sábado, 28 de fevereiro de 2009

Fobias

Não tenho medo das alturas.
Não tenho medo de espaços abertos.
Não tenho medo de espaços fechados.
Tenho medo de estacionar sem ser, para usar uma super-catita expressão, "em espinha de peixe".
Tenho medo de estacionar paralelo ao passeio porque demoro uma hora a fazer a porcaria da "manobra".
Tenho medo de estacionar paralelo ao passeio porque às vezes fica um carro atrás à espera e se eu demoro muito tempo começa a apitar e eu fico muito aborrecida e nervosa se isso acontece.
Tenho medo de estacionar paralelo ao passeio porque muitas vezes o carro não vai no ângulo certo, eu não sou boa com ângulos, e sobe o passeio, e atropela pessoas, ou então vai de encontro a postes que calha estarem no passeio e depois fico com o carro todo estragado, e o poste também fica em mau estado. As pessoas também se arriscam a ficar em mau estado se calha depararem com a traseira do meu veículo a vir com toda a convicção na direcção delas.
Tenho medo de estacionar em paralelo porque, mesmo nas raríssimas ocasiões em que eu consigo fazer "a manobra" toda certinha e como deve ser, há sempre, sempre alguém, normalmente homem, que pára para ficar ali especado a observar atentamente os meus esforços e a ver-me contorcer desesperadamente braços e volante na tentativa vã e angustiante de colocar uma máquina barulhenta com rodas num exíguo espaço entre outras duas máquinas de rodas.
Tenho medo de estacionar paralelo ao passeio porque nunca consegui descobrir os "pontos de orientação" do meu carro que toda a gente me disse que eu ia conseguir descobrir quando comecei a guiar o veículo que presentemente guio. E já tenho o dito veículo há alguns anos.
Tenho medo de estacionar paralelo ao passeio porque posso até conseguir que o carro fique paralelo, não sei é se é ao passeio, uma vez que normalmente o carro fica muito afastado do passeio.
Sei muito bem que vai toda a gente ler este post e pensar "é mesmo à gaja". A minha resposta é: sim, é à gaja, sim, o que é normal, visto eu ser uma. E também gosto de Baileys. Algum problema?

Afinal, o wrestling faz doer


Em primeiro lugar, este texto tem spoilers relativamente a The Wrestler.

Em segundo lugar, gostei muito deste filme. Gostei muito, embora só tenha dois grandes lugares-comuns para dizer, a saber: é um filme cru; é um filme honesto, principalmente pela interpetação de Mickey Rourke, que encarna de tal forma a vida de um homem absolutamente acabado, completamente sozinho (como é que será que ele conseguiu?!), que angustia.

Há pormenores no filme (que me disseram retirados de um documentário preexistente sobre os vencidos do wrestling e que se pode encontrar no youtube - também me disseram o nome do documentário e eu agora esqueci-me, mas hei-de investigar isso e postar aqui) que doem - a parte em Mickey Rourke, aka Randy The Ram, vai a uma decadentíssima e triste feira de antigos wrestlers, que se limita a uma desolada sala de ginásio com umas mesas e umas cadeiras solitárias, de saco às costas, com os seus VHS antiquíssimos, os seus posters, as suas T-shirts, à espera que alguém apareça para os comprar; os fregueses lá vão aparecendo, escassa, reduzidamente, e Mickey Rourke leva 8 dólares por uma fotografia. Põe o dinheiro numa "mariconera" (palavra fabulosa) à cintura, que o espectador vê bem, porque é filmada em grande plano. Depois, Rourke olha à sua volta e vê uns quantos outros wrestlers, absolutamente gatos pingados sem eira nem beira, acabados, com a pobre, a terrível merchandising velha, ali à espera de ser vendida. Uns estão de cadeiras de rodas, outros de bengala, todos absolutamente vencidos.

Esta cena, para mim, foi a melhor de todo o filme. Curta cena, mas de impacto fortíssimo. A mariconera é um pormenor inesquecível, aquela tristeza de ter de andar a vender coisas, de ter de andar a pedir 8 dólares às pessoas, de aquele dinheiro fazer falta, a desilusão, a pobreza que angustia. Nunca me vou esquecer da mariconera, que grande cena, de facto. Não me vou esquecer da mariconera nem deste comentário de Randy the Ram que me fez rir imenso, apesar do meu grande respeito por Kurt Cobain: Guns'n'Roses rules. Then that Cobain pussy had to come round and ruin it all. I fucking hated the 90s. ("Kobain pussy" está porreiro para definir Kurt Cobain, de quem volto a dizer que gosto muito, mas que de facto era assim a puxar para o drama queen).

Nota final para Mickey Rourke, feio (ele próprio diz, na cena final, uma desiludida e triste apoteose, se é que isso é possível, que sabe que não é tão bonito como dantes) e honesto e muito bom, e Marisa Tomei, batida, falhada, e linda, linda que ela está! Devia ter ganhado o Oscar em vez da Penélope, não tenho dúvidas.

Nota finalíssima para dizer que, nunca tendo gostado muito de Mickey Rourke porque só o tinha visto a fazer olhinhos e boquinhas para a câmara num qualquer Orquídea Selvagem, acho que gosto mesmo dele agora, e ainda por cima vi, no outro dia, um programa antigo de apanhados muito parvos na SicRadical, e aparecia Mickey Rourke de férias em Itália a aturar um guarda-costas igualmente italiano que lhe fazia de tudo (atirava-se para cima dele, não o deixava em paz) - fazia parte da "brincadeira". Mickey Rourke foi educado e simpático, e não gritou com o guarda-costas nem nada, nem lhe deu um murro nem nada, apesar do parvo do falso guarda-costas dos apanhados merecer, e portanto concluo que Mickey Rourke deve ser boa pessoa por não ter dado um murro neste tal falso guarda costas apesar de ele, reitero, merecer.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Ex

O prefixo ex- faz-me um tanto ou quanto de impressão. Ex-coisas, ex-objectos e, principalmente, ex-pessoas são entidades que eu não compreendo.

Noutro dia, a minha mãe trouxe-me uma boneca com que eu brincava muito quando era pequena. A minha ex-boneca estava intacta, há anos que ninguém lhe mexia, há anos que permanecia imóvel numa qualquer caixinha guardada lá de casa, conservando-se, inacreditavelmente, tal qual como no último dia em que brinquei com ela. Olhei-a e soube que aquela boneca conservava também um pedaço de vida igualmente intacto. Só que esta vida parecia ter sido vivida há tanto tempo que quase já não era minha, andava por aí, não era de ninguém.

Somos feitos das memórias que carregamos connosco, é o que se costuma dizer. Somos feito de passado. No filme Another Woman, Woody Allen interroga-se, através da personagem principal, se as memórias são algo que possuímos, ou algo que perdemos. Como penso que também já escrevi antes, estou convencida de que as memórias são fragmentos perdidos, mesmo muito perdidos. Podem sobreviver na nossa cabeça, mas de que é que servem? Apenas para nos lembrar do que perdemos, ou do que já não vivemos. O seu significado é tão escasso, quanto a mim. E por isso volto a evocar Marco Aurélio e os seus Pensamentos pela enésima vez neste blog: "o presente é igual para todos, o que se perde é, por isso mesmo, igual, e o que se perde surge como a perda de um segundo. Com efeito, não é o passado ou o futuro que perdemos; como poderia alguém arrebatar-nos o que não temos?"
E é igualmente escasso o valor das ex-pessoas na nossa vida. Esta é uma verdade que me surpreende sempre. Num determinado momento, aquela pessoa significa tudo. No minuto a seguir, é já uma ex-pessoa, a nossa afeição por ela torna-se subitamente incompreensível, verificamos que não precisamos dela, que ela já não quer dizer nada, pior (ou talvez melhor), que somos bem mais felizes sem ela. Que estranho. É tão estranho.
Mas enfim, ex são ex por alguma coisa. E termino atrevendo-me a fazer minhas as palavras do grande Leonard Cohen na grande canção que é Chelsea Hotel, that's all, I don't think of you that often.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Prémio de melhor blogger hipotético (II): Madame Bovary



Gostar de ser mulher

Um blog sobre o que é ser mulher nos dias de hoje, porque ser mulher é complicado

e difícil, e este blogue é sobre isso, é porque ser mulher é complicado, e também mostra que podemos casar com um médico mas isso não é tudo na vida, com este blogue pretendo ajudar muitas outras mulheres numa situação parecida à minha




Segunda-feira

Ai, hoje o Carlitos tava tão chato. Nem sei bem porqué que casei com ele. Para médico não ganha muito dinheiro nem nada. Que chatice ("que maçada", Ema, é "maçada" que se diz, as senhoras dizem "maçada", não é chatice)
Bom, tive de acordar cedo para dar-lhe um remédio qu'era para a dor de barriga. Tava nervoso, ia operar uma pessoa ou lá qué que era. Não sei, sei que tava muito bem a dormir e depois ele acordou-me.
É um bocado chato, ele, às vezes. Aborrece-me um bocado.

