhos, comprar casa, carro, ter um cão, gostar de ensopado de borrego, etc.
Nunca se deve fazer nada, ou deixar de fazer alguma coisa, porque se tem medo - foi esta uma das lições mais importantes que a minha mãe sempre me ensinou. Consequentemente, não se deve escolher ninguém, por um momento ou para o resto da vida, porque se tem medo de ficar à espera, de ficar sozinho ou sozinha, porque depois chego aos 40 anos e como é que é. Concordo com António Variações, o amor é um momento, sim, mas ou é daqueles momentos que nos abalam a vida ou não é. Se não for assim, não vale a pena. Mandem o Pobrezinho mas Honrado ir passear.
De modo que, e concluindo, concordo em absoluto com António Variações. É uma canção triste, mas é realista. Em geral, o que vejo é as pessoas decidirem as coisas pelo "isto é melhor que nada". Não deveria ser assim, digo eu, mas é o que acontece. Também já me aconteceu a mim. Depois percebi, e felizmente a tempo, que o Príncipe Encantado podia não existir (e ainda bem, porque aquilo do cavalo branco nunca me conveceu muito), mas que o Pobrezinho mas Honrado também não enche as medidas de ninguém. Mais vale irmos à nossa vida porque há muito mais para conhecer, muito mundo para explorar e, felizmente, gente muito mais interessante para nos entreter. Não há assim tanta gente - mas vai-se arranjando.
E portanto, o meu obrigado a António Variações por me ter aberto os olhos e não me ter poupado. A esperança foi encontrada antes de ti por alguém, mas qualquer alguém consegue encontrar a sua esperança.
E por aqui termino, que este post, além de não fazer a justiça que eu queria à grande canção de Variações, está digno daqueles conselhos da revista Maria que, pensando bem, talvez seja uma opção profissional que eu não deveria negligenciar. Se alguém trabalhar na Maria e tiver um email para onde eu possa enviar o currículo, é só dizer (4000 euros por mês a trabalhar de casa e todas as despesas pagas é o mínimo que me podem oferecer, estou já a avisar. Bem haja).

Lágrima ao canto do olho

Este link é a minha forma de retribuir, porque realmente a amizade, bolas, é uma coisa tão importante e bonita que até dá vontade de chorar.
Concordo e retribuo em tudo, Tolan, como espero que bem saibas.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Reencontros

Ultimamente, tenho andado frouxa, e isso não se deve ao tempo, deve-se antes ao facto de não andar a ler nada de jeito. Até faz impressão.
Costumo ter um certo método na leitura, e consiste este método em começar a pensar no próximo livro para ler antes de terminar o que estou a ler. Ora acontece que acabei um livro há pouco tempo, gostei relativamente, e não acautelei esta situação de ficar sem nada para ler. Pensei que tinha em casa um livro que ainda não tivesse lido, mas realmente não tenho, isto é, tenho talvez um ou dois que não li, mas que agora também não me apetece nada, nada ler. E ando nesta perdição estultificante.
Para me entreter, e para ajudar a dormir, pus-me a ler um livreco que já tinha tentado ler antes e que é uma espécie de biografia do Marlon Brando mas que, além de estar ridiculamente mal traduzido, acaba por ser muito entediante, de tal modo que nem sequer me ajuda a adormecer. A verdade é que a vida sexual de Marlon Brando, que é efectivamente o tema do livro, não tem assim muito que dizer - consistia em dormir com quem lhe aparecia à frente. Mal o livro faz menção a uma personagem nova que Brando conhece, já eu sei onde é que aquilo vai acabar. Peca por ser previsível, portanto.
De modo que ontem decidi voltar a ler um livro de Lobo Antunes, o primeiro de todos os seus romances que li, e que é o Auto dos Danados. Já há algum tempo que queria relê-lo, porque me lembrava de ter adorado. Mas, afinal, não sei se é assim tão boa ideia. Não estou a gostar tanto como da primeira leitura. Uma coisa que nunca tinha sentido em Lobo era exagero linguístico - neste livro, tenho sentido um bocadinho. Por exemplo, há uma personagem, Nuno, que se levanta da cama e diz qualquer coisa como "levantei-me pingando noite". É um imagem bonita, uma descrição eficaz, mas há aqui qualquer coisa de escrita que se esforça demasiado. Nunca tinha sentido isto nos romances do Lobo, e não me ocorreu, com toda a certeza, da primeira vez que li os Danados. Porém, é a escrita em si que me tem causado mais estranheza, e não a história. Como sempre em Lobo Antunes, o enredo é de uma intensidade e dureza evidentes, de modo que o Auto dos Danados continua a ser, obviamente, um belíssimo livro.
E porém, entristece-me sempre reler livros que, afinal, não correspondem ao impacto soberbo da primeira leitura. É como encontrar alguém de quem gostámos muito uns anos depois, e a pessoa mudou para pior, está mais parva, verificamos que afinal não é assim tão inteligente, e a vida dela é muito mais desinteressante do que pensávamos.
É evidente que vou continuar a ler o Auto dos Danados, esperando mudar de opinião e reencontrar o livro que, dantes, eu adorava. Mas começo a pensar que re-leituras, reencontros, confrontos com o passado, nunca são grande ideia. Aquilo que correu bem no passado deve permanecer assim, uma memória agradável. Não deve voltar a fazer parte da realidade.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A basezinha

