quinta-feira, 12 de março de 2009

15 minutos


O livro "Dicionário Infernal", de Collin de Plancy, foi pela primeira vez editado entre nós em 1969 [...], já na altura com tradução e introdução de Ana Hatherly, que em inteligente prefácio à presente edição recorda tudo isto, contrapondo a situação que se vivia então em Portugal com a de hoje. Passando pelo próprio estado de espírito, pelas mentalidades e pela coragem, pois aceitar fazer a abordagem de um trabalho como este durante o fascismo podia ser visto como um verdadeiro acto de sacrilégio. De pura provocação.E no entanto é uma obra belíssima e divertida, que aos olhos de agora corre o risco de parecer até ingénua. Com uma certa inocência assustada, e por isso mesmo fascinada frente ao mal e aos seus elementos mais fantasmagóricos. Milhares de monstros, demónios, espíritos e diabretes, génios, duendes, feiticeiras... Com os quais, ou a partir dos quais, Plancy foi construindo pequeníssimas e inventivas histórias. Tentando sublinhar, analisar, denunciar a superstição. Superstição de que, apesar de toda a tecnologia e dos grandes avanços científicos dos nossos dias, não nos conseguimos livrar por completo. Como diz Ana Hatherly, fenómeno que faz "parte integrante da história das ideias, da história das mentalidades, em suma, de uma antropologia cultural." Tema esse muito querido para Collin de Plancy, que acerca do assunto não se limitou a escrever apenas este livro, deixando uma obra vastíssima na sua abordagem. Constando até ter inundado o mercado a partir de 1818 com um número infindável de títulos sobre o tratamento do insólito, do demoníaco, do negrume das trevas. Assinando-os com diversos pseudónimos. - tirado daqui.


Um enigma completo é o de saber como é que um editor se atreveu a trazer este obscuro documento, que jazia no fundo da memória de um qualquer bibliotecário perverso, novamente à luz do dia a qual nunca lhe foi destinada. Outro é o da razão que levou uma poetisa de créditos e valor comprovados a empreender esta insólita tradução...Que cada leitor faça o seu juízo. (também no site da Cavalo de Ferro)


Ana Hatherly, no prefácio à sua tradução, diz que traduziu este Dicionário Infernal da mesma forma que traduziu Venus in Furs (só sei o título em inglês, é muitíssimo foleiro, batam-me na cabeça, por favor), de Sacher-Masoch: por rebeldia.


Acho que talvez seja esta, ainda, a razão pela qual se lêem os chamados "escritores malditos", independentemente da qualidade literária que estes detêm (não penso que Sacher-Masoch, ainda que interessante, se possa comparar à grandeza de Sade, por exemplo, mas é apenas uma opinião pessoal). É talvez fascinante, é uma atracção vertiginosa para o abismo, querer explorar as raízes do mal, das trevas e da sombra, destes elementos de superstição populares e "demoníacos" (já são aspas a mais para meu gosto, mas enfim), principalmente nesta época de luz e de avanço tecnológico; mas há também uma certa rebeldia nesta escolha, talvez querer mostrar que, como todos estes malditos, também nós desejamos navegar contra a maré. Ou talvez não seja nada disto, e seja meramente a atracção para o abismo, mas apenas aquela que também nos faz apreciar os pormenores mais escandalosos e gore de um qualquer Big Brother, que nos faz ler livros assim. Mas penso que não, penso que serão mais os nossos 15 minutos de irreverência anti-sistema que explicam, novamente, as "leituras malditas".

Estas leituras, a mim, surpreendem-me sempre ao demonstrar como a mente humana, de facto, após tanta mudança, tanta revolução, permanece tão igual a si mesma, com os mesmos problemas, as mesmas desconfianças, as mesmas neuroses e os mesmos pesadelos, por mais Internet e restantes confortos tecnológicos que lhe sejam oferecidos.

Mais uma vez, não tenho uma frase decente para acabar o post. Quer dizer, ter, tenho, mas está enterrada algures numa qualquer massa cinzenta a flutuar-me no cérebro, à espera que eu a encontre, e isso agora não está a acontecer, de modo que me fico por aqui.

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