Terça-feira
Bom, hoje tava muito bem a ver a novela e vem o Carlitos do trabalho a interromper, não deu para ver se afinal a Lara é filha da Donatela ou da Floribela, fiquei sem saber.
O Carlitos é tão chato. É que nem faz muito dinheiro ao fim do mês nem nada. Nem nunca vamos a lado nenhum, eu a pensar que ia casar com um médico, um doutor, e nem Caraíbas, nem Brasil, nem Lisboa, nem nada.
Sempre aqui, a olhar para o ar. Tou sempre a dizer ao Carlitos, ó homem, tu vai para o privado, ó homem, tu arranja-me trabalho numa clínica (não é "tu", Ema, é "você", as senhoras finas tratam os marido por "você", "você" é que se diz, Ema). Mas ele nada. Sempre a mesma seca.
Ai...

Quarta-feira
Hoje tava a ver a novela. Há lá um actor mesmo giro. É tão bonito, o actor. É surfista. Vive numa mansão. Vai seis vezes por ano de férias com a mulher. A mulher dele tem mamas novas porque o marido é surfista e por isso é muito rico e por isso dá-lhe tudo.
E o Carlitos, sempre a mesma seca. Queria ir ao cinema ver o Austrália, já me disseram que é tão bonito, e ele nem isso consegue fazer, vem para casa, senta-se no sofá a dizer que tá cansado e de vez em quando chama-me "amor". Ai que seca. Suspiro.
Acho que vou mas é ver o Austrália sozinha, mas é.

Quinta-feira
!!!!!!
Hoje fui ver o Austrália! Sozinha! E tava lá um senhor! Também tava sozinho! E o senhor meteu conversa comigo! Disse que eu era muita bonita e tinha lábios bonitos e gostava dos meus olhos! E se não se importava que ele me desse a mão enquanto via o filme e pensava em levar-me lá onde eles fizeram o filme, à Austrália! O senhor era muita giro. Era moreno, com ar distinto.
Não me lembro bem do nome, acho que era Roby ou lá qué que era. Acho qu'ele é capitão, tão fino, um capitão, uma coisa chique...
Depois o Carlitos chegou a casa do trabalho e perguntou se o gás ainda tava ligado qu'era para ele ir tomar banho.

Sexta-feira
!!! O Robizinho disse que era para eu fazer as malas qu'era para a gente ir para a Austrália!
Ai. Tenho um amante. Acho que tenho um amante. Vou ser como a Floribela da novela. Ela tem amantes, não tem? Ou é a Donatela? Acho que são as duas, não interessa, tenho um amante e vou fugir para a Austrália!
Agora o que era giro era eu ir para lá e conhecer um cóboi, como aquele do filme. Era bem giro, o cóboi do filme.
O Robizinho disse qu'era para eu ir ao multibanco levantar dinheiro qu'é para lhe dar a ele para ir comprar os bilhetes. Ele não pode ir ao multibanco fazer nada, se a mulher descobre faz uma cena e foge com o dinheiro todo dele e depois já não vamos a lado nenhum. Se for eu ao multibanco, vamos os dois à Austrália, e depois o Robizinho paga-me a mim, qu'ele é um homem de posses, é capitão, é fino, não é como o Carlitos, que nem ao cinema me leva nem me dá nada.

Sábado
Já dei o dinheiro ao Robizinho, agora é só esperar qu'ele ligue a dizer ondé que a gente se encontra para ir para a Austrália.

Domingo
O Robizinho ainda não ligou, se calhar atrasou-se qué por causa da bruxa...bruza... brucha... brucha, Ema!, safa que é burra, da brucha da mulher.

Segunda-feira
Já tenho a mala feita.

Terça-feira
O Carlitos já me perguntou pa qué qué a mala.
Eu disse que era umas arrumações que eu tava a fazer.
Quarta-feira
A Donatela é mãe da Floribela.
Quinta-feira
Não, acho que a Floribela é qué mãe da Donatela.
Sexta-feira
A mala ainda tá feita. Tenho certeza que o Robizinho telefona, a brucha da mulher é que não tá a deixar.
O surfista divorciou-se da mulher com as mamas novas, mas agora também já lhe pagou as mamas, né.
Sábado
O Carlitos diz qu'a conta do banco tá a descoberto.
Diz que alguém levantou muito dinheiro. Diz que temos de pagar ao banco. Temos uma dívida.
Pode ser que desta vez ele vá para o privado.
Que seca.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Literatura de mulheres


Às vezes, acho que há algum preconceito contra a chamada "literatura de mulheres." Esta literatura de mulheres pode, infelizmente, querer dizer coisas que as mulheres normalmente lêem, o que, e mais uma vez infelizmente, significa maus livros. Imaginamos mais facilmente uma mulher a ler Nicholas Sparks do que um homem, não é? Isto é de uma extremada injustiça contra as mulheres.

Curiosamente, a expressão "literatura de homens" não existe. O que é "literatura de homens"? Livros que os homens normalmente lêem ou literatura escrita por homens? Penso que esta expressão não existe porque se parte do princípio que os homens lêem e escrevem de tudo, de modo que é um tanto ou quanto inútil e vão tentar agrupar toda essa panóplia sob uma qualquer nomenclatura.

De qualquer modo, a literatura de mulheres a que gostaria de me referir não é aquela que é normalmente lida por mulheres, mas antes a que é escrita por mulheres. É claro que há escritoras muito boas, que calha serem mulheres, da mesma forma que há escritores muito bons que calha serem homens. Há outras escritoras que são boas escritoras na sua esfera feminina, e são muitas vezes apregoadas como grandes escritoras por cultivarem, precisamente, um certo pendor feminino na sua escrita, que Harold Bloom designava pela "manta de retalhos feminista", talvez uma certa domesticidade, a luta por um lugar no mundo, não sei bem. Sei que uma dessas escritoras é Kate Chopin, americana do século XIX que, quanto a mim, mais valia ter estado quieta. Acho que já escrevi também sobre ela, ou aqui ou no Nascer do Sol, mas não tenho a certeza. A Kate Chopin é o exemplo perfeito de espécime escriba recuperado pelos famigerados "gender studies" que escreveu umas histórias passadas com mulheres no Golfo do México, umas coisas metiam a escravatura, outras não, a sua novela, The Awakening, presta para muito pouco e é completamente olvidável ao nível da qualidade da escrita, e mesmo assim pronto, é mulher, interessava-se um pouco pela emancipação, vamos todos achar que se trata de uma bela escritora.

Não é esse o caso, quanto a mim, e talvez a literatura de mulheres se revista de algum paternalismo e condescendência aos olhos da "literatura de homens", a literatura "à séria", precisamente por casos como este, da Kate Chopin, da Lídia Jorge (peço desculpa aos eventuais leitores desta escritora, não me consigo lembrar de outro exemplo; não acho que a Lídia Jorge seja muito interessante como escritora; acho que é exemplo de literatura de mulheres paternalista), de algumas coisas da própria Jane Austen, de algumas coisas de poetisas estilo Elizabeth Barret Browning. É claro que os homens também escrevem muita porcaria lamechas, e a eles ninguém lhes toca. O Camilo Castelo Branco, por exemplo, escreveu muita historieta que ele próprio dizia que não prestava para nada, mas escrevia para pagar as contas, e ainda hoje, e muito merecidamente, é reconhecido como um grande escritor da língua portuguesa. As mulheres, contudo, basta descambarem um pouco que seja para a literatura mais fraquinha, e são imediatamente ostracizadas.

Serve toda esta conversa para dizer que eu, pessoalmente, embirro com muita convicção e profundidade contra tudo o que seja gender studies, women studies, literatura de mulheres, manta de retalhos, etc. Acho que Harold Bloom tem razão, é o valor estético da obra que predomina e a torna num monumento, independentemente de o escritor ser homem ou mulher.

E serve igualmente este post para dizer que estou convencida de que as irmãs Bronte são um tanto ou quanto negligenciadas nos dias de hoje por causa destes rótulos de que tenho estado a falar - escrevem uma literatura "de damas", como diz o meu pai, lamechas, datada, etc. Eu acho que não escrevem nada disto. Acho que o o que escrevem (ou por outra, o que escreveram) é verdadeiramente bom, forte, sério, mormente Monte dos Vendavais (um livro violento e desbragado e incompreensível no bom sentido), mormente Jane Eyre. Não quer dizer que as Bronte não escrevam coisas que não se passem num universo feminino, nem que não se concentrem em histórias de mulheres. É um facto que o fazem, e isso não é problema nenhum, mas transcendem igualmente essa esfera para, como qualquer bom livro e qualquer boa história, atingirem algo universalmente bom, que interessa a toda a gente.