O feriado desorientou-me. Ontem, passei o dia todo a pensar que era Domingo. Hoje, ando a pensar que é segunda-feira, apesar de ser quarta. Levantei-me como se fosse segunda-feira e fui trabalhar como se fosse segunda-feira, e só depois reparei que afinal era quarta, de modo que fiz tudo mal, tudo ao modo de segunda-feira, quando na verdade devia ter feito as coisas como pede a quarta-feira.
Por mais que eu não queira, a minha cabeça acha que hoje é segunda e que amanhã é terça. De certeza que amanhã cometerei o mesmo erro, e passo a semana nisto, chegando a sexta-feira a pensar que é quarta, e a sábado a pensar que é quinta. De certeza que o despertador toca de madrugado no sábado e eu faço-me à estrada, a achar estranho não haver trânsito e a rádio desejar-me constantemente um bom fim-de-semana, quando ainda é só quinta-feira. Depois chego a Domingo e aí já penso que é sábado, estando portanto tudo bem, mas o problema é que se vai chegar à próxima segunda-feira e eu, convencida que é Domingo, fico em casa a dormir, não compareço ao local de trabalho e só lá vou na terça-feira, a pensar que é segunda, fazendo tudo como se fosse segunda-feira ao invés de fazer as coisas de terça-feira, e assim sucessivamente, até faltar a tantas segundas-feiras e fazer tanta coisa ao contrário que sou despedida, e desta tragédia não haverá saída, perco morada permanente, perco carro, deixo de pagar impostos e restantes taxas públicas e privadas e o Estado e a banca, papões vingadores e traiçoeiros, perseguem-me imediatamente com o único intuito de me despedaçar, sei lá se a droga não me começa a seduzir, e depois o que é o que eu faço.
O meu problema é que vivo de rotinas, e se me falha a rotinazinha, falha-me o resto. Sou assim, sou como o Kafka era mas sem o talento, pacatamente a fazer as minhas coisinhas, na minha mesinha, na vidinha e tal, e se vem a loucura do feriado, desoriento-me por completo. Como se diz n'Os Maias, embora acerca do latim, a rotina, a rotinazinha, é a base. É a basezinha.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Gaja que faz o meu estilo: Julia Margaret Cameron

Vivesse eu no século XIX e enviaria o currículo, passado a computador para impressionar, para a Julia, na esperança de trabalhar com ela, com os daguerreótipos ou lá como se chamava na altura.
Era tia-avó de Virgina Woolf, isto é, tia da mãe da Virginia, e nota-se bem o distinto veio artístico da família nos retratos de Julia. Todos eles uma poesia, diria eu.
Esta é a também Julia, mas Jackson, mãe de Virginia Woolf (que pescoço invejável, há que dizê-lo):


Esta é uma rapariga com um cabelo espectacular (designada por The Angel at the Tomb, fotografada em 1869):


E esta beleza é a Ophelia de Shakespeare (embora possa ser a Ofélia que se quiser, quem sabe a das cartas de amor e de Fernando Pessoa; figuras trágicas, enfim):


Lindo, lindo, lindo.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Algo está podre nessa maçã

