sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A tradução é uma bitch

Ao ouvir a versão de Jarvis Cocker de Je suis venu te dire que je m'en vais, de Serge Gainsbourg, artista de quem gosto bastante, e desta música em particular também, constatei muito claramente que, de facto, a tradução pode imprimir uma diferença absolutamente abissal aos textos.
A canção, que já deixei aqui num post anterior, tem um tema já de si triste, em que um homem diz à namorada que a vai deixar. Apesar da versão em inglês, cantada por Jarvis Cocker, ser uma tradução relativamente próxima do original francês, há certos pormenores que a tornam muito mais cruel e insensível. Por exemplo, em francês, Serge canta: je suis au regret d'te dire que je m'en vais, car tu m'en as trop fait. Comm' dit si bien Verlaine au vent mauvais, je suis venu te dire que je m'en vais

E, em inglês, canta, de forma muito mais blasé, Jarvis Cocker:
like the poet said, the wind is blowing. Yes, I loved you once, but hey.
Ao menos, Serge ainda tem a decência de quase responsabilizar o vento, de reconhecer o esforço da namorada, ainda que a sua decisão não mude. Mas, ao passo que Serge diz "olha, vou-me embora, mas quero que saibas que tenho pena e que admito que me fizeste bem", Jarvis limita-se a dizer "olha, vou-me embora, azar". De facto, a única justificação que ele tem a oferecer é: hey. Shit happens, mais valia ter dito logo. Que pobreza:












Este problema da tradução desta canção revela também atitudes quiçá mais profundas em relação às rupturas amorosas. Serge parece ser adepto de alguma suavidade para amenizar a situação, ao passo que Jarvis parece ser defensor da verdade nua e crua, a despachar, que ela agora fica triste mas há-de passar. E mesmo que não passe, ele não quer saber e não tenta fingir que quer (talvez até se possa chamar a isto honestidade), enquanto o Serge é mais sensível.


Eu gosto mais do Serge.

2 comentários:

Luis F. Cristóvão disse...

há uma coisa que não reparas: na atitude de "doirar a pílula" do Serge há uma profunda confiança em si mesmo, do género "eu sou tão bom que até quando te deixo sou capaz de encontrar uma justificação poética para te deixar na merda". Já do lado do Jarvis, e não é só na tradução, é algo que passa em toda a música dos Pulp, a situação psicológica é do género "filho-da-puta de azar que não tenha dado em nada, mas hey, eu também sou uma merda..."

Entre os dois, eu gosto mais do notoriamente-sem-auto-estima hey :)

Rita F. disse...

Luís, os argumentos fazem todo o sentido e, em teoria, até concordo. Mas, na prática, não concordo. A confiança do Serge vem do facto de ele já ter decidido de antemão que a vai deixar; ele pode até estar convencido de que é muito bom, mas parece-me que tenta de alguma forma honrar, ou respeitar, aquilo que teve com a namorada, ainda que a justificação poética que dá contribua também para demonstrar que é um homem de qualidades, o que talvez seja de facto o seu verdadeiro objectivo. Não me parece, no entanto, que o Jarvis diga "puta do azar", acho que ele diz mesmo só "azar". Concordo que muitas das canções dos Pulp têm essa atitude de "eu também sou uma merda", mas aquilo que fundamentalmente passa na versão do Jarvis parece-me mais indiferença que outra coisa, e não depreendo que haja aqui falta de auto-estima. Talvez sim, talvez não, mas indiferença julgo haver. O que, como disse, até pode ser mais honesto.
No fundo, vai dar ao mesmo, porque tanto um como outro estão ambos a dizer "desenrasca-te que eu vou-me embora" - a sobranceria é comum aos dois. Mas eu acho sempre de bom tom que estas coisas se digam de uma forma sensível.