terça-feira, 3 de março de 2009

O lado certo da história



Li uma vez qualquer coisa sobre Leni Reifenstahl onde se elogiavam os seus filmes, embora fosse uma pena e um obstáculo intransponível esta realizadora estar "do lado errado da história".
É verdade. Estar do lado certo, ou errado, da história, é importantíssimo. Concordo, como já disse muitas vezes, com Harold Bloom no "Cânone Ocidental" - é o valor estético da obra que interessa e que a define como obra de arte monumental, não a carga política ou histórica que ela contém. No entanto, o problema que vejo nesta posição de Bloom, e como muito bem discute o LB aqui, é que tende a obliterar este critério histórico/político como se fosse absolutamente irrelevante, quando todos sabemos que não é.

Leni Reifenstahl fez filmes de uma beleza assombrosa. Mas, por serem fiéis a uma estética e a uma ideologia nazis, estes filmes são também tenebrosos e profundamente errados. Será que este critério político e ideológico não interfere no próprio valor estético da obra de Reifenstahl? É evidente que interfere. A "politização" que Bloom considera irrelevante será, talvez, um tanto ou quanto irrelevante, de facto, no caso de Ezra Pound, por exemplo, que apoiava Mussolini e o fascismo, embora isso não se reflicta na sua tremenda poesia. Até direi que casos como Gunter Grass, que assumiu ter-se alistado nas SS, são também irrelevantes. Antes de se condenar Gunter Grass como escritor por uma opção polícia que tomou enquanto jovem, será talvez preciso tentar perceber as razões que o levaram a tomar tal decisão. Quanto a mim, devo dizer, não é isso que determina o maior ou menor valor deste escritor, e será provavelmente este tipo de casos que nos fará concordar com Bloom quando este defende, apenas e só, um valor estético sem história e sem ideologia como definidor da grande obra de arte.

Embora, reiterando mais uma vez o que já disse antes e com a consciência de que me estou a tornar uma grande chata, concorde com o critério proposto em "O Cânone Ocidental", não concordo em absoluto com este critério, porque há casos em que estar do lado certo da história engrandece a obra de arte, da mesma forma que estar do lado errado a pode diminuir. Não tenho dúvidas disto. Ter recusado o nazismo engrandece aqueles que já eram, objectivamente, maiores na sua arte, como o meu querido, adorado Kurt Weill (embora, sendo judeu, não tivesse grande escolha; no entanto, Weill foi sempre político e activista até à morte); ter resistido ao fascismo em Portugal apenas aumenta a grandeza de Zeca Afonso, assombroso compositor, que, por razões estúpidas e que não compreendo, me parece muito pouco ouvido nos dias de hoje; ter morrido ao opor-se a Franco, ainda por cima na sua Granada natal, apenas enobrece ainda mais a grandeza de um poeta maior e soberbo, por quem permaneço irremediavelmente apaixonada, Federico García Lorca, e que me conquistou à primeiríssima leitura daquele seu inesquecível poema "a las cinco en punto de la tarde", na minha ida adolescência.

A morte de Lorca, em particular, impressiona por ser a morte de um trovador, a morte da poesia, a morte do rouxinol do "Menina e Moça" do querido Bernardim, ou daquela ode do Keats, enfim, a morte daquilo que, como escreveu Ary dos Santos, "pensa a gente certa". Pelo menos, para mim, a morte de Lorca simboliza isto tudo, e fico sempre emocionada e com uma tristeza galopante ao pensar nisto. Saber que ele morreu por razões políticas e ideológicas interfere, quanto a mim, na grande poesia escrita por Lorca. Não quero dizer que não possamos apreciar a sua poesia desconhecendo este facto; quero apenas dizer que vamos, com certeza, apreciá-la ainda mais, e por isso o valor estético central e absoluto, a-histórico e apolítico, que Bloom propõe como único definidor da arte deverá, talvez, tornar-se mais relativo. É que saber que todos estes poetas maiores estiveram do lado certo da história engrandece, de facto, a sua arte, e isto para mim parece-me indisputável. A próxima vez que vir o Harold, hei-de lhe falar disto.

Para terminar, deixo aqui um poema de, precisamente, o grande Lorca, cantado por outro trovador que também me parece do lado certo da história - esse animal musical que é o maravilhoso Leonard Cohen. "Take This Waltz" é de ir às lágrimas de comoção. Ouçamos, pois, com toda a reverência, com todo o respeito, de todo o coração.




Take This Waltz - Leonard Cohen

2 comentários:

manuel a. domingos disse...

estar o lado errado/certo da história depende muito de que lado da história nós estamos.

não vou deitar nenhum livro de Céline para o lixo só pelo simples facto de ele não gostar de judeus, comunistas e chineses. não vou deitar nenhum livro de Mishima para o lixo pelo simples facto de ele ser de extrema-direita (pois era daí que ele era).

Rita F. disse...

Não acho que se deva deitar nenhum livro para o lixo. Só não acho é que o lado certo ou errado da história dependa assim tanto do lado em que estamos.
É claro que nem tudo é apenas preto e branco, como muitos amigos me recordam constantemente, mas, por exemplo, não me parece que se possa relativizar uma coisa como o nazismo e os filmes da Riefenstahl. É errado, ponto.
Agora, podemos é ignorar tudo isto ao depararmo-nos com grande literatura, isso aceito e acho que sim. Embora o que eu acho não seja relevante, mas pronto, escrevi o post, estou a fazer uma adendazinha. :)