quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A minha Fada Oriana, chuif, chuif

O livro que eu mais adorava quando era pequena era a Fada Oriana, da Sophia. Li-o até à exaustão, não sei quantas vezes, e lembro-me de, ainda antes de começar o primeiro parágrafo, no vulto esguio, impreciso, uma silhueta apenas, que aparecia na magnífica capa da Fada Oriana:


Este vulto fazia parte da história, era a antecipação da Fada Oriana, do Peixe, do Poeta, de toda a história que eu conhecia tão bem e de gostava tanto. Imaginava, e imagino, a Fada Oriana assim, uma figura feminina leve, com esta cor azulada, roxa, verde, esquiva como uma verdadeira fada deve ser. O resto, inventava eu.
Foi, portanto, com grande tristeza e consternação que este Natal, quando quis comprar a minha Fada Oriana para dar de presente, soube da notícia que as edições antigas estão a ser substituídas por outras feiosas, mas mais modernaças, mais espalhafatosas, que entopem a imaginação e explicam tudo bem explicadinho, não vá a gente não saber como é que as fadas são:


A minha desilusão foi tão grande que até a senhora da livraria sentiu a necessidade de demonstrar alguma simpatia por mim: "eu também gostava mais das edições antigas, mas eles acham que assim é mais apelativo..."
De modo que fui a outra livraria e adquiri todas as edições antigas que consegui encontrar dos livros para crianças que a Sophia escreveu. Consegui o Cavaleiro da Dinamarca, a Floresta e o Rapaz de Bronze, mas duvido que consiga a Menina do Mar e a minha Fada. 
É muito mau corromperem-nos as memórias de infância desta forma. A minha Fada Oriana, pá. Não se faz! 

Não podemos ser normais

Indeed, the lack of any convictions in Greece over racist attacks has allowed migrants to be targeted with impunity, said Nikitas Kanakis, head of Doctors of the World in Greece.

Se fosse só a Troika a esventrar a Grécia, haveria ainda uma porta aberta. Mas a Grécia mata-se a si própria, numa onde de corrupção imparável, em que políticos perdem a vergonha na cara que provavelmente nunca tiveram e em que os cidadãos, como se vê pela notícia acima, embrenham-se na cobardia mais brutal que existe, aquela que impunemente lhes permite violentar estrangeiros, imigrantes, pobres e desprotegidos. 
A Aurora Dourada, na Grécia, reúne cerca de 10% dos votos, o que lhe confere mais ou menos 20 assentos parlamentares (figuras aproximadas, não sei os números certinhos). É uma enormidade para um partido que não deveria sequer existir, ou que se devia confinar a um grupo reduzido de lunáticos de quem as pessoas normais fazem troça. Mas estas "pessoas normais" são as mesmas que, nos dias de hoje, na Grécia, afirmam descontraidamente que há estrangeiros demais em Atenas - é tão cansativo... 
Por falar em Atenas, cidade em que já estive várias vezes, e que visitei novamente este Verão - nota-se que as coisas mudaram, e o que me fez notar que piores dias virão não foi propriamente lojas fechadas em catadupa, bombas de gasolina abandonadas onde sem-abrigos desamparados se refugiavam, mas sim um pequeno incidente que presenciei no eléctrico. Uma senhora polaca, com o filho pela mão, quer entrar no eléctrico com a bicicleta da criança, e o condutor impede-a, porque tem ordens estritas para não deixar entrar bicicletas aos Domingos. Não houve uma cena de gritos, nem o condutor foi particularmente mal-educado, mas a verdade é que se ficou ali algum tempo, a senhora a insistir, e o condutor a recusar a bicicleta. De repente, levanta-se um passageiro, que não tinha nada a ver com aquilo, e dirige-se directamente à senhora dizendo "a senhora é uma convidada na Grécia, não é daqui, portanto não pode desrespeitar as leis deste país que não é o seu". 
Há uma cena no magnífico filme de Bob Fosse, Cabaret, em que um camisola castanha vai, precisamente, ao cabaret, e é escorraçado dali para fora, elemento indesejado, escumalha com que ninguém quer conviver. Um dos artistas até troça de Hitler, fazendo a saudação nazi e colocando um dedo abaixo do nariz, na tentativa de imitar o bigodinho ridículo, e com isto conseguindo risada geral.
O mesmo filme acaba com um mar de gente num piquenique, ou numa espécie de "pub", não me lembro bem, a aplaudir um menino lourinho, da juventude hitleriana ou coisa parecida, em que todos se levantam e, de pé, fazem a saudação nazi. Tenebroso.
E lembro-me sempre desta cena quando me lembro da Grécia, a minha querida Grécia, que, como diria a nossa Sophia, parece agora um país que se mata lentamente. 
Não é normal que a Aurora Dourada tenha 20 lugares no Parlamento, não é normal que o padeiro grego tenha espancado o seu empregado egípcio quase até à morte e tenha contado com a complacência da polícia. E também não é normal que as pessoas normais, como nós, como todos os gregos, achem que isto é normal.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Cada macaco no seu galho