E portanto gostaria que este post fosse a minha singela homenagem a essas mulheraças que foram as Bronte. Dizer também que, quando era pequena, vi o filme de Téchiné, Les Soeurs Bronte, que figura na foto deste post, e nunca mais me esqueci dele, e desde essa altura, ou seja, há pelo menos uns vinte e tal anos, que ando à procura do filme em DVD e só o vi uma vez em Espanha, nem em Inglaterra o encontrei. Quando o vi em Espanha, parvamente convencida de que o iria encontrar na versão inglesa, não comprei. Agora não tenho o filme. Bem feita para não ser uma grande estúpida.
A Fnac espanhola, realmente, é muito melhor do que a portuguesa.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Em que se descobre que Kierkegaard e Rolling Stones têm, digamos que, tudo a ver


A minha canção favorita dos Rolling Stones é "Gimme Shelter", que reza assim: "war, children, is just a shot away, it's just a shot awaa-aay". Quando a ouço, penso que sou uma versão feminina do Mad Max, filme que nunca vi, ou do Jack Kerouac, e que preciso urgentemente de encontrar uma confortável, quentinha e acolhedora casa no meio da seara, ou de um deserto de pó, onde vou encontrar a felicidade e o refúgio eternos. Depois lembro-me de que não sou o Mad Max, que nem sequer vi o Mad Max e portanto nem sei bem do que trata, e de que já tenho uma querida e confortável casa, e que agora não me dá jeito largar tudo e pôr-me on the road.

No entanto, a música dos Rolling Stones serve para me lembrar sempre da solidão. Por mais pessoas que tenhamos à volta, amigos ou inimigos, por mais apaixonados que nos encontremos, com a pessoa amada sempre nos nossos pensamentos ou sempre connosco, estamos sozinhos, e a vida lembra-nos constantemente disso. Há sempre uma situação complicada que só nós podemos resolver e, pior, somos constantemente forçados a tomar decisões que têm apenas a ver connosco e que só nós podemos tomar. Consequentemente, a responsabilidade é apenas nossa (raio do Kierkegaard, como é possível alguém ter tanta razão?).

Sempre sozinhos, por mais gente, por mais multidão que tenhamos sempre à volta. Tal como Eurico, o Presbítero, pobre rapaz. Acho que o Eurico é uma grande personificação da condição humana, sempre a lutar contra o tal mar de dores de que também Hamlet falava, sempre atormentado, sempre com problemas, sempre com alguma dignidade mas sempre perdedor.

Portanto, os Rolling Stones cantam "Gimme Shelter", e talvez não saibam que encontrar um verdadeiro shelter é impossível; no entanto, é na verdade impossível, quer os Stones o saibam, quer não. Como igualmente canta esse trovador épico que é Sérgio Godinho, "cerrar os dois punhos e andou" é mais ou menos aquilo que podemos esperar da vida. Provavelmente, sentimentos como o amor, a amizade, o carinho, a ternura e a emoção em geral servem para criar a ilusão de que não estamos sozinhos, porque senão a vida seria impossível e insuportável. Temos a capacidade de gostar das coisas e dos outros para termos uma espécie de alívio que não resolve nada, mas de facto alivia, o que já não é mau

Portanto, a minha conclusão é: o melhor da vida, estes elevados sentimentos de amor e isso, são ilusões que servem para a gente se distrair dessa realidade inescapável que é o estarmos, irredutivelmente, sozinhos.

Agora que verbalizei isto, não me sinto assim muito bem. Na verdade, sinto-me bastante pior do que quando comecei a escrever este post.

Boa. Agora tenho de ir dormir para ir trabalhar amanhã e já sei que vou dormir mal. Mas porque é que eu venho para aqui escrever?

Se alguém quiser fazer o favor de ir ouvir a tal cançãozinha dos Rolling Stones, Gimme Shelter, pode ser que se sintam tão mal como eu, fazendo-me, deste modo, companhia.

Se alguém souber como é que eu posso pôr aqui no blog músicas que tenho no iTunes, também agradecia, porque estou farta de ir à procura de canções que quero postar aqui e só encontrar versões foleiras no imeem ou vídeos caseiros no youtube.

É isto, uma boa noite e boa sorte.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Despojos do dia


Realmente, nunca tendo lido o Ulysses, percebo porque é que um escritor portentoso como Joyce decidiu, e conseguiu, escrever um livro imenso que relata, ou esmiúça, ou analisa, ou não sei bem o que é que faz, apenas um dia na vida de um homem. De facto, num dia passa-se muita coisa, pelo menos muita coisa digna de observação, embora às vezes não nos afecte directamente.
Na minha manhã de hoje, passaram-se pelo menos três coisas dignas de nota.

Fui ao banco e estava lá uma senhora quarentona, no entanto de mini-saia, no entanto de top verde justo, no entanto de casaquinho de malha justo azul-forte, a levantar as poupanças. Não é nada comigo, mas não pude deixar de ouvir, e além disso a senhora não percebia como é que o processo se desenrolava, e se perdia juros ou não, e falava de um modo apressado, quase nervoso, ao passo que a senhora do banco, que a tratava por "tu", podendo eu apenas presumir que já se conheciam, a cliente e a bancária, explicava-lhe tudo pausadamente. A linguagem, de facto, diz muita coisa, e a crise, pelos vistos, está mesmo aqui, ao nosso lado, à vista desarmada, bastando para isso a gente ir ao banco. E também é incrível, quanto a mim, e este adjectivo assume aqui conotação fortemente negativa, que o banco obrigue os clientes a tratar de assuntos destes (o destino das suas poupanças) assim ao balcão, para toda a gente ouvir. Agora sinto-me um tanto ou quanto mal por ter descrito aqui este incidente, para toda a gente ler, mas não vou apagar nada.

Depois fui tomar café (e também um pequenino, mínimo pastelinho de nata) e constatei que havia dois écrãs plasma ligados, um na Sic, outro na Tvi. O som estava cortado, porque a rádio estava ligada, embora baixinho, para que as pessoas pudessem, por um lado, deliciar-se com a qualidade das imagens de pelo menos duas estações de televisão, e por outro arrebitar os ouvidos para decifrar, no incomodativo sussurro de fundo, a música carnavalesca que a rádio passava. Em geral, o ambiente daquele café era muitíssimo agradável e a música ambiente cumpria a sua função. A minha conclusão relativamente a este segundo incidente é que vivemos efectivamente numa sociedade de excessos, de tal modo que não só podemos comprar bicas, doces e bolos de todos os tamanhos e feitios num qualquer café, como apreciar duas emissões televisivas na qualidade do plasma, docemente acompanhados pela música da rádio. Impressionante.

Dirigi-me, em seguida, ao supermercado, onde precisava de adquirir leite e iogurtes, já que eu sem iogurtes caio na fraqueza, e, quando saía, reparei que o chão estava molhado. Havia uma senhora de esfregona na mão a limpar o chão, uma outra senhora a olhar para ela a agarrar o joelho, e uma outra senhora mais gorda a abrir a boca para falar. Esta senhora mais gorda ilustrou, efectivamente, uma característica que eu já há muito pensava ser bastante própria dos portugueses, que é a dissimulação. Mesmo quando estamos zangados, nunca temos a coragem de começar a partir tudo desde o início. Vamos a medo, sempre devagarinho, para ver se nos podemos aventurar, se não. Foi o que se passou com esta senhora gorda que, numa verdadeira escalada de verdadeira violência verbal, enceta e perpetua o seguinte diálogo com a senhora da limpeza:

- Olhe, desculpe lá, mas tem de pôr aqui um sinal a dizer que isto está molhado. Não vê que esta senhora ia caindo? (e aponta para a senhora agarrada ao joelho, que pelos vistos está mesmo magoada mas nada diz, limitando-se a assumir o confortável papel de transeunte curiosa)

- aaaah... não está assim tão molhado.... (resposta, de facto estúpida, da senhora da limpeza, que só tinha de pedir desculpa e ir buscar o tal sinal a dizer: atenção - piso molhado)

- Minha querida, tudo certo. Mas esta senhora magoou-se e podia ter sido eu, ou você!

Com este "minha querida", fiquei convencida que tudo teria uma solução pacífica, e afastei-me para me ir embora. Esqueci-me que um "minha querida" encerra muita mágoa, de modo que, depois de umas breves respostas da senhora da limpeza que não consegui perceber bem, ouço, audivelmente, a senhora gorda, já descomposta, indignada, e absolutamente esquecida do "minha querida":

- Você tá-se a rir! VOCÊ TÁ-SE A RIR?! Se fosse comigo, você não se ria, ouviu? Havia de ser você a cair aqui, havia de ser você, só queria tar aqui para ver, você não se ria, ouviu, VOCÊ NÃO SE RIA, SE FOSSE EU SUJAVA-LHE ISTO TUDO, HAVIA DE FICAR AQUI O RESTO DO DIA, VOCÊ IA VER!

Continuei no caminho de casa e deixei de a ouvir. Não sei se efectivamente a senhora gorda foi patinhar no chão que a senhora da limpeza tinha lavado, só por desfeita, mas sei que estas últimas palavras que ouvi da indignada senhora gorda já revelavam completo descontrolo e completa revolta. Devo dizer, no entanto, que estou do lado da senhora gorda. A senhora da limpeza parece-me um bocado parva, se efectivamente se pôs a rir da outra senhora agarrada ao joelho. Um bocado estúpida, de facto.

