segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A farsa

Porque estamos no countdown final de 2008, penso que este belíssimo poema de Eugénio de Andrade sobre o belíssimo Pier Paolo Pasolini se adequa, muito e bem, ao infeliz air du temps que estamos a viver. É um poema triste, mas a poesia é uma entidade estranha, porque pode ser triste mas faz-nos sempre felizes, deixa-nos com uma alegria que, ainda que melancólica, nos vai ajudando. Mistérios desta vida.

De Eugénio de Andrade, dito por Mário Viegas, brought to you by esta invenção maravilhosa chamada Internet:


Requiem para Pier Paolo Pasolini - Mario Viegas

Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era Novembro,devia fazer frio,mas tu
já nem o ar sentias,o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa: uma navalha, o rumor
de Abril podem matá-lo - amanhece,
os primeiros autocarros já passaram
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na
primeira página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Saló, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua.

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