sábado, 31 de outubro de 2009

Something in the way she looked


Esta menina, a Patty Boyd, que agora já é uma senhora idosa, foi mulher do George Harrison e depois também foi mulher do Eric Clapton, o que quer dizer que:

- "Something", do álbum Abbey Road, foi escrito por Harrison para ela
- "Layla", de Eric Clapton, também
- "Wonderful Tonight" também

O que dizer sobre isto? Que Boyd devia cumprir (e parece que sim, que cumpriu) a regra que a Maria Rueff, uma vez há tempos, disse que as mulheres deveriam adoptar em relação a certos homens: usa - passa - a - outra - não - à - mesma.

Sir Lee


Estou muito contente. O melhor Drácula do mundo foi merecidamente condecorado, como se pode ler aqui.
Gosto de Christopher Lee porque, ainda hoje, é a figura perfeita do vampiro cheio de classe. Ninguém fez, faz, ou fará, este papel melhor do que ele (não me venham com o Bela Lugosi, também está bem, mas não supera o Lee), aliás - ninguém faz de mau melhor do que o agora Sir Lee, cheio de pinta. E ninguém amedronta melhor e com mais classe do que Lee - o Freddy Krueger tirou-me o sono por uma semana, quando, em pequena, vi o Pesadelo em Elm Street às escondidas, mas Christopher Lee a fazer de Drácula aristocrata deu-me insónias durante 15 dias, o que bate o Freddy Krueger aos pontos, de modo que o Sir Lee merece a minha estima e consideração e desde já quero por este meio enviar-lhe os meus sentidos parabéns.
Parece que agora também vai entrar na Alice do Tim Burton. Viva, viva.

"A salvação divina, são os homens que a trazem"



E é assim, quando a escuridão aperta e tudo parece sem remédio, vê-se uma peça brilhante como esta e tudo parece, quase por magia, amenizar-se, simplificar-se - tudo parece melhor, enfim.
E vimos para casa a pensar numa série de coisas, não apenas no brilhantismo do texto, dos actores (Cintra - Batarda: ora aqui está uma grande combinação), no despojamento lindíssimo da cenografia, mas também em intensidades humanas. Em "Ifigénia na Táurida", é o rei bárbaro que concede a liberdade e o regresso à civilização dos prisioneiros gregos, por exemplo - gostei deste aspecto, fiquei a pensar nisto.
Também já tinha pensado nesta questão da civilização vs barbarismo devido a Medeia, de Eurípides - a figura da mulher bárbara, estrangeira, que mata os próprios filhos, sobre a qual escrevi aqui. Não quer dizer que tenha alguma conclusão relativamente a este assunto, porque de facto não tenho - mas estou a pensar nisto.
E, mais uma vez, os seres humanos andam sempre à volta do mesmo, e a presença dos deuses é inevitável - o confronto, a submissão ou a adoração dos deuses. Tal como em Macbeth (com certeza, tal como em muitas outras peças, mas é Macbeth que me vem à mente), a eterna questão de saber se somos nós que fazemos o nosso próprio destino, ou se são os deuses que o fazem. Por isso gostei da frase que dá título a este post. Faz lembrar o fogo divino que Prometeu rouba aos deuses e que dá aos homens, enfurecendo o mundo divino quando se apercebe que, entre deuses e homens, a diferença já não é muita.
(esqueçamos o que aconteceu ao pobre Prometeu, a águia que lhe comia os intestinos todos os dias, enquanto durante a noite os intestinos se recompunham magicamente para a águia se voltar a refastelar uma e outra vez... deixa lá o fogo em paz, ó Prometeu).

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

(desabafo extra)

E outra coisa, detesto quando as pessoas me dizem "vou dar-te um conselho", ou "aconselho-te a...".
Nem o meu pai me diz isto, quanto mais ter de aturar pessoas com a mania a dizerem-me coisas desta índole. Se alguém se põe com esta conversa, pumba, riscadinhos da minha lista. E eles preocupados. E eu também não (não estou preocupada, quero dizer).
De modo que fica tudo na paz dos anjos.