Tinha uma amiga que dizia que não gostava de namorar com nenhum homem que se risse muito. Não gostava de ver elementos do sexo masculino sempre a sorrir e a mostrar a dentuça, fosse esta última bonita ou feia - era uma idiossincrasia que ela tinha.
Dizia esta minha amiga que rir muito era piroso, ainda por cima num homem. Um homem tinha de ser sério e armar-se em difícil, o chamado "strong silent type", quase à Clint Eastwood nos westerns do Sergio Leone. Escusado será dizer que a mesma amiga se queixava muito - e porque é que não resultava, e porque é que ele era tão difícil, e porque é que nunca tinha a certeza, e porque é que nunca se resolvia a nada, e etc. e etc.
Há esta ilusão de que temos de nos "fazer difíceis" para conquistar os outros, porque nada na vida é fácil, as melhores coisas dão sempre mais trabalho, e argumentos semelhantes. É uma ilusão, acho eu. Uma pessoa que se faz difícil está apenas a demonstrar que é uma pessoa difícil que talvez deva ir viver com os pais, os únicos que terão alguma obrigação de aturar as suas birras. A não ser que se seja adepto daquilo que o meu pai às vezes diz, e que é "se as coisas podem ser complicadas, porque é que a gente as há-de fazer simples", não percebo porque é que as pessoas têm esta atracção por tudo o que seja homens ou mulheres "difíceis". Ah, é porque o fruto proibido é o mais apetecido - sim? Pois, não me parece. O fruto proibido é sempre o que dá mais trabalho e mais chatice - não é, de todo, o que sabe melhor, de modo que não deverá ser o mais apetecido. Mas enfim, cada um é como cada qual, e se o nosso desejo é a maçã que não se pode comer, então que se vá à luta, mesmo que a maçã tenha bicho (e tem de certeza).
Não há seres humanos perfeitos, do mesmo modo que não há maçãs perfeitas. Se o ser humano ainda se arma em difícil, para além de todos os defeitos que com certeza tem, não estou a ver grandes augúrios de felicidade. A minha querida amiga, hoje em dia, aprendeu que é muito bom viver com um homem que sabe rir, que é bem-disposto e que tem mais que fazer do que ser estratega e não decidir o que quer. E está muito mais feliz do que há dez anos atrás, em que ainda pensava que a maçã perfeita não admitia sorrisos.
Eu, como sempre gostei de quem se ri muito, nunca tive o mesmo problema. Terei outros, mas para os descrever não há engenho e arte, de modo que acabo aqui, nesta nota optimista, que às vezes faz falta. Mais um bocadinho e ponho aqui um smile.

A juventude enjoa

Os chamados "telethons", maratonas de televisão, são, para mim, e acho que para os restantes mortais, quase tão impossíveis como o Sequim de Ouro ou Jogos sem Fronteiras ou isso. São programas longos, chatíssimos, parvos. E o de ontem à tarde, que a RTP estava a transmitir e que era sobre a República, não foi excepção. Só vi um bocadinho, mas posso afiançar que foi mau. E porquê? Não por causa dos convidados, mas sim devido aos apresentadores. Se há coisa que me faça alergia, para além do Natal dos Hospitais e de concursos para crianças, é apresentadores larocas. Com um sorriso sempre muito largo, sem saber o que dizer, com a voz muito bem colocada, a fingir que são muito experientes e tal. Eu acho que ficam esteticamente mal num programa que se queria com algum nível, ainda por cima sobre os 100 anos da República. Fossem buscar um apresentador mais velho, mais dinossauro, que desse nível à coisa. É preciso ver que a juventude não dá para tudo, e há coisas que se querem velhas.
Desliguei efectivamente a televisão quando apareceu uma loura de cabelo escorrido e com decote que andava a entrevistar as pessoas que visitavam o Palácio de Belém. Estava a falar com um jovem (estudante universitário, provavelmente), tratou-o por tu e terminou a entrevista dizendo "vai! Vai conhecer o Palácio!". Uma exortação, portanto, para dignificar o evento, evento esse que ficou ainda mais dignificado quando corta para intervalo e aparece o seguinte slogan, a vermelho e a verde: Vivá República.
Vivá por mais cem anos, acrescentaria eu, e vivá sempre às terças-feiras, que o feriadinho calha que é uma beleza.