Há dias em nos acontece de tudo. Falta-me ser o James Joyce para transformar todos estes incidentes em livro e dar-lhe um título original, do estilo "As Ondas", ou um título mais longo como " Mrs F. said she would buy the flowers herself", qualquer coisa assim, muito original.

Porque é que eu ainda sou parva e vejo os Oscars?


Eu sei que os Oscars não interessam, e que olvidam sempre os filmes verdadeiramente bons, e isto e aquilo, mas eu, normalmente, costumo seguir a cerimónia dos Oscars e prestar atenção aos prémios. E costumo zangar-me quando os actores e os filmes que eu acho que merecem ganhar não ganham. De modo que me indignei muito quando Intervenção Divina, de Elia Suleiman, não apareceu na corrida a Melhor Filme Estrangeiro em 2003 porque "a Palestina não é uma nação"; achei uma injustiça sem nome que um filme anódino, de porcaria, como Crash, ganhasse ao lindo Brokeback Mountain; e este ano indignei-me com uma série de coisas, a começar logo pela carinha laroca da Penélope Cruz a ganhar o Oscar. Acho que esta actriz não esteve nada mal no Vicky Christina, mas meu Deus, este filme é indiferente, a interpretação da Penélope não é nada de especial, uma vez que o filme em si também não é - Oscar, a que propósito?

Falou-se muito do espantoso regresso desse valdevinos de cara à banda e estilhaçada que é Mickey Rourke, e bem, quanto a mim. Quero muito ir ver o Wrestler, e quem já viu diz-me que é um bom filme e que Rourke está muito bem. Falou-se pouco, ou não o suficiente, dessa underdog esquecida, provavelmente por culpa da mesma, que é Marisa Tomei, que nunca conseguiu fazer uma carreira de jeito, talvez por opções parvas em filmes sofríveis e papéis embaraçosos, mas que tem talento, e que, não tendo a cara à banda nem destruída pelo boxe, também conseguiu o seu comeback com o Wrestler. Eu, pelo menos, acho que sim. O Oscar que ganhou em O Meu Primo Vinnie foi merecido, quanto a mim; a sua interpretação em In the Bedroom foi óptima e sensível, e ainda não vi o Wrestler, mas não tenho dúvidas em acreditar que estará muito bem neste filme. Porque não valorizar este comeback de uma actriz que se anda a esforçar, pelos vistos, em vez de premiar a Penélope, que raramente faz coisas de jeito a não ser quando entra nos filmes do Almodovar? Não percebo.

Outra coisa que não me entra na cabeça é dar um Oscar a alguém que já morreu e que já não precisa deste tipo de reconhecimento para nada. Que lhe fizessem uma homenagem, pronto. Eu vi o Dark Knight e gostei muito de Heath Ledger. Mas também vi Tropic Thunder, que me fez quase chorar a rir, e adorei o Robert Downey Jr. Este sim, está vivo e se calhar um Oscarzito até lhe fazia jeito, para se esquecer dos tempos passados na prisão e tal (apesar de já ter saído da prisão há algum tempo). Fiquei um tanto ou quanto irada ao ver Downey Jr perder para Heath Ledger que, sim senhora, faz um grande Joker mas pronto, nada de épico, e além disso já morreu - vocábulo operativo, este "morreu"; Heath Ledger já não precisa do Oscar, há que reiterar. Que mania que os Oscars têm de desvalorizar a comédia, pá, e que mania que têm de se derreterem todos quando acontece alguma tragédia. Realmente, é uma infelicidade que um actor tão novo e tão talentoso como Heath Ledger tenha morrido, mas enfim, paciência, se há outro tipo melhor do que ele e que merece mais ganhar o Oscar, qual é o problema? Os Oscars têm de ser imunes a funerais. Se calhasse ter morrido o Downey Jr, tinham-lhe dado o Oscar a ele, independentemente da interpretação.

Quanto ao resto, nada a dizer, não quero saber. Gostei de Benjamin Button e gostei muito de Brad Pitt a fazer de Benjamin Button, mas pronto, o Sean Penn é muito bom actor, também. Não vi Slumdog Millionaire, não duvido que seja um bom filme, duvido apenas que seja assim tão bom que mereça um Oscar, mas também, nos dias de hoje, um Oscar já não quer dizer assim tanto. Hollywood, como o resto do mundo em geral, afunda-se na crise (ainda há poucos dias lia este artigo na Vanity Fair sobre isso - será que a crise significa o fim dos filmes indie, levando os estúdios a apostar apenas, de futuro, em produções mais comerciais sobre super heróis e blockbusters em geral, apostas de bilheteira seguras?). A modesta cerimónia de ontem, mais "toned down", por comparação com a grandiosidade exagerada dos anos anteriores, mostra isso, talvez. A crise tanto pode dar para fazer filmes com menos meios, mas muito melhores, como para que as pequenas produtoras fechem as portas, os grandes estúdios encerram as sucursais às quais dão dinheiro para produzir filmes mais interessantes, o que já está a acontecer, e para que os cinemas, consequentemente, só passem Batman e Iron Man e sei lá que mais. Eu gosto do Batman, mas tudo o que é demais é moléstia.

É o que eu tenho a dizer sobre os Oscars. Para quem diz, por ser mais estética e politicamente correcto, que os Oscars não são assim tão importantes, acho que já alonguei demasiadamente sobre este assunto.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Banda que eu não queria que fosse o meu estilo mas é: The Kills

Mas estes The Kills, quem é que são e de onde vêm?
Diz-me a Wikipedia que ela é americana, ele é inglês, e conheceram-se e depois formaram uma banda rock-indie-minimalista-anarca-punk-alternative-etc. Eu acho que esta banda é muito esquisita, porque comecei a ouvir falar deles de repente, a ouvir as canções deles de repente, participaram no álbum de homenagem a Serge Gainsbourg e tudo, Gainsbourg Revisited, de que já falei, está ali mais abaixo, o cantor desta banda parece que já vai casar com a Kate Moss e tudo, ou pelo menos ia, a rapariga desta banda tem um ar heroinómano mas no entanto saudável, fuma muito e no geral tem um ar "eu sou muita gira e tu não te metas comigo que eu não tenho medo de ninguém porque sou super-indie e cool e por isso é que fumo e tenho verniz preto descascado nas mãozinhas". É daquelas bandas que apareceu e de repente toda a gente se sente na obrigação de dizer que gosta, para se mostrarem actualizados e serem muito indie, também. O próprio nome da banda é esquisito e pede encarecidamente que o levem a sério, The Kills e tal, um nome à séria, meio violento, meio punk, pouco convencional (apesar de já haver uma banda chamada The Killers, o que está mal).
Os Kills, independentemente do que diz a Wikipedia, não me parecem lá muito independentes nem alternativos. Parecem-me um produto absolutamente estereotipado que quer desesperadamente que as pessoas pensem que é alternativo e indie. E eu gostaria, de facto, de poder dizer que não gosto dos Kills, que não caio que nem uma patinha em toda esta produção falsamente rock alternativo, rebelde, cigarros e verniz descascado. Mas a verdade é que caio, de facto, que nem uma pata. Gosto dos Kills, ou melhor, dos The Kills, porque não consigo evitar, este ar que eles têm de quem não quer saber, as guitarras, a voz entediada e sonolenta dela, o ar todo convencido, enfim, gosto.
Que chatice. Sou tão convencional.

Alergias

Sou uma pessoa hiper-sensível à linguagem, e em particular às formas de tratamento da língua portuguesa. Algumas pessoas fazem alergia ("há-lér-gia", como às vezes se ouve, apresentando grande comicidade, pelo menos quanto a mim) aos lacticínios, outras às nozes, outras aos morangos; eu faço "hálér-gia" às formas de tratamento, mormente a forma "tu" (para além, obviamente, do hediondo "você", mas sobre isso já escrevi aqui).
Faz-me impressão tratar por tu uma pessoa que não conheço bem. E ainda me faz mais impressão quando as pessoas me começam a dizer, "mas trata-me por tu, mas não faças cerimónia comigo, tu está à vontade". É normalmente nestas alturas que me apetece dizer, ponto um, faço cerimónia se eu quiser, ponto dois, consigo não quero estar à vontade. É que, de facto, há pessoas de quem não queremos ser amigos, não é? Há pessoas com que não queremos estar à vontade. Normalmente, estas pessoas que gostam, literalmente, do "tu-cá-tu-lá" não percebem que elas não nos estão a fazer favor nenhum quando, caridosa e generosamente, insistem em que as tratemos por"tu"; nós é que lhes estamos a tentar, delicadamente, dizer que a distância é sempre o melhor remédio e o melhor caminho, ao insistirmos na terceira pessoa do singular. Mas enfim, há certas pessoas, não percebo bem como, que querem, pelo menos ao nível da linguagem, mostrar que gostam de toda a gente e que são amigas de toda a gente, quando qualquer pessoa normal sabe muito bem que isso é impossível.
Assim sendo, eu geralmente desconfio sempre das pessoas que recorrem logo ao "tu" na ânsia de demonstrar que nos são próximas. Também desconfio das pessoas que são exageradamente simpáticas, e sorriem imenso, e insistem em cumprimentar-nos sempre, todos os dias sem falta, com dois beijinhos (oh pá, haja paciência para os beijinhos, tenho um colega que não falha com a porcaria dos beijinhos, qualquer dia digo-lhe, "olhe, hoje não vai dar, ok, olhe que eu estou com herpes mas não se nota, portanto veja lá", e ele assim fica assustado e deixa-me em paz). Conheço uma outra pessoa que é assim, sempre a sorrir imenso, sempre muito simpááááática, tanto beijinho, tanto que ela goooooosta de mim, e considerando que nunca falámos mais do que dez minutos seguidos, não tenho dúvidas de que todos os seus sentimentos e simpatia são absolutamente sinceros.
É neste aspecto que eu gosto dos ingleses em geral, pelo menos tomando em consideração aquilo que deles tenho observado. Os ingleses são distantes, são reservados e a gente nunca sabe bem em que é que eles estão a pensar, mas pelo menos nunca por nunca se armam em amigalhaços, nem desatam aos beijinhos e aos sorrisinhos. Aperto de mão e chega.
E esta atitude dos ingleses em particular é que está bem. Beijinhos é só para amiguinhos e namoradinhos, é o que tenho a dizer à sociedade portuguesa.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Gosto de Tim Robbins