Subtileza das sensações inúteis

Eh pá, que tédio, que tédio tão grande todos os dias, sempre a mesma coisa, por mais livros que se leiam, por mais sítios onde se vá, por mais textos que se escrevam, por mais diferentes que sejam as palavras, querem sempre dizer a mesma coisa, por mais variada que seja a música que ouvimos, toca sempre os mesmos acordes, por mais genial que sejam as coisas que os outros escrevem, são sempre banalidades estúpidas sob uma capa de bom português, por mais genial que sejam as coisas que eu escrevo, são sempre banalidades estúpidas mas sem a fachada de bom português, porque às vezes também é preciso conseguir escrever mal, mas mesmo assim nada resulta, sempre tudo igual, tudo igual, tudo igual, tudo feito até à exaustão de tal modo que irrita, a merda do trânsito, impossível, não há filmes de jeito no cinema, quero lá saber das americanadas, das últimas obras primas em exibição no King, tudo o que seja vagamente europeu, vagamente língua desconhecida, vagamente imagens desconexas à Godard e é ver os críticos a babarem-se, tão previsível que mete dó, ou isso ou uma lamechice qualquer que vai ganhar o Oscar, a merda que ouço as pessoas dizer, todos os dias, elas trabalham sempre muito, são muito sacrificadas, especialmente quando vão para o Brasil procurar casa de férias, que sacrificadas que são, tanto que elas trabalham, cada vez tenho menos paciência para os outros, como é possível que os outros se suportem a si próprios, dizem as mesma coisas, antes de abrirem a boca já sei (1) onde vão no fim de semana, (2) que livro estão a ler, (3) que posição, certamente tão brilhante que enjoa, têm sobre o que disse Saramago, Saramago pode dizer o que quiser, é ridículo que sequer se tenha falado sobre isso, é ridículo que eu própria esteja a falar disso, de modo que já estou como dizia não sei quem, o inferno são os outros, como é possível que eu, com tanta queixa, me suporte a mim própria. Tudo um supremíssimo cansaço, dizia Álvaro de Campos. Tudo um imenso enjoo, permito-me acrescentar eu.
Respirar fundo, para acalmar.
Mas como dizia Sérgio Godinho - cá se vai andando, com a cabeça entre as orelhas.
(se estivesse numa fase bem-educada, pediria desculpa pela virulência tão desagradável deste post, mas estou a atravessar uma fase muito mal-educada, por tanto não peço desculpa nenhuma)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

There's something about Whitechapel (II)


- Hell's about right. I've seen it all here, lad.
Alligators waddling through the shit of the gutters
Albinos being led about on chains
Kids, no more than nine, having it off in broad daylight, probably with their sisters
Anybody in Whitechapel's yours for under a shilling.
D'you know, there's less than 250 lodging houses in Whitechapel? Housing 8500 people? 35, 40 people per house.


Este "romance gráfico" magnífico é dedicado a Polly Ann Nicholls, Annie Chapman, Liz Stride, Kate Eddowes e Mary Jean Kelly, pobres, desprotegidas, prostitutas, sem educação, sem-abrigo, sem família, verdadeiramente destituídas em todos os sentidos da palavra, e as cinco vítimas (asseguradamente - talvez haja mais) de Jack the Ripper.
Londres era, em 1888, e talvez seja ainda, uma cidade de uma riqueza extrema e de uma pobreza abjecta.
O caso de Jack the Ripper condensa muita coisa - opressão daqueles que não têm qualquer forma de protecção (pobres); fosso social profundíssimo entre pobres e ricos; abuso de poder; completa sujeição da mulher ao homem; a sensação, ambígua, pouco concreta, quase inefável, mas no entanto presente, de que algo trágico, ou fracturante, está mesmo para acontecer, nos meandros de tanta miséria repugnante, lado a lado com tanta riqueza.
Hoje, o East End londrino, o mesmo que albergou os crimes do Ripper, e tantos outros que a história escolheu não registar, e que no fim da II Grande Guerra era ainda um imenso bairro de lata onde se passava fome, devastado pelas bombas do Eixo, é hoje, cada vez mais, uma agradável zona muito artística, cheia de cafés, pubs, estudantes, artistas de rua, e onde as rendas disparam de ano para ano. O que é um bom sinal - as pessoas vivem melhor, já se pode andar confortavelmente na rua, há mais dignidade e conforto material.
Ou talvez também queira dizer que em Londres, como noutras cidades, os pobres foram morar para outro lado, um lado mais longe, mais afastado, onde a gente não os vê amiúde.
O que também é bom. Ver pobres é sempre uma maçada tão grande.
Em resumo - "From Hell", de Alan Moore e Eddie Campbell. A ler, o mais veementemente (iic, que advérbio tão feio) possível.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Devo ser só eu, mas...