Comprar um bilhete de avião na British Airways é uma experiência interessantíssima, de grande interesse sociológico.
 Ao contrário da TAP ou doutra companhia aérea qualquer, a BA faz questão de tratar o cliente como ele deve ser tratado, atribuindo-lhe a correctíssima forma de tratamento que ele merece. Assim, quando chegamos àquela parte da identificação, escrever o nome, número de passaporte e etc., temos à nossa disposição uma lista infindável de retumbantes títulos: além dos vulgares "Miss", "Mrs" ou o democrático "Ms", ainda temos opções como baronesa, condessa, viscondessa, lady, dame (e respectivos equivalentes masculinos) e quejandos - confirmar aqui, na entrada "Title". Todo um mundo de aristocracia e hierarquia por onde escolher, que efectivamente distingue a British Airways das outras companhiazecas que tratam toda a gente tu-cá-tu-lá, como se fôssemos todos iguais. Francamente. 
Mas a BA não se fica por aqui, não. A BA sabe que os seus clientes distintos têm igualmente filhos distintos, de modo que, quando se compra um bilhete de avião para uma criança, há que distinguir entre "miss" ou o encantador (e isto mata-me, sinceramente) "mstr" - "master", para os queridos varões perpetuadores do imenso brasão que cada família que voa com a BA certamente detém.
Cada macaco no seu galho, e a BA está bem ciente disto. Quem me dera que fosse sempre asssim, para que o mundo voltasse à ordem primordial de onde nunca deveria ter saído.
Porém, há que admitir que a British Airways faz anúncios muito bonitos, como este antiguinho que deixo aqui em baixo e que me lembro de ver em pequena. Há que domesticar o indígena desde tenra idade. 


Adoro pessoas...

... que dizem "o téni" como singular de "ténis". Um téni, dois ténis.
É tão querido.
E um "lápi", dois "lápis"? Fofinho.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A oportunidade faz o ladrão

Sinceramente, houve um momento na vida em que, se eu tivesse engenho e arte, tinha surripiado uma coisa. Há uns anos, vi este poster na Cinemateca, encostado a uma parede, enorme e lindo, lindo, lindo. É uma imagem tão bonita, esta, e na Cinemateca ainda era mais bonita porque, se bem me lembro, as letras eram mais pequenas, os rostos tinham ainda mais impacto e pareciam quase desenhados a carvão (pelo menos, é assim que eu me lembro). 
Não deu para roubar, porque o poster era muito grande e estava emoldurado. Foi pena, porque ficava a matar em minha casa. Ainda nem sequer vi o filme, mas um poster destes na parede, tão bonito, daria um tal élan, um tal ambiente, que mais facilmente eu encetaria esforços para ver o filmito. 
Há que tempos que não vou à Cinemateca, de modo que não sei se o poster ainda lá está.
Gosto tanto de olhar para esta imagem, é que gosto mesmo. 