Os Óscares aproximam-se, e deve ter sido por isso que me lembrei deste filme de Robert Altman, O Jogador, protagonizado por Tim Robbins, actor de quem, aliás, gosto bastante.
Não sei se o filme desmascara a charada e os meandros mesquinhos de Hollywood porque, não sendo frequentadora dos mesmo meandros, não estou em posição de julgar. Porém, The Player conta com vários actores playing as themselves (lembro-me do pequeno cameo de John Cusack, por exemplo, de quem gosto tanto que desculpo faux-pas como Serendipity e restantes porcarias que ele às vezes se lembra de fazer), e com Tim Robbins como executivo de um grande estúdio de produção que recebe cartas anónimas que o ameaçam de morte, sendo que toda a gente é mentirosa, falsa, manipuladora, egoísta, sem escrúpulos, gananciosa, e ainda por cima nem sequer tentam esconder semelhante catadupa de defeitos e imoralidades. Mesmo assim, o filme consegue ter sentido de humor devido, provavelmente, ao seu desavergonhado cinismo. E tem bons actores.
Ideal para ver antes desse espectáculo imenso de red carpet do princípio ao fim que são os Óscares, acho eu.
Nota para dizer que Tim Robbins escreveu, realizou e protagonizou também um dos filmes mais brilhantes e engraçados que já vi, Bob Roberts, em que encarna um político de extrema direita, oportunista, fundamentalista, red neck, e restantes adjectivos maléficos que possamos imaginar, e que ainda por cima gosta de andar de guitarra atrás a cantar "grandma felt guilty for being so rich/and it bothered her until the day she died/ But I will take my inheritance/ and invest it with pride/ invest it with pride", e que ainda por cima é filho de pais de esquerda que o criaram numa comunidade hippie. Ah, ah! Maravilhoso e premonitório, diria eu, considerando que Bob Roberts saiu em 1992.
Deixo um clip que demonstra bem o ideário destes Bob Roberts que por aí andam espalhados e que Tim Robbins satirizou tão eficazmente, para nos dar o conforto de podermos, ao menos, rirmo-nos dessa gentinha que anda por aí. A mensagem é clara e simples: "don't get caught.Make millions". E ainda por cima é uma versão de Subterranean Homesick Blues de Bob Dylan. Lindo. A ver, definitivamente.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Ai, eu sou tão proustiana, tão proustiana que eu sou, ai, sou tão proustiana, que maravilha...


O saco de água quente ainda vai demorar, a água está ao lume porque a porcaria da cafeteira eléctrica avariou-se, de modo que vim para aqui escrever enquanto espero que a água ferva.
A maior parte dos meus dias, e acho que isto acontece também com a maioria das pessoas, pelo menos as pessoas que eu conheço, são um bocado estúpidos. Há sempre tempo que se desperdiça. Há sempre lugar para algum tédio. Há sempre a sensação de não se estar a optimizar a capacidade de se ser produtivo. Há sempre a frustração de sabermos que, independentemente dos nossos esforços, não estamos a ir a grande lado. Ficamos sempre no mesmo sítio. Mesmo que nos pareça que as coisas estão a mudar, talvez até a progredir, o que acontece é que a vida tem uma capacidade assustadora de fazer com que tudo fique na mesma, de modo a reconduzir-nos sempre, inevitavelmente, ao mesmo sítio. Nunca vamos a lado nenhum. É como aqueles labirintos fascinantes do Escher, as pessoas parece que vão para sítios muito distintos, e depois vemos que o próprio labirinto não lhes dá hipótese absolutamente nenhuma de irem seja onde for.
É como eu à espera que a água ferva, ou as pessoas que ficam à porta do restaurante quando são as primeiras a chegar para uma festa de anos. Ainda há pouquíssimo tempo presenciei isso mesmo. Cheguei, com a aniversariante, ao local onde se tinha combinado o jantar, e já estava lá toda a gente, a entreolhar-se de forma suspeita, de sorriso desconfortável e polido no rosto. aguardando o momento em que finalmente se podiam começar a divertir. Eles não sabiam, mas aquela espera era digamos que uma metáfora da vida deles e da minha também. Estamos sempre à espera que a festa comece ("é agora que me vou divertir, é agora que me vou divertir?"), só que a festa nunca começa, e em vez de entrarmos no restaurante, ficamos sempre especados à porta, à espera.
Acho que o pouco consolo que esta historieta oferece é que nós não entramos no restaurante da mesma forma que ninguém entra, nem mesmo a Rainha de Inglaterra ou o Bill Gates. A nossa condição é esta, andar por aí a tentar, armados em parvos, a desejar que nos aconteça qualquer coisa e que, de preferência, seja uma coisa boa.
O Chico Buarque também canta mais ou menos sobre isto - "vou, uma vez mais, correr atrás de todo o meu tempo perdido. Quem sabe foi achado, e está arrependido o ladrão que andou vivendo com o meu quinhão..." Não é bem sobre isto, mas é mais ou menos, porque andamos todos a desperdiçar tempo enquanto esperamos, basicamente.
E termino aqui, porque por um lado até eu já começo a achar que este post está com cada vez menos pontas por onde se lhe pegue, e por outro lado a água quentinha já ferve. Pequenos prazeres da vida, enquanto espero para entrar no restaurante, ou que o labirinto me leve a algum lado, ou sei lá que mais.

Desabafo

Eu tinha uma coisa muitíssimo inteligente para dizer. Uma coisa tão inteligente que até exigiu, imperiosamente, que eu interrompesse o interessantíssimo trabalho que estava a fazer para vir para aqui escrever.
Mas esqueci-me.
Trabalhar é tão chato, pá.

Directa sim, eu declaro morte ao sol, directa não, e a quem o apoiar


Os dias de sol são tão nefastos e tão avessos à escrita.
Tudo reluz, tudo é bonito, as pessoas começam a fazer figura de parvas a usar T-shirts e sandálias em Fevereiro e andam de sorriso no rosto, os campos revestem-se de verde luxuriante, as azedas amarelinhas despontam por todo o lado (até em Lisboa), o trânsito parece que diminui, já todos pensam na praia e nas gambas, a vontade de trabalhar diminui, a preguiça e a languidez aumentam, a vontade de ficar na esplanada a olhar a calmaria do entardecer torna-se irresistível, as criancinhas jogam à bola no parque e riem daquela maneira que só as crianças sabem rir, e nós, os cotas, ficamos todos derretidos, que remédio, as pessoas que insistem em vestir-se de castanho, cor que eu pessoalmente não compreendo e que abomino, parecem menos feias, ficam quase bonitas, enfim, tudo parece bonito e bondoso, uma magnífica criação cuja perfeição nos contagia, como resistir ao optimismo, como resistir à alegria?
Não é possível.
O que coloca um grande problema na minha vida. Eu não me dou bem com a alegria. Sou uma pessoa para quem a alegria não é exactamente produtiva. Ou bem que passo o dia a esvaziar-me verbalmente de toda a bílis, como dizia o Eça, ou bem que não o faço e o melhor é calar-me, porque o discurso da felicidade não é para mim. Para coisas fofinhas e queridinhas já basta o dia de S. Valentim, talvez o dia mais ridículo do ano, e que foi este fim-de-semana, de modo que já tive dose suficiente de fofinho e queridinho e alegria.
Tenho de voltar ao meu querido, velho pessimismo, à soturnidade, à bílis, enfim. Sei que não é bonito de se dizer, mas é assim.
A questão, porém, que eu aqui levanto é esta: como voltar à amargura quando o sol brilha desta maneira? Como? Não sei. Mas que o sol não combina como o meu modus operandi nem com a minha personalidade, isso sei eu que não. E escolhi esta fotografia para ilustrar que o sol é lindo, saudável e faz bem, mas consegue ser muito piroso. É a minha opinião.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Mundo bizarro