... esta canção é tudo menos inocente, desculpem lá. Malandrecos, estes Beatles.

Avaliação

Hoje tive de ser avaliada para saber se merecia ou não ser despedida. Entrei numa sala e estavam três pessoas sentadas a uma mesa a olhar para mim. Um era magro e alto, a do meio era uma mulher, tão normal que não a conseguiria descrever, o da ponta era baixo e gordo. Foi este que me interpelou:
-Então, como é que te chamas? (tratou-me por tu, que falta de chá... e nem uma cadeira para eu me sentar).
- Rita.
- Ok, Rita. O que é que sabes fazer?
- Eu... assim de repente, bem... aaah....
- Então vens a uma coisa destas e não sabes fazer nada?!
- Sei, sei! Eu sei fazer muita coisa...
- Como por exemplo... - disse o homem alto e magro, parecendo muito enfadado. Reclinou-se na cadeira e olhou para mim, com os braços atrás das costas.
- Sei ler, sei escrever...
- Bom, olha, isso não me parece assim nada de especial... como tu temos nós muita gente lá fora, à espera de vir aqui. Então vá, já que estás aqui, tens alguma coisa que nos possas mostrar? - perguntou-me o gordo, novamente.
- Bom, eu por acaso trouxe um texto que eu escrevi e...
- Então vá, anda. Despacha-te. Toca a andar - o gordo, outra vez.
Comecei:
-"Era uma vez uma menina que não tinha pernas para andar. Quer dizer, pernas tinha, mas não no sentido metafórico do termo; por mais que a menina fizesse, não ia a lado nenhum. Quer dizer, ir, até ia, mas não no sentido metafórico do termo - não progredia na vida. A menina não conseguia explicar porquê, ela que até sabia falar inglês e tudo. Uma vez, a menina que não tinha pernas para andar decidiu pedir empréstimo ao banco para comprar uma muleta. O empréstimo foi-lhe concedido, mas apenas por muitos e muitos anos - quando acabasse de o pagar, já seria uma velhota. A menina comprou a muleta e, durante os anos que a muleta durou, conseguiu avançar mais ligeiramente na vida, mas quando a muleta se partiu, a menina ficou exactamente onde estava, não foi a mais lado nenhum, e ainda por cima passou a vida toda a pagar ao banco. As coisas não lhe correram lá muito bem. Fim"
Li de um fôlego e depois olhei para o júri que, por sua vez, se entreolhava, encolhia e tentava abafar o riso.
- Olha, querida, isso deve ser a coisa mais ridícula que eu já ouvi - disse a mulher, falando pela primeira vez. E tinha um ar tão simpático, apesar de tudo... - ... previsível, coloquial, pouco imaginativo...muito mau. És mesmo muito má. As verdades são para serem ditas, desculpa lá.
- Ó Rita, não vai dar, pá. - afirmou categoricamente o gordo, cada vez mais bonacheirão. - Por mim é não.
- Por mim também é não - acrescentou logo a mulher.
O homem magro olhou para mim, com um ar sarcástico e arrogante:
- Em casos como este, quem desempata sou eu.
Olhei para ele, em expectativa.
- E a resposta é... - continuou o magro, cada vez mais horrivelmente sarcástico. - ... a resposta é.... não.
Fiquei a olhar, especada, feita parva.
- Não é não. Agora vai-te embora, que temos muita gente à espera e não podemos ficar aqui o dia todo a olhar para ti - o gordo até tinha bochechas rosadas e tudo. Parecia da quinta do Tio Manel.
- E nunca te esqueças que a formação em todas as áreas do saber é muito importante, porque hoje em dia ler e escrever não chega, e ... - a mulher do meio começou com um grande discurso, mas eu não estive para a ouvir. Dei meia volta e fui-me embora.
E foi assim que a vida me despediu.

sábado, 24 de outubro de 2009

Adeus, tristeza, até depois


Este é o livro que me vai acompanhar nos próximos tempos. Para fazer esquecer os episódios tão pequeninos, tão tristinhos, tão ridiculozinhos, tão supersticiosozinhos de véu negro na cabeça, em que este país gosta às vezes de chafurdar, como se alegremente nada mais houvesse para fazer e para pensar.
Chegou a hora de acabar (com eles, os episódios). Ainda ninguém percebeu?