Como diz o cão dos Bichos, "misérias... "

Há tanta gente que quer escrever, escrever, escrever até morrer, não fazer mais nada, que não quer ter de se preocupar com mais nada, não quer depender de um "emprego" para pagar as contas e forçosamente perder tempo que podia aproveitar para escrever, e estas pessoas têm talento, pelo menos conheço algumas que têm, que escrevem bem melhor do que os Pedros Boucheries Qualquer Coisa deste mundo e a eles ninguém lhes edita livro nenhum (e não, não estou a falar de mim, eu nunca escrevi qualquer romance nem tenho um amontoado de folhas na gaveta à espera que o meu Max Brod revele a sua glória ao mundo).
E porém, de certa forma, estou a falar de mim. Gostava mesmo que me pagassem para escrever, não precisava de ser muito, precisava de ser o suficiente para eu deixar o "emprego" e não ter de me preocupar com as misérias de todos os dias, as misérias que necessariamente acompanham o "emprego".
E sei que tenho sorte, apesar de tudo. Não me pagam para escrever, mas também não me faltam ostensivamente ao respeito. No outro dia, por exemplo, fui ao Aki em demanda da minha primeira árvore de Natal, isto é, a primeira que a minha casa vai ter (em anos anteriores, a minha árvore de Natal era a da casa da minha mãe, mas este ano, e por motivos de força maior, vou ter uma também em minha casa, mas adiante!), dizia, estava eu no Aki e ouço um senhor que lá trabalhava, por acaso até com um ar simpático, dirigir-se assim a uma outra funcionária: "ó não-sei-quantas, acabe de limpar isto aqui e depois vá até ali ter com o não-sei-que-mais e tratem daquele assunto que eu vos disse para tratar". Isto dito de forma abrupta, assertiva, não propriamente mal-educada, mas imperativa demais para meu gosto. Que faria eu se tivesse um emprego em que a entidade patronal se dirigisse a mim nestes termos? A não ser que se tratasse de flagrante falta de respeito, o que não era o caso, provavelmente não poderia fazer nada. E percebo que a vida das pessoas em geral, e a minha também, é assim, engolir imposição atrás de imposição, coisa que apenas é amenizada quando se tem a sorte de trabalhar num sítio em que as pessoas procuram ser amenas e fingem que são todas iguais. É um fingimento, mas ajuda a suportar o dia-a-dia, acho eu.
E voltando à escrita. Vi ontem uma entrevista antiga com Saramago, na RTP Memória, e ele dizia que não percebia o conceito de arte pela arte, que o escritor não vive em torres de marfim, o escritor é um homem que vive no mundo, para o mundo, para as pessoas. E que os livros se fazem disso, de pessoas, de mundo. Eu acho que concordo (embora a ideia da torre de marfim me agrade), e precisamente por isso, porque o escritor é do mundo, seria bom haver escritores a viver apenas e só do mundo, para a escrita, sem necessidade de mais nada, sem necessidade do emprego do Kafka na repartição, por exemplo. Como diz Rilke, e como já citei e volto a fazê-lo, as profissões são todas assim, cheias de imposições, cheias de hostilidade contra o indivíduo, embebidas de ódio, por assim dizer, daqueles que cumprem mudos e a contragosto os seus insípidos deveres. Não há nenhuma profissão que seja larga e espaçosa o bastante, que esteja em relação com as coisas maiores que fazem a vida genuína.
E para acabar, é bom que fique claro que não estou aqui a dizer que o desemprego é benéfico e etc. Sei que o desemprego é trágico, e este post, ao falar de "emprego", não visa sequer tocar neste assunto. Apenas digo que os empregos, quando se arranjam, nem sempre respondem a tudo o que nós queremos. Às vezes, até nos emaranham mais a vida. Como diz Truman Capote citando Santa Teresa d'Ávila (eu cito Capote e por isso vai em inglês), more tears are shed over answered prayers than unanswered ones.
E por hoje é tudo.