Hoje aconteceu-me uma coisa estranha, estranha, estranha.
Acordei e fui trabalhar. Estava tudo dentro da pacata normalidade do costume, quando abri a boca para falar e ficou tudo a olhar para mim. Ouvi-me a mim própria a falar, e o que dizia fazia sentido dentro da minha cabeça, mas para os outros não. De facto, a língua que eu estava a usar não era português e, estranhamente, também não era nenhuma outra língua que eu conhecesse. Era uma série de sons pausados, uns mais guturais, outros mais agudos, outros mais graves, que ressoavam na minha cabeça e formavam as palavras que eu queria, mas que os outros não conseguiam perceber. Tentei, tentei a sério, voltar ao português, mas não me saía uma única palavra nesta língua, nem uma única.
Ficou toda a gente muito preocupada comigo, porque eu tentava desesperadamente fazer-me entender e não conseguia. Ainda por cima, o meu trabalho exige que se fale muito, o que até hoje sempre considerei como uma grande vantagem, já que, à partida, gosto de falar. Mas hoje não consegui, não consegui falarcom ninguém, tentava e as pessoas faziam esgares de pena, de esforço para me perceber, tudo em vão. Quiseram chamar uma ambulância e tudo, mas eu lá consegui acenar que não, não queria ambulância nenhuma.
Parecia aquele filme da rapariga que acorda de manhã, chega ao escritório, tenta falar pela primeira vez naquele dia e não lhe sai nada, apenas uma série de sons desarticulados à homem das cavernas, e quanto mais ela tenta falar inglês, menos consegue, até que acabam por a mandar para o hospital, onde não descobrem a origem da sua doença nem muito menos conseguem explicar a razão para a língua materna, subitamente, se ter evaporado do cérebro da rapariga, e ela acaba por ficar sozinha para o resto da vida internada num hospital de malucos; no entanto, torna-se numa grande escritora, pois no tal asilo psiquiátrico, descobre que ainda consegue escrever na sua língua, de modo que desata a escrever desenfreada e maravilhosamente; há um médico que lê os seus textos, envia para uma editora, e a rapariga publica livro atrás de livro, acabando sozinha mas em glória. Levaram-na de ombro em ombro, encheram-lhe de flores o quarto, mas ela morre sozinha e cínica, pois sabe que é sempre a mesma história, depois do primeiro assombro logo o corpo fica farto.
Não sei se há um filme assim, mas devia haver, porque me parece ser um bom filme.
De modo que foi isto que me aconteceu hoje, e fez-me lembrar o tal filme, porque, sabe-se lá porquê, não consigo falar português, nem inglês, nem nada que não seja um conjunto de sons irreconhecíveis, mas ainda consigo escrever.
Mas não me vou tornar numa desenfreada e maravilhosa escritora.
Talvez este malefício que me aflige já tenha passado amanhã de manhã.

The Lusiads - intróito à versão blockbuster


O que eu queria mesmo, mesmo, mesmo era conseguir escrever um post sobre uma possível versão-blockbuster-americano dos Lusíadas. Uma amiga minha dizia-me, há pouco tempo, que não é só o Eric, vulgo Eurico o Presbítero, que tem potencial para filme americano; os Lusíadas também têm e bem. E esta minha amiga tem igualmente toda a razão.

Imagino o seguinte, como introdução aos Lusíadas, versão blockbuster: Diogo do Couto chega à Índia, à procura do seu libertino amigo Luís Vaz de Camões. Trata o Camões por LC, porque são amigos há muito tempo e dá um ar moderno ao filme. Diogo do Couto chega à Índia, olha para aquilo, aquele pó todo, com um ar contrafeito, incomodado, quase altivo (mas não muito altivo, porque o Diogo do Couto é boa pessoa, pelo menos no filme é, e acho que na vida real também foi bom homem e um amigo dedicado). Vai andando pela Índia (convém que sejamos mais restritos e digamos, por exemplo, que está em Goa) e acaba por encontrar o LC numa tasca indiana, com uma rapariga meio oriental ao colo. E segue-se, na minha cabeça, um diálogo mais ou menos assim:

Diogo do Couto (doravante DC): LC, here you are, finally! I've been looking everywhere for you! Where have you been? I've come to take you back. You need to get your ass back in Lisbon. Everybody is asking about you there, even the king wants you to write something for him. You got your stride back. Everybody will know what a great poet you are.

LC (olha para Diogo do Couto, com um sorriso amargurado, os olhos húmidos, emocionado por voltar a ver o seu velho amigo. Olha para a rapariga chinesa ao seu colo e dirige-lhe um leve aceno de cabeça; ela percebe que é para se ir embora, dá um beijo ao poeta, levanta-se e desaparece não sei para onde; Camões detém o olhar nela por uns minutos, e volta-se depois para Diogo): D, it's great to see you. Isn't she lovely? I've met her in China a couple of months ago. She's called Barbara. Unusual, isn't it? She's the one, I can feel it.

DC (impaciente): LC, stop that, always with women on your mind! Yeah, right, she's the one. She's the one till the next one comes along. Forget about the dames. They ruin your poetry and they break your heart. What happened to you? I read the poems you sent me and quite frankly, I mean, all that verse about "the slave that has got me enslaved", really... what are you now, a teenager? You should be writing epic poetry, man. Epics - that's what you were born for. That's what the king wants. Not some good for nothing chit chat about women and how they move their eyes and how piteous they are... nobody cares about that. It's not manly.

LC (novamente com um sorriso amargurado): I'm sorry you feel that way, D. I really am. I prefer to think that my verses are honest. No more, no less. But I guess you'd be pleased to know that I'm working on a new piece. It's got nothing to do with the "dames", as you call them.

DC (entusiasmado): Really?! Do tell.

LC: Yeah... it's like... I don't know yet, but I'm thinking about writing something on Portugal's new business venture. You know, all the new lands and the discoveries and all the money we're making with buying and selling and all that. I'm thinking of including Vasco da Gama. I like him. I thought of Bartolomeu as well, but Bartolomeu, I don't know...his name is too long and he didn't quite make it to India. If I choose Vasco as the main character, I can talk about his trip to India. Maybe I'll throw in a couple of monsters. I can think of one in particular, Adamastor. A couple of Greek gods... all set in the sea... maybe a sex scene towards the end, of course. You know what they say, sex sells. Well, and that's it, basically.

DC: Man, that is great. That is amazing! That sounds a lot better than that good for nothing poetry you've been writing. So, what are you going to call this new poem?

LC: I don't know. Maybe the Lusiads, you know, to give it a traditional Portuguese flavour to please the King.

DC: Oh, the King will love it, he will love it. He's thinking of actually paying you if you do this, you know. He's just a kid, anyway, whatever you write, he'll love it.

LC: I know. That's why I'm doing this. I need the money. What can I say, I'm selling out.

DC: Stop that. We all need to make a living. What do you want to do, die in poverty and spend your last days going to the royal palace, slowly, to collect your fee? Letting our country kill you slowly, a country that will not ask you to sing, but will ask you to be patient? Forget about that. You're going to write the Lusiads, you're going to be rich, and the country will love you till you die.

LC (com um encolher de ombros desanimado): If you say so. But I'd much prefer that people remembered me years from now, maybe even centuries from now. At any rate, I don't think the King will be too please with what I'm going to write.

DC: Oh, stop that. I told you, the King is young and stupid, he'll love anything. And forget those dreams of immortality, you know very well you're not Homer. You're still great, don't get me wrong, but isn't it more important to earn good money instead of having a bunch of kids reading your books in school hundreds of years from now? I think the answer is quite obvious.

Fade out

E depois disto, o filme abre com uma cena mais que épica, a proa gigante de uma nau a cortar o oceano, ou coisa assim, e banda sonora ribombante.

Sei que é quase pecaminoso pôr o Camões a falar inglês. Mas isto seria apenas e só um estratagema para o tornar mais conhecido no mundo inteiro, para as pessoas terem muita curiosidade para depois aprenderem português e ler os Lusíadas em todo o esplendor da língua original.

Espero que resulte. Agora só me falta escrever o guião versão blockbuster americano adaptado dos Lusíadas. Vai ser fácil, fácil.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Nota mental 3: não aburguesar, não aburguesar, não aburguesar...