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

As minhas aventuras na burocracia portuguesa


Fui tirar o chamado cartão de cidadão, aquele super-cartão que é trezentos em um - a partir de agorar, pode concentrar todas as gloriosas burocracias da sua vida num único cartão! Não compre carteiras anafadas com divisórias para muitos cartões, que tem de enfiar no bolso e depois faz figura de parvo com o bolso a rebentar pelas costuras - isso é coisa do passado. Compre apenas uma prática e pequenina carteira para levar o seu único cartão, o único cartão de que alguma vez vai precisar, o Cartão do Cidadão - o cartão que é prático como você.
Era nisto que eu estava a pensar quando fui tirar o tal cartão. Estava delirante. Cheguei à pomposa "Conservatório do Registo Civil" e tirei uma senha toda profissional, que dizia cartão de cidadão - pedido (não levantamente/cancelamento, outra das opções). Fui para uma maquineta automática e absolutamente pós-moderna, onde:
1- me mediram (e, com grande pena minha, descontaram logo os centímetros extra dos saltos, embora eu tivesse pedido para não alterar nada)
2- me pesaram e viram se eu estava em período fértil
3- fizeram um scan à pupila
4 - tiraram, sem me sujar os dedos, as impressões digitais dos dois dedos indicadores
5 - digitalizaram a minha assinatura
6 - apontaram se eu era canhota ou não, porque se fosse teria de ir para uma "sala especial".
(destes pontos, apenas três estão correctos. Eu não saberia dizer, mas agora que já pedi o cartão, posso afirmar que apenas os pontos 1, 4 e 5 estão correctos. ).
Acontece que eu vou viajar no Natal. Acontece que a parva da easyjet, que é normalmente a minha opção em termos de transportadores aéreas, agora pede, para se fazer a reserva, não só número do BI, mas também validade do mesmo BI, facto que apenas poderei saber quando tiver o cartão, de onde se depreende que preciso do cartão em minha posse para poder fazer a reserva quanto antes para depois não pagar balúrdios pelo bilhete. De modo que disse à senhora que queria pedir o super-cartão com urgência, já a pensar que ia ter de pagar mil taxas e sobretaxas extra, mas pronto.
- Não - foi a resposta.
Não se pode pedir o super-cartão com urgência, tem de se esperar um período no mínimo de 15 dias, "dizem eles", segundo me informou a funcionária.
- Então e qual é o período máximo? - perguntei eu, numa lógica, que me parece acertada, de que se há um período mínimo, também haverá um máximo.
- Ah, máximo não há.
- Porquê?
- Porque isto passa por vários serviços e nós não podemos estar a assegurar nada. Se atrasar nas Finanças, ou na Segurança Social, não sabemos quando vem. Por exemplo, tivemos um cartão que demorou uma semana e outro que desde Agosto ainda não veio.
- Desde Agosto? Então a pessoa pode estar desde Agosto sem BI?!
- Pode. Nós não conseguimos dizer.
- Mas o que lhe estou a perguntar é se há um período médio durante o qual se verifica que a maioria dos cartões costuma chegar.
- O período médio, eles dizem que é 15 dias.
Tive de me rir. Acabava de constatar que me tinha encetado um diálogo com esta espécime de quem ouvimos falar nos jornais designada por "burocrata" e que, consequentemente, o meu problema não seria resolvido. Haveria, sim, a possibilidade de um BI provisório no Areeiro, levando este e aquele papel, e mais outra maningância qualquer.
Por mim, vou tirar o passaporte, que parece que demora uma semana, mas é.
E alegremente aguardo o super-cartão, super cómodo e fácil e prático e leve na carteira, trezentas informações todas concentradas numa só, enquanto ele, o cartão, inicia o seu, certamente vagaroso, percurso pelas seguranças sociais, e depois passa para as finanças, e depois para hospitais e centros de saúde, quem sabe até pelas rodoviárias nacionais e TAPs deste país, até entrar, com toda a pompa, em minha posse.

