Uma das coisas que me atraiu para Heart of Darkness foi saber, antes sequer de ter lido o livro, que Conrad era polaco e só aprendeu inglês aos 21 anos (!). Não percebendo bem o que leva uma pessoa a escrever numa língua que aprendeu relativamente tarde na vida (a relação que temos com a nossa língua materna, para mim, é das coisas mais pessoais que se podem ter), atirei-me de cabeça para Heart of Darkness, obra que me deslumbrou, de tal modo aquela linguagem pictórica, enérgica e forte de Conrad é poderosa. Para mim, a explicação para alguém escrever daquela forma numa língua que não é a sua explica-se apenas através de genialidade profunda, que com certeza Conrad tinha, e que responde um pouco à pergunta que sempre fiz, que é "Se Conrad conseguiu, porque que é que eu não consigo". Porque não és o Conrad, bebé.
Esta semana, assisti a uma conferência muito interessante na FLUL com Gillian Beer, que falava da memória, do exílio e do regresso, e num breve apontamente, Gillian disse que, da mesma forma que podemos emigrar para um local diferente, também podemos "emigrar" para uma língua diferente, e que é isso que Conrad faz. No fundo, Conrad não é apenas um exilado geográfico; é-o também linguisticamente. Achei esta ideia muitíssimo interessante.
Este exílio linguístico, isto é, a possibilidade de podermos escrever e falar bem numa determinada língua e preferi-la, até, à língua materna, não será apenas um exílio, mas igualmente uma liberdade. Estando, infelizmente, muito longe de ser escritora, tenho no entanto alguma experiência de ter de exprimir emocções, pensamentos, teorias e abstracções numa língua que não o português, mais precisamente o inglês, e, por vezes, constatei que a tarefa era bem mais facilitada nesta língua do que em português. Tenho muitos amigos que me repetem que seriam incapazes de escrever as suas teses na sua língua materna ao invés do inglês, por exemplo, porque a língua estrangeira obriga a mais disciplina de pensamento, mais concreção, menos dispersão - tudo o que dizemos em estrangeiro é mais científico, e tudo o que dizemos na nossa própria língua é mais emocional, vem do coração (Chomsky explica isto com a sua gramática generativa - a linguagem nasce connosco). Aquilo que dizemos na língua estrangeira parece mais lógico e racional porque a ligação afectiva com a língua é menor, e, pelo menos no meu caso, isto confirma-se não com exemplos intelectuais de teses, mas antes com o exemplo dos palavrões, que me soam mal em português (apesar de os utilizar de vez em quando; por exemplo, porra), ao passo que em inglês me soam bem, sendo que sou muito mais mal criada em inglês do que em português porque, precisamente, os expletivos em inglês não me parecem assim tão "fortes". Não parecem tão fortes pois, como diz Chomsly, a nossa faculdade da linguagem inata que justifica o "instinto natural" para a língua, e que é tão evidente na língua mãe, desaparece, ou é fortemente atenuado, na língua estrangeira, onde o mesmo instinto só se manifesta, se é que se manifesta de todo, após anos de aprendizagem, prática, fluência. O que também quer dizer, por exemplo, que certas coisas são mais fáceis de dizer em estrangeiro, porque o coração não as sente da mesma forma, e por isso sentimo-nos mais livres para dizer o que quisermos.
Daí a minha sempre renovada admiração por Conrad, esse perpétuo e magnífico exilado in more ways than one (o inglês tinha de vir aqui parar). Porém, parece-me que Conrad conseguiu uma coisa que eu sempre julguei impossível, e que foi, precisamente, vencer o exílio e apropriar-se do inglês como se fosse a sua língua mãe, com ou sem instinto natural que o auxiliasse, e escrever do coração, emocionalmente. Incrível.
2 comentários:
‘Heart of Darkness’ é um grande pequeno livro. Gostei bastante mais do que, por exemplo, de ‘Lord of the Flies’, que trata também de como sobreviver nas Trevas, mas não me encheu o peito de angústia, como o primeiro (e de cigarros, na altura ainda fumava)
Cioran é outro exemplo de alguém que escreveu a maior – e melhor – parte da sua obra numa língua outra que a materna, ele reflecte bastante sobre isso. Se soubesse onde encontrar essas reflexões, provavelmente aforísticas (o problema de se ter um único volume de obras completas é que desencoraja as pesquisas :) eu citaria. Mas olhe que dizia mais ou menos que o que a Rita refere – algo sobre como libertarmo-nos do ‘instinto natural’ para a língua e lutar com uma outra, estrangeira sempre, que nos obriga a reflectir sobre o que de facto estamos a escrever.
Quanto aos ingleses, uma palavra só para dizer que isso de se ter uma língua tendencialmente monossilábica dá um jeitaço para a poesia.
(no entanto nunca gostei de ler a poesia inglesa de Pessoa, e não se pode dizer que essa língua não fosse para ele materna)
Ah! Outro romeno que escreveu em francês, o Ionesco, mas para ser franco acho a escrita e a inventividade de Cioran – mal comparado, claro, ele não era dramaturgo nem romancista – bem superior.
Mas, francamente, Rita: ‘porra’? Nada pior? ;D
Tenho mesmo de ler Cioran, então. Talvez os "monossílabos" ingleses dêem de facto jeito para a poesia, mas eu sou uma miúda Cesário Verde, gosto daqueles versos quilométricos, narrativos, pouco concisos. Mas sim, de facto a concisão do inglês dá jeito para muita coisa. E também partilho exactamente a mesma opinião acerca da poesia inglesa de Pessoa, não é de todo coisa que alguma vez me tenha seduzido, ao contrário do Pessoa lusitano.
Quanto ao "porra" -JB, eu ando aqui a ver se este blog consegue atingir um mínimo de classe! (ponto de exclamação e tudo) :)
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