Gosto de rádios competentes, muitíssimo competentes, como a Radar. Vem a Portugal uma banda competente (pelo menos, que já foi competente) como os Oásis, não vem? Então pronto, vá de passar Oasis a toda a hora. Ainda agora foram duas seguidas dos Oasis (podia ter dito "dos irmãos Gallagher", como também fazem na rádio, para não repetir tanto o nome desta banda, mas chateia-me um bocado este epíteto "irmãos Gallagher". Talvez porque os ache feios e apenas medianamente talentosos, e também porque aquelas mono-sobrancelhas, meu Deus, ok, homens a fazer depilação pode ser um bocado bleagh, mas alguém que informe o Noel e especialmente o Liam que, em 2009, já ninguém leva a mal um bocadinho de cera na cana do nariz para alindar a carinha laroca. De modo que para mim eles não são irmãos Gallagher, são dois tipos esquisitos com ar de querer bater às pessoas - e parece que batem. Embora eu até goste dos Oasis).
Bom. Este parágrafo foi um intróito para a verdadeira substância deste post. Nem intróito foi, sequer, foi apenas uma observação desconexa, mas eu queria usar a palavra intróito. Consumado o desejo linguístico, posso agora passar àquilo que verdadeiramente quero dizer. E o que verdadeiramente quero dizer é que o dia não começou mal, e melhorou substancialmente quando o sol espreitou, e até aqueceu bastante, lá para o meio da tarde. Vim no carro toda contente, o ipod passou pelo All Together Now dos Beatles, cantei do princípio ao fim, depois estacionei, fui tomar um cafezinho e vejo um casal já velhote de mãos dadas. Nem de propósito, tudo equacionado e pensado ao milímetro para tornar o meu dia melhor. Dizia a senhora ao marido, "Hoje ainda andaste um bocadinho. Está tão quentinho! Sabe bem, o solinho". Isto enterneceu-me tanto, tanto, que quis ir dar um beijinho à senhora, mas não fui. Depois fiquei a pensar que sou parva, sou uma lamechas parva. Mas pronto, estava bem disposta.
Chego a casa e penso, é melhor ir ver o correio. Fui ver o correio. O melhor que lá estava eram contas. Já estou habituada, mas o problema é que abri uma conta em particular e era enorme. Fiquei indignada. Sei que tenho de pagar os serviços que uso, mas pagar contas faz-me sentir desprezível. Sempre quis fugir à vida burguesa.
A vida burguesa faz-me impressão. Hoje estava uma senhora no café com uma miúda aos gritos a pedir goma e aquilo fez-me impressão. Os meus vizinhos, por exemplo, passam a vida aos gritos, e o volume destes gritos sobe sempre ao fim-de-semana. Posso apenas presumir que isso acontece porque, ao fim-de-semana, os vizinhos são obrigados a passar tempo juntos, estão em casa, forçados a partilhar o mesmo espaço, porque nem sempre se pode sair e espairecer, e aquilo dá-lhes a volta à cabeça. Desatam aos gritos, não se devem poder ver à frente. Tomando a parte pelo todo, imagino Portugal como uma imensa metonímia onde as famílias se metem em casa aos fins-de-semana, com pouco em comum, sem saber o que fazer ao tempo, sem dinheiro para sair, obrigados a olhar uns para os outros, fartos, fartos, fartos uns dos outros, tudo aos gritos, todos ressentidos, todos a pensar que estavam melhor sozinhos, ou com outras pessoas, ou com amigos, mas que os deixassem em paz. Que impressão, que impressão, vejo aquelas hordas nos supermercados, e as pessoas têm todas um ar tão cansado. Que vida é a delas? Não sei.
Sei que esta vida me faz impressão. A continha para pagar. De modo que, quando recebi a tal conta, me afligi muito, não apenas pela porcaria do dinheiro que vou ter de desembolsar, mas igualmente, e principalmente, pelo que a conta revela do meu estilo de vida. Entristece-me, no fundo é isso. Mas é um bocado impossível fugir às contas, não é? Também é um bocado impossível fugir à declaração de IRS, não é? Pelo menos, para mim, é.
Tento compensar com outras coisas. Criar a ilusão de que posso ser muita coisa, mas burguesa é que não.
A porcaria dos saldos é que me anda a estragar este "desiderato" de não me tornar burguesa. Não se pode não querer ser burguesa e andar por aí a ver as lojas com desconto, pois não?
A vida é feita de incoerências, de facto. Agora até dizia uma asneira, mas não vou dizer, porque eu só digo asneiras em inglês. Eh eh. Esta última frase era muitíssimo pretensiosa e era a brincar, obviamente.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Nowhere Street

Aqui está uma coisa bonita.
Também é uma Rua. Uma Nowhere Street.
Só para avisar que os Beatles estão em todo o lado.
Obrigada ao Rui por me ter chamado a atenção para isto.

Errata

Uma alma boa e caridosa teve a gentileza de me informar que Different Class não é o primeiro álbum dos Pulp. Está, até, longe de ser o primeiro. Fica aqui a correcção, as minhas profundas desculpas e a discografia dos Pulp, que também me enviaram.

Errar é humano, pronto. Mas de qualquer forma, o Different Class também é o álbum que conta mais porque é o melhor, não é? (estou a brincar)
It (1983)
Freaks (1987)
Separations (1991)
His 'n' Hers (1994)
Different Class (1995)
This Is Hardcore (1998)
We Love Life (2001)

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Gajo com pintarola: Jarvis Cocker

Quando estou com uma leve neura, e reconhecendo que nada há a fazer senão lidar com esta maleita, gosto de ouvir Pulp e, em particular, o subtilmente cáustico, pouco composto Jarvis Cocker. Gosto do seu ar enfezado, magro, de dandy descomposto que não quer saber, embora queira, e por isso simpatizo com ele. Gosto das letras dos Pulp, umas narrativas working class do norte de Inglaterra, aquele castanho opressivo de Sheffield, as personagens sempre perdedoras logo à partida, a vida leva a melhor e nós não, restam-nos apenas as canções para conseguirmos alguma alegria. Lembro-me, por exemplo, de um pormenor de "Disco 2000", canção do primeiro álbum dos Pulp, muito convenientemente chamado Different Class, em que se fala de uma rapariga apropriadamente chamada Deborah, que vivia numa casa muito pobre, "with wood chip on the wall". Chega para percebermos com exactidão quem é esta Deborah e que tipo de vida tem ela. É isto de que também gosto nos Pulp, a carga narrativa das canções. Muitas delas contam uma história do princípio ao fim, metem personagens que agem de certa maneira e a gente consegue perceber aquilo tudo. Eu gosto disso, das canções que cantam e contam uma história, como tantas do Leonard Cohen ou do Bob Dylan, por exemplo.

Acho que o Jarvis Cocker cultiva, ou cultivava, pelo menos, a imagem pop desleixada, do perdedor encantador que aprendeu a aceitar a supremacia do mundo sobre a sua pobre, irredutível desilusão. Há algum romantismo naquilo que ele canta, mas um romantismo muito pouco sonhador, muito duro. Ele sabe que a vida é assim.
Por isso, Jarvis faz bem à neura.




Nota final para efectuar um pedido. A canção que o Jarvis canta neste vídeo (que eu por acaso acho muitíssimo giro, tenho tendência para gostar muito, muito do East End londrino e o vídeo está cheio de referências a isso), dizia, a canção Don't Let Him Waste Your Time também é cantada pela Nancy Sinatra. Ouvi a versão da Nancy uma vez e nunca mais a consegui apanhar, nunca a vi em lado nenhum, volatilizou-se da minha vida. Se alguém por acaso souber como a encontrar (já tentei fazer download perfeitamente legal, mas a Mula também não tinha nada), e se me quiser informar, deixo desde já aqui, e mais uma vez, um grande bem-haja do coração.

I grow old. I shall wear the bottom of my trousers rolled.


Levanto-me.

Dormi? Sim, dormi. Lembro-me de ter apagado a luz na noite anterior. Mas a cabeça continua tão pesada como se não tivesse dormido.

Levanto-me e sinto o fundo das olheiras. Ainda pesam mais do que a cabeça.

Levanto-me e ponho-me a andar pela casa, pensar em tomar o pequeno-almoço, mas não me apetece comer nada, sem apetite, o dia cinzento, mais valia voltar a adormecer.

Parece que levei pancada. Porquê? Não fiz nada ontem que exigisse grande esforço físico. Vejamos. O que fiz ontem? Saí de casa cedo, o que não é normal num sábado, mas saí e passei o dia em actividades não apenas edificantes, como também divertidas. Tudo impecável.

Então, estas dores de costas, este abatimento, o corpo a pedir descanso, isto vem de onde? Não estou de ressaca. Não bebi, ontem, ou por outra, bebi tão pouco. Pouco, mesmo. Não, é impossível estar de ressaca, isto não é ressaca.

O que é, então?

Olho para o espelho, as olheiras, o olhar baço, um leve tom de desilusão nos gestos, já pareço um poema do Mário de Sá-Carneiro ou isso, que chatice, e a maior chatice é não perceber, isto vem tudo de onde?! Não gosto de me sentir assim. O pessimismo tem limites. Para a frente é que é o caminho, custa-te muito armar-te em sorridente parva de vez em quando, se calhar sentias-te melhor, penso para mim própria.

Depois, minutos mais tarde, descubro a razão de ser, a causa. Explica-se pelo facto de ter crescido. É verdadeiramente, como ouvi tanta gente dizer quando era pequena, a idade. A mesma que não perdoa. E é que não perdoa mesmo, a estúpida.

Aula de aeróbica


Sempre me fez um bocadinho de impressão as pessoas que "vestem a camisola". Aquelas pessoas que, porque vão para a faculdade ou porque começaram a trabalhar, desenvolvem uma espécie de afasia ao nível dos pronomes pessoais e dizem, ao invés de "eu", "nós" ("nós, banco", "nós, empresa", "nós, escritório", "nós, faculdade", "nós, partido", etc.).