Três (exemplares) Cantos: Sérgio, José Mário, Fausto


O concerto de Sérgio Godinho, José Mário Branco e Fausto ontem, no Campo Pequeno, foi tão bom que nem tenho nada a dizer. Apenas que houve alguns problemas de som, o Fausto às vezes não se ouvia tão bem, mas nada de especial. Tudo o resto foi um exemplo de excelência. Vozes lindas, as destes senhores, poemas magistrais, a sonoridade da música popular portuguesa de que tinha muitas saudades sem nunca me ter apercebido - épico.
Gostei do concerto porque, além da música irrepreensível, a sensação de que ali estava a olhar para três exemplos da história da música portuguesa, e de Portugal também, foi indelével. Só tinha visto Sérgio ao vivo, nunca José Mário e muito menos Fausto, mais recluso, e estou contente por ter estado neste concerto histórico. Também fiquei contente com as palavras de José Mário Branco ao público - "contem connosco, para isto, e para o resto".
Apenas um reparo - o Barco Vai de Saída, canção gloriosa de Fausto, dessa também glória que é o álbum Por Esse Rio Acima, esteve flagrantemente ausente. Com todos os músicos, todos os instrumentos, um público absolutamente galvazinado, cantar o Barco teria sido, com certeza, uma apoteose. Terei de continuar a pular ao som desta canção em casa, ao invés de o ter feito ontem, no Campo Pequeno, como queria. Os meus pés ainda têm bicho-carpinteiro.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Criacionismo (o título deste post engana muito)

- Mas é que tu não percebes - dizia-me ele - ela nem sequer sabia o que era o "criacionismo".
Eu fiquei a pensar na (pobre) rapariga com quem este meu amigo tinha terminado o relativamente longo namoro - não era bonita, mas também não era feia; a seu desfavor tinha o cabelo oxigenado, mas a seu largo favor tinha a inteligência, a simpatia, o facto de ter um cão e de ser DJ nas horas vagas. Mas, pelos vistos, tais predicados não eram suficientes para ele, ainda na ressaca de um divórcio e, pelos vistos, chegando à conclusão que isto de nos apaixonarmos por alguém é mais difícil do que parece; pormenores como este do criacionismo, que não teriam qualquer importância a longo prazo, tomavam uma proporção exagerada naquela fase inicial, em que se decide se se gosta verdadeiramente, ou não, da outra pessoa.
Imagino a rapariga a aprender o que é o criacionismo, mas em vão, porque já é tarde demais; depois, a ler o Crime e Castigo, mas também já vai ser tarde demais; depois, a desfazer-se do cão e a arranjar um gato, mas também já vai ser tarde demais. E enfim. O que queremos nós dos outros, afinal?
Eu acho que queremos muito pouco. Alguém que não nos envergonhe - acho que é o fundamental. Para este meu amigo, a ignorância da (agora ex) namorada era embaraçosa. Para outras pessoas, sapatos com berloque causam um imenso desconforto. Quem souber o que é o criacionismo (nem sei como é que se escreve - tive de corrigir o post porque escrevi "creacionismo") e não usar sapatos de berloque ganha pontos porque, à partida, não envergonha ninguém. Mas isto de não causar vergonhas tem que se lhe diga. É como simpatizar com alguém, tudo muito bem, muito certinho, as coisas certas ditas às horas certas, e depois ouvir "olha, este relatório, fize-o em dez minutos".
Tudo por água abaixo. Este "fize-o" é igual ao criacionismo do meu amigo. Enfim, é assim, a vida traz muitas (des)ilusões, ou por outra: traze muitas (des)ilusões.

domingo, 18 de outubro de 2009

Tragédias banais



Há tanta tragédia na banalidade do dia-a-dia que, às vezes, sinto-me esmagada. Sei que o que estou a dizer não é novidade (À Espera de Godot, etc). Mas há muita tragédia na vida quotidiana.
Estar no Centro de Saúde e ver uma senhora velhota que vai à recepcionista pela segunda vez naquele dia - já ali esteve, disseram-lhe para ir ao hospital, onde lhe disseram para voltar ali, onde naquele preciso momento lhe dizem que tem, afinal, de ir para o hospital. É um exemplo.
Estar no autocarro, daqueles que pára nas terrinhas todas, e ver um jovem rapaz que corre disparado do fundo da rua e , no momento em que finalmente se aproxima do autocarro e abranda para respirar fundo, a besta que conduz o transporte fecha a porta e arranca o mais depressa que pode, deixando o pobre rapaz, a suar em bica, especado na paragem. É outro exemplo.
O problema é que a nossa vida é feita de pessoas extraordinárias e de outras que, não desmerecendo o humanismo de que sou adepta, são profundas bestas. E, infelizmente, há que saber lidar com bestas - o que pode ser trágico. Convém comprar um chicote.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

There's something about Whitechapel...

