Neste fim de semana, num jantar de amigos, contaram-me aquela anedota sobre Deus que, ao criar o mundo, decide também criar um pequeno país, com uma costa imensa e magnífica, cheio de peixinho fresco, de sol e de verde. Um anjo, perplexo por ver tanta aridez e terra inóspita no mundo, pergunta a Deus a razão de, subitamente, ter criado tão aprazível lugar. Responde Deus : “Espera até veres o pessoal que eu lá vou pôr”.
Não conhecia esta anedota, mas ri-me bastante. Um belo exemplo do amargo sentido de auto-depreciação dos portugueses.
No seu Labirinto da Saudade, Eduardo Lourenço explica de alguma forma esta amargura, com mais ou menos verve, com mais ou menos acidez, dos portugueses, que se acham sempre miseráveis e que vivem fascinados com tudo o que se faz ou se importa do estrangeiro, por mais reles que o estrangeiro seja. Somos um povo traumatizado que, por isso, sempre teve necessidade de um “irrealismo prodigioso” para lidar com o seu conflito interior. Um país que nasceu de um filho que se rebelou ilegitimamente contra a mãe e que, por isso, desencadeou uma necessidade imensa de justificação, de um destino maior, mais nobre e divino a cumprir, para que a independência e a nossa própria razão como país fizessem o mínimo de sentido. Começa-se logo pelo milagre de Ourique, em que, muito apropriada e convenientemente, Jesus Cristo aparece a D. Afonso Henriques, incitando-o a lutar pelo pedaço de terra que é seu e ungindo-o como rei por direito divino. A partir daí, ao que parece, nascemos nós. Afonso Henriques passa a ser D. Afonso Henriques, rei de um país chamado Portugal, e consequentemente inventando os Portugueses. Razão mais que suficiente, se é que outras não existissem, para deixar de se acreditar em definitivo nos delírios de Alexandra Solnado e quiçá outros portugueses que sonham que falam com Jesus – parece que ele já disse o que tinha a dizer ao primeiro rei de Portugal, meus amigos, portanto vejam lá de quem são as vozes que vos gritam (ou sussurram) aos ouvidos.
A História talvez se repita um pouco na Revolução de 1383 (acontecimento que eu, devo desde já esclarecer, acho muito bonito), em que, em nome de uma burguesia a quem Castela não convinha, João das Regras e Álvaro Pais se desunham a encontrar argumentos, desta feita jurídicos, que consigam justificar a ascensão ao trono do pobre Mestre de Aviz, um novato naquelas cavalgadas, em detrimento daquele que, pecado dos pecados, e na ausência de varão herdeiro de sangue, tinha legítimas pretensões ao trono – o terrível Rei de Espanha! Depois, como sabemos, vieram os Descobrimentos, vieram 500 anos de auto-glorificação por causa dos Descobrimentos que ainda perduram, veio o Quinto Império, veio Camões e respectiva mitificação, veio a Amália e respectiva mitificação, o Eusébio, o Benfica, as sardinhas, o bacalhau e respectiva mitificação, veio o tal “irrealismo prodigioso” e veio este sentimento estranhíssimo de que há algo neste país que é o melhor do mundo e que ao mesmo tempo é um equívoco. Somos, enfim, um poço de contradições. Ou proclamamos em altos berros o nosso heroísmo ou nos queixamos o mais azedamente possível que este país nunca há-de andar para a frente porque não presta para nada e que nascer em Portugal é a pior sina do mundo.
Não conhecia esta anedota, mas ri-me bastante. Um belo exemplo do amargo sentido de auto-depreciação dos portugueses.
No seu Labirinto da Saudade, Eduardo Lourenço explica de alguma forma esta amargura, com mais ou menos verve, com mais ou menos acidez, dos portugueses, que se acham sempre miseráveis e que vivem fascinados com tudo o que se faz ou se importa do estrangeiro, por mais reles que o estrangeiro seja. Somos um povo traumatizado que, por isso, sempre teve necessidade de um “irrealismo prodigioso” para lidar com o seu conflito interior. Um país que nasceu de um filho que se rebelou ilegitimamente contra a mãe e que, por isso, desencadeou uma necessidade imensa de justificação, de um destino maior, mais nobre e divino a cumprir, para que a independência e a nossa própria razão como país fizessem o mínimo de sentido. Começa-se logo pelo milagre de Ourique, em que, muito apropriada e convenientemente, Jesus Cristo aparece a D. Afonso Henriques, incitando-o a lutar pelo pedaço de terra que é seu e ungindo-o como rei por direito divino. A partir daí, ao que parece, nascemos nós. Afonso Henriques passa a ser D. Afonso Henriques, rei de um país chamado Portugal, e consequentemente inventando os Portugueses. Razão mais que suficiente, se é que outras não existissem, para deixar de se acreditar em definitivo nos delírios de Alexandra Solnado e quiçá outros portugueses que sonham que falam com Jesus – parece que ele já disse o que tinha a dizer ao primeiro rei de Portugal, meus amigos, portanto vejam lá de quem são as vozes que vos gritam (ou sussurram) aos ouvidos.