Percebo, ainda que com alguma dificuldade, que se vista a camisola de um partido político, ainda que eu própria eventualmente ache o mesmo partido desprezível. Quer dizer, posso achar ou não, mas percebo que haja quem tenha perfil para vestir uma cor política. Agora, reside absolutamente fora das minha capacidades cognitivas, e extrapola de modo absoluto o meu alcance intelectual e de percepção do mundo, que se "vista a camisola" ou que se assuma convicção emocional e imensa relativamente ao local de trabalho, especialmente se aquilo que nos liga ao mesmo local é um instrumento jurídico bem definido, com direitos e deveres, chamado contrato ou, ainda pior, os reles recibos verdes. Não há aqui nada que peça convicção ou arrebatamentos de coração. Prestamos os nosso serviços, recebemos o cheque. É claro que convém que façamos o trabalho com gosto e com competência, porque trabalhar no que não se gosta deve ser horrível. Mas é uma coisa que se faz para depois podermos ter uma vida lá fora. Percebo apenas que se "vista a camisola" da nossa própria vida, nunca de uma qualquer instituição alheia que dita regras heterónomas de que podemos, e até convém, gostar e respeitar, mas que nunca poderão substituir as regras ditadas pela nossa única e intransmissível identidade.

Quem veste a camisola da instituição, seja a instituição uma entidade patronal ou a faculdade onde estudamos, faz-me lembrar aquela gente parva que vai para as aulas de aeróbica aos saltos, com um sorriso imenso no rosto, a não falhar um pulinho da coreografia, a bater palmas convictamente de cada vez que a música acelera o ritmo martelado e enlouquecedor no mau sentido, que coram de alegria de cada vez que o professor lhes pisca o olho, invadidas por aquela onda de nefasto bom-alunismo, servil e apenas compensador para quem os triunfos da vida se reduzem à coreografia certinha na aula de aeróbica. Que arrepio.

O que eu defendo é trabalhar com convicção. Respeitar o local de trabalho. Gostar do local do trabalho. Gostar do emprego que se tem, que felizmente é uma sorte que eu possuo, e não sou mal-agradecida - tenho plena consciência de que tenho sorte, e procuro apreciá-la todos os dias. Mas acaba aqui. Porque vestir a camisola, visto apenas a minha. Apenas, e só, a minha.

Porém, nota final para dizer que, acaso tivesse eu uma T-shirt com o dito tão engraçado como o da foto aqui ao lado, vestia a camisola e era já.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

(outra) Gaja que faz o meu estilo: Chloe Sevigny


Há um número considerável de anos, eu pensava que era impossível ser-se mais cool do que a Chloe Sevigny, americana de apelido afrancesado e aristocrático, filme independente atrás de filme independente, tudo bem seleccionado, currículo irrepreensível (ele é Kids, onde se estreou, ele é Gummo, ele é Boys Don't Cry, ele é Dogville, ele é American Psycho - verdadeiramente insuperável, na perspectiva do adolescente que quer desesperadamente que o mundo saiba que ele é intelectual, pois tudo o que cheire sequer a indie, a Chloe está lá) e namorada do Harmony Korine (bem com estrela do seu filme Julien Donkey Boy, do qual gostei muito na altura, mas não sei se agora voltava a gostar); eu gostava da Chloe porque também gostava do Harmony, que se considerava incumbido, talvez por Deus, da tarefa de trazer os preceitos do Dogma 95 para os States. Isto impressiona qualquer um, especialmente quando se é novo.

A Chloe Sevigny é o estereótipo que qualquer pseudo-intelectual adolescente reza por encontrar. Tudo bate certo. Estilosa e agradável ao olhar, sem ser exactamente bonita (quase um exemplo das mulheres feias-lindas, de que PJ Harvey me parece um exemplo perfeito); um certo je ne sais quoi ao qual ajuda a apresentação estética (olhar rasgado, loura, roupinha designer e tal); entrevistas a falar de arte e galerias de arte e pintores preferidos daqueles que ninguém conhece; participação nos filmes do Vincent Gallo em cenas ousadas; equilíbrio perfeito entre filmes indie e filmes mais mainstream; gosto irrepreensível; inteligente. A perfeita namorada Bairro Alto.

A Chloe é, de facto, um estereótipo. É a Angelina Jolie mas exactamente ao contrário. Se fosse portuguesa, era morena de franja curta, usava óculos de massa e só os tirava para entrar em filmes do Miguel Gomes ou isso. Sendo americana, faz a coisa mais à grande.

Mesmo assim, a Chloe faz o meu estilo. É mais forte do que eu, porque no fundo nunca ultrapassei a fase em que achava que ela era a personificação da coolness. Tem uma pinta insuperável, esta mulher, o que posso eu fazer. E sim, normalmente tenho esta tendência adolescente Bairro Alto para gostar sempre dos filmes em que ela entra. E, já agora, não é nada má actriz.

Não sei se ainda namora com o Harmony Korine, se não. Nunca mais ouvi falar dele.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Amigos

Em primeiro lugar, e formulando uma observação digna de um verdadeiro adolescente, acho mal que esta sociedade torne termos como "amizade" e "amor" em coisas foleiras. Quer dizer, "amizade" e "amor" não são coisas foleiras, a sociedade é que usa e abusa deles como se fossem.
Posto isto, o que queria dizer é que a amizada é parecida com o amor (pergunta que não tem nada a ver: porque é que há pessoas que dizem, por exemplo, "eu sou parecida AO meu pai", em vem de usar a preposição "com"? É estranho, não é?), observação que, aliás, ninguém a não ser eu teve alguma vez oportunidade de constatar, como se sabe. De qualquer modo, dizia eu, a amizade é parecida COM o amor. Adoramos as pessoas que são nossas amigas. Temos ciúmes, até ("pois, tu agora só queres estar com a tua outra amiga, já não me ligas nenhuuuuuma, já não me ligas para combinar nada, queres acabar comigo, chuif, chuif"). Queremos estar muitas, muitas vezes com as pessoas. Mas, ao contrário do amor, a amizade dura, dura, dura, dura, e dura, e resiste e não pára.
A resistência da amizade é algo que me deslumbra. Para mim, é inconcebível "acabar" com um amigo, deixar de lhe falar, deixar de gostar dele. Como é que se pode acabar com um amigo?Posso zangar-me com os meus amigos, mas nunca viver sem eles ou sem fazer as pazes, porque os admiro demasiadamente para isso, e porque a vida sem eles é mais do que triste, é pobre.
Na minha vida, a amizade é um telefonema dos Açores à meia noite e um minuto do dia 5 de Fevereiro.
É levarem-me a comer bife divinal com batatas fritas.
É um "esquece isso, esquece a porcaria do passado" num email.
É um "não te preocupes, vai correr tudo bem" vindo, às vezes, de muito longe.
É um "não te sintas mal por teres gastado dinheiro nessas botas verdes, porque são o máximo" (sim, tenho umas botas verdes cor de mosca varejeira, e sim, são o máximo).
É assegurarem-se de que tenho sempre coisas para ler.
No fundo, a amizade é isto:

Todos os lugares-comuns são verdadeiros. Aquele que diz que não se pode viver sem amigos - verdade absoluta, indestronável.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Incógnita


Não compreendo esta cara.

Não compreendo esta actriz.

Não compreendo o porquê de se gostar desta actriz.

Queria escrever este post acerca desta minha falta de compreensão - pode ser que alguém me ajude a compreender aquilo que não compreendo agora. Peço desculpa, gosto de repetições.

A Meg Ryan tem, verdadeira e absolutamente, cara de parva. Não digo que não seja bonita e "fofinha", admito que sim, até acho que sim. Mas isso não muda o facto, que me parece evidente, de ela ter cara de parva. Mas é que é mesmo cara de parva, ela personifica a cara de parva; agora que verbalizei isto, até estou abismada com esta verdade.

Depois, entra nos filmes mais "fofinhos" (entenda-se que isto é um grande defeito) e igualmente parvos que já vi, excepto o grande, grande When Harry Met Sally. Este filme quase que desculpa o resto. Mas sem ser When Harry..., entra nos filmes mais enjoativos e adocicados de sempre, quase insuportáveis. Ou então em coisas ridículas tipo Cidade dos Anjos (se eu fosse o Wim Wenders, processava todo o Hollywood por terem feito uma versão tão má do seu Anjo). Ou então em coisas patéticas, a fingir que é actriz séria, como aquele filme em que fazia de militar (!)

Não compreendo.

Não compreendo.

A Meg Ryan é uma borboleta com pouco talento. Com cara de parva.

Incomoda-me um bocado.

Eu sei que não sou boa pessoa, porque em vez de vir para aqui escrever coisas interessantes, ponho-me a escrever sobre actores sem talento e a esvaziar-me de toda a bílis. Eu própria me sinto mal. Mas a verdade é que estou cheia de trabalho, e um bocadinho, digamos que irritada, com este facto, de modo que este post foi o que eu arranjei para me distrair um bocadinho.

Agora tenho de voltar ao trabalho.

Mas porquê gostar-se de