E por falar em Morrissey, vale sempre a pena ouvir a sua melhor canção de sempre (para mim). Ma-ra-vi-lha. Se os Silva alguma vez fizerem uma coisa assim tão boa, vou a correr comprar o disco.

Os Silva


Bom, depois de aturado estudo sobre os "traumatismos" da identidade portuguesa, tal como são designados por Eduardo Lourenço, ocorreu-me que haveria uma forma relativamente fácil de resolver a velha questão dos portugueses que vivem tão mal consigo próprios: arranjar um Morrissey e uma banda como os Smith, mas em português.
Os Smiths fizeram com que os ingleses se sentissem bem com a sua inalienável inaptitude - fizeram com que a solidão, a incapacidade de arranjar namorada/o, ser feio, não ser sociável, ser tímido, usar óculos, ter maus dentes, ser desajeitado, ser branquinho e nunca conseguir apanhar bronze, fosse cool. A partir do momento em que há uma banda que vem publicamente cantar (e cantar bem, ainda por cima) que todos os problemas que nos atormentam são, na verdade, a matéria de que os sonhos e a arte são feitos, tudo passa a estar bem. Com o "advento" dos Smith, a juventude inglesa resolveu o conflito interior que mantinha com a sua nacionalidade e consigo própria.
Visto isto, o que eu proponho é que se arranje uma banda, aqui e agora, neste país, que seja como os Smith, mas em versão portuguesa - os Silva. Os Silva podiam ter um vocalista com um nome meio estranho ("Morriqueiro", por exemplo), para contrastar com a vulgaridade da designação da banda, e podiam cantar canções sobre: ser endividado,/a ser baixo/a, ser gordo/a, ter barriga de cerveja, andar sempre a enganar a namorada/o, ter muitos filhos, casar muito novo/a,não acordar a horas, o stress de fazer sempre tudo à última da hora (algo que provoca uma fracturante crise existencial), comer bifanas, espanhóis, etc. Se aparecer alguma banda que consiga transformar todos estes "traumatimos" numa identidade absolutamente atraente e cool, todos os nossos problemas pluri-geracionais estarão de imediato resolvidos.
Podiam cantar uma canção assim, por exemplo:

Eu sou filho e herdeiro
De muito pouca timidez
É quase criminoso
Os meus pais dão-me dinheiro
E eu vou e gasto-o todo

Tu cala-te, mas é
E não te ponhas a criticar
pois eu sou apenas humano, né
Quero tanto alguém para amar,

coisas assim deste estilo.
É esta a minha proposta e a minha solução para a psicanálise do destino português. Espero que todos gostem e que resulte. Um muito obrigado.


How Soon is Now - The Smiths (o vídeo dá para ver no YouTube mas não dá para incorporar;tem de ficar apenas esta amostra foleira).

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Coisas que acontecem às boas meninas que, em vez que irem para o céu, vão viver com o Tom Waits (à partida, uma boa ideia)



- Passa-me um cigarro.
- Não, que são 8 da manhã.
- Passa-me a merda do cigarro, deves achar que és minha mãe. Aproveita e tira um para ti também.
- Ah, está bem. Realmente, não há lei nenhuma a dizer que não se pode fumar às 8 da manhã, pois não?
- (riso sarcástico) E se houvesse, qual era o problema?
- (sorriso envergonhado) Nenhum...
- Ai, tu vives tanto de regras... ora agora passa-me aí o whisky.
- Não, que ontem bebeste uma garrafa inteira.
- Não fui eu, foi o piano.
- Não, foste tu, e precisas de sair e de cortar esse cabelo.
- O piano é que precisa. Para que é que queres que eu corte o cabelo? Não fico mais bonito, deixa estar. Passa o whisky. Aproveita e bebe um copo, também.
- Está bem. Realmente, não há lei nenhuma a dizer que não se pode beber whisky às 8 da manhã, pois não?
- Mesmo que houvesse, qual era o problema?
- Nenhum...
- Já bebeste bem?
- Sim. Agora vou contar-te todos os meus segredos.
- Mas vais mentir-me sobre o teu passado.
- Sim. E mandar-te para a cama para sempre, que já são 8 da manhã e são mais que horas de dormires qualquer coisa.
- Primeiro dançamos um tango até doer.
- Está bem. realmente não há lei nenhuma que diga que não se pode dançar o tango às 8 da manhã, etc.
- E mesmo que houvesse, qual era o problema?
- Nenhum...
Etc.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