A História talvez se repita um pouco na Revolução de 1383 (acontecimento que eu, devo desde já esclarecer, acho muito bonito), em que, em nome de uma burguesia a quem Castela não convinha, João das Regras e Álvaro Pais se desunham a encontrar argumentos, desta feita jurídicos, que consigam justificar a ascensão ao trono do pobre Mestre de Aviz, um novato naquelas cavalgadas, em detrimento daquele que, pecado dos pecados, e na ausência de varão herdeiro de sangue, tinha legítimas pretensões ao trono – o terrível Rei de Espanha! Depois, como sabemos, vieram os Descobrimentos, vieram 500 anos de auto-glorificação por causa dos Descobrimentos que ainda perduram, veio o Quinto Império, veio Camões e respectiva mitificação, veio a Amália e respectiva mitificação, o Eusébio, o Benfica, as sardinhas, o bacalhau e respectiva mitificação, veio o tal “irrealismo prodigioso” e veio este sentimento estranhíssimo de que há algo neste país que é o melhor do mundo e que ao mesmo tempo é um equívoco. Somos, enfim, um poço de contradições. Ou proclamamos em altos berros o nosso heroísmo ou nos queixamos o mais azedamente possível que este país nunca há-de andar para a frente porque não presta para nada e que nascer em Portugal é a pior sina do mundo.
Dizia-me um amigo que a sua busca pessoal é algum sentido de auto-estima. Frequentemente, ele não sabe muito bem onde procurar a auto-estima. Claro, temos Camões, claro, temos a Amália. E mais? “Eu vou também ao Eusébio, ao Pátio das Cantigas, à Guerra do Raul Solnado, ao fado… eu até já vou ao Cristiano Ronaldo”, dizia-me ele, a explicar-me a sua demanda em descortinar algum sentido para o facto de ter “nacionalidade portuguesa” impressa no bilhete de identidade. No fundo, o que procura o meu amigo, e procuro eu, e procuramos nós todos, quer o saibamos quer não, é o recobro do traumatismo. Dizem que o tempo cura todas as feridas mas, no nosso caso, pelos vistos é preciso mesmo muito tempo.
Não tenho solução nenhuma para este problema porque, quanto a mim, este traumatismo, esta necessidade de justificação enquanto país, é um problema gravíssimo. Mas o que me parece é que a memória colectiva é essencial à identidade de qualquer país. E nós, portugueses, temos uma memória paupérrima, de uma imperdoável pobreza. Enquanto povo, somos de facto muito esquecidos. Não basta evocarmos umas quantas caravelas de vez em quando para nos convencermos de que somos portugueses “de gema”, nem afadistarmo-nos ao Povo Que Lavas no Rio depois do bacalhau do almoço com a família a aplaudir para sentir que é isso a “alma portuguesa”. Isso não é memória nem é suficiente para se falar de uma memória ou identidade nacional. Por isso é que eu não sei bem qual a voz que devemos ouvir entre as brumas da memória, e onde é que estão e quem são os tais egrégios avós. Aqueles de quem nos esquecemos? Camões, que não se lê na escola porque é “muito difícil”? Os que resistiram de uma forma ou de outra à ditadura e de que agora se fala a contragosto e quase com vergonha de que nos tomem por “comunas”? D. Afonso Henrique, sem dúvida o nosso derradeiro pai, mas que decidiu que ia ser senhor e não vassalo de um pequenote território literalmente sem rei nem roque, não se sabe bem porquê, mas parece que foi um tal Jesus Cristo que o incitou? Afinal, somos Portugal porquê? Era isto que me interessava perceber.
Não me vou afadigar em textos panfletários, de que não gosto e para os quais, de resto, também não tenho jeito nenhum, mas vou antes deixar que um belíssimo poema de um imenso poeta português “de gema” fale por si. É de Jorge de Sena e descobri-o devido a uma conversa com o Rui, que tem um magnífico blog que vale a pena visitar:
Camões dirige-se aos seus contemporâneos
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,Não tenho solução nenhuma para este problema porque, quanto a mim, este traumatismo, esta necessidade de justificação enquanto país, é um problema gravíssimo. Mas o que me parece é que a memória colectiva é essencial à identidade de qualquer país. E nós, portugueses, temos uma memória paupérrima, de uma imperdoável pobreza. Enquanto povo, somos de facto muito esquecidos. Não basta evocarmos umas quantas caravelas de vez em quando para nos convencermos de que somos portugueses “de gema”, nem afadistarmo-nos ao Povo Que Lavas no Rio depois do bacalhau do almoço com a família a aplaudir para sentir que é isso a “alma portuguesa”. Isso não é memória nem é suficiente para se falar de uma memória ou identidade nacional. Por isso é que eu não sei bem qual a voz que devemos ouvir entre as brumas da memória, e onde é que estão e quem são os tais egrégios avós. Aqueles de quem nos esquecemos? Camões, que não se lê na escola porque é “muito difícil”? Os que resistiram de uma forma ou de outra à ditadura e de que agora se fala a contragosto e quase com vergonha de que nos tomem por “comunas”? D. Afonso Henrique, sem dúvida o nosso derradeiro pai, mas que decidiu que ia ser senhor e não vassalo de um pequenote território literalmente sem rei nem roque, não se sabe bem porquê, mas parece que foi um tal Jesus Cristo que o incitou? Afinal, somos Portugal porquê? Era isto que me interessava perceber.
Não me vou afadigar em textos panfletários, de que não gosto e para os quais, de resto, também não tenho jeito nenhum, mas vou antes deixar que um belíssimo poema de um imenso poeta português “de gema” fale por si. É de Jorge de Sena e descobri-o devido a uma conversa com o Rui, que tem um magnífico blog que vale a pena visitar:
Camões dirige-se aos seus contemporâneos
Podereis roubar-me tudo:
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Duas pequenas notas antes de me ir embora: leio este poema e acho que vale muito a pena ser portuguesa, para poder ler coisas como esta. A segunda é, acho bem que se leiam Os Lusíadas de uma ponta à outra, senão já sabemos o que nos espera, porque Jorge de Sena já nos avisou.
1 comentário:
ó Rita!! Sobre isso de ser «português "de gema"» deixemos q o próprio fale por si, outra vez, com o começo de um dos seus mais portentosos poemas, "Em Creta, com o Minotauro":
«Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. (...)»
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