As viagens de Kant


Uma das coisas irritantes do chamado "processo de socialização", ou "processo civilizacional", Bom Selvagem, Norbert Elias e isso, é termos de morder a língua quando alguém diz uma coisa tão estúpida que dá vontade de rir ou, quando somos más pessoas e quiçá violentas, como eu, de lhes bater.
Dizia uma pessoa que conheço mas com quem não tenho, felizmente, de manter uma relação de amizade, que a vantagem de quem provém de um país grande é que o pensamento também se torna grande. Desta forma assim automática.
É verdade que uma das coisas que me atrai em países como os Estados Unidos, por exemplo, é a concepção de espaço que lá se deve ter, uma coisa imensa, a perder de vista, um fôlego maior. Gostava de saber qual a sensação de poder pegar no carro e conduzir centenas de quilómetros por dia, ver milhentas coisas e paisagens diferentes e respirar atmosferas diferentes num território que pertence sempre ao mesmo país. Basta, até, ir a Espanha, para perceber que a forma como conceptualizamos o espaço pode, efectivamente, ser bastante distinta dependendo do país onde crescemos. E, de facto, nos EUA tudo parece em ponto grande, os carros, os arranha-céus, até a comida. Talvez isso advenha do espaço imenso a que estão habituados.
Mas dizer que pensar em grande é predicado de quem vem de um país grande é absurdo. Aliás, o que é de facto impressionante em certos indivíduos é a grandeza do seu génio, independentemente da pequenez do seu país, da sua cidade, da sua casa. Não era na cidade do Kant que as pessoas acertavam o relógio de cada vez que ele regressava da universidade, tão regular, pequenina e certinha era a sua rotina? Kant nunca viajou muito. Mas isso nunca impediu o seu génio de, como dizia Fernando Pessoa, viajar e perder países - apenas não o fez fisicamente.
Poder estar fisicamente presente noutros países e noutras culturas é um privilégio. Mas viajar verdadeiramente, viajam as mentes grandes. Mesmo que nunca saiam do seu país.
E era isto que eu gostaria de ter dito à tal pessoa que me bombardeou com a barbaridade que disse, que quem vem de um país grande pensa sempre em grande, mas o tal processo-de-socialização-civilizacional reprimiu os meus instintos violentos e obrigou-me a morder a língua. Tenho de ser menos bem-educada.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A cada um, sua camisola




Há coisas que me fazem muita espécie, uma espécie desesperada, se é que isso existe (deve existir - as espécies, há-as de todas as formas e feitios, não é?). Bom. Uma das coisas que me provoca essa tal espécie é o fenómeno do "vestir a camisola", que me atormenta verdadeiramente (a metáfora, não o acto literal de se vestir camisolas, embora, como se verá, o vestuário também é coisa para me fazer espécie).
Atormentam-me as pessoas que assumem uma identidade profissional como se isso correspondesse à sua verdadeira identidade. Por exemplo, ontem fui ao supermercado com uma amiga, e dos altifalantes saía uma música verdadeiramente irritante, as palavras cuspidas muito depressa, "venha ao Pingo Doce", ou algo semelhante, uma melodia rápida e tonta a martelar o ouvido. A minha amiga comentou com a senhora da caixa que a cançãozinha não tinha graça nenhuma - era "um bocadinho feia". "Olhe que não", respondeu a senhora, "parece, mas não é". A senhora da caixa parecia tão convicta desta apenas aparente fealdade da música ("parece feia, mas não é verdadeiramente feia - dê-lhe uma hipótese e descobrirá o verdadeiro Eu desta música, que é, no seu íntimo, um amor de pessoa") que não tive coragem de a rebater, tanto mais que a mesma senhora da caixa começou a explicar pormenorizadamente todos os pormenores da publicidade ao Pingo Doce, e os "spots" novos que a televisão ia passar, e que giros que eles eram.
Por um lado, esta convicção leal à entidade empregadora é, até, comovente. Por outro lado, não é.
O exemplo mais ilustrativo, e literal, do "vestir a camisola" produziu-se quando entrei para a faculdade. Era uma faculdade conservadora, pesadona, daquelas que assustam mal transpomos a soleira da porta, um cinzento opressivo por todo o lado, carantonhas envelhecidas e de poucos (pouquíssimos) amigos nas aulas. O tipo de faculdade que existe, verdadeiramente, para "formar" os alunos, o que seria até algo bastante positivo, não fosse o facto de essa formação corresponder, verdadeiramente, a uma "formatação". E que melhor exemplo desta formatação do que quando comparávamos os colegas dos mesmos anos que, entrando na faculdade como pessoas, vá, normais, chegavam ao terceiro ano (nem sequer esperavam pelo final do curso) absolutamente transfigurados - as calças de ganga davam lugar a sóbrias calças pretas ou cinzentas, ou saia travada e collants para as senhoras; os blusões descontraídos, as camisolas largas eram trocadas por pullovers, camisas engomadas e repuxadas, saias-casaco, os queridos ténis Converse-All Star (ainda hoje tenho os meus, ai pois tenho) substituídos por camafeus horríveis com berloque, se preciso fosse, ou sapatos de enfermeira pretos ou castanhos, enfim - um pavor. Toda uma farda entediante que parecia cumprir um único propósito, o de esconder qualquer tipo de juventude, descontracção, alegria. E as pessoas conformavam-se com esta necessidade de vestir este tipo de camisola, porque só assim eram "pessoas sérias", alunos responsáveis, confiantemente trilhando o caminho do sucesso que, pelos vistos, era o único objectivo que os havia levado àquela faculdade. Pessoas que se levam a sério, respeitáveis.
Não me vou esquecer de uma manhã parda (ai que descrição tão original de uma manhã de Outono, realmente, este blog é só originalidades), dizia, não me vou esquecer de uma manhã parda em que vi um rapaz entrar para a faculdade e, não o reconhecendo, tive porém a nítida sensação de já o ter visto antes. Tinha barba (uma espécie de "pêra"), blaser azul escuro, calças cinzentas, os livros debaixo do braço, um ar de pedra, postura sólida, a transbordar daquela confiança excessiva da arrogância. Eu sabia que conhecia aquela cara, e de facto conhecia - era um rapaz que se tinha sentado, há dois anos atrás, ao pé de mim, num enorme anfiteatro, de T-shirt e calças desbotadas, e que me tinha perguntado o significado de "arrogar".
Enfim. Vistamos camisolas num dia de Inverno, quando precisamos delas, e vistamos apenas as camisolas que são nossas. Camisolas que nos querem oferecer ou impingir não são grande coisa, vem uma chuvada e esfarelam-se todas.


Women, listen to your mothers, don't just succumb to the wishes of your brothers. Take a step back, take a look at one another, you need to know the difference between a father and a lover.

Tenho a sensação (bela expressão portuguesa) que precisamos muito de ouvir White Stripes aqui em Portugal.

Kicking Edgar Allan Poe



Que canção tão absurda. Que canção tão perfeita.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

História da menina que só sabia que nada sabia

Era uma vez uma menina que queria muito escrever mas não sabia sobre quê.
"Escreve sobre aquilo que conheces", disseram-lhe, e foi o pior conselho que lhe deram, porque a menina compreendeu, com grande lucidez, que, efectivamente, não conhecia nada, e por isso não tinha nada para escrever nem nenhuma história para contar, o que a afectou gravemente, de tal modo que desenvolveu uma depressão colossal, passou a vida de psiquiatra em psiquiatra tal como as pombinhas da Catrina, nunca conseguiu arranjar um emprego que a suportasse por mais de um mês, e ainda por cima a recibos verdes sempre, ainda por cima a menina explorada, se não fosse a família, com posses, a pagar o psiquiatra ai, ai, como é que era, e mesmo assim com tanta consulta a menina não conseguia conhecer nada e, consequentemente, nunca conseguia escrever, de modo que acabou por se casar com um homem que também não conhecia nada, muito menos escrevia, mas estava efectivo não sei onde, um homem que a distraía e via televisão com ela, e quando começou a ter filhos a menina percebeu que o melhor era deixar-se dessas coisas da escrita, e já agora das leituras também, que isso só traz é agruras e sofrimentos.
E foi assim que deixou de ir ao psiquiatra, deixou de escrever e, continuando sem conhecer nada, ao menos poupava nas contas ao fim do mês e era quase, quase feliz.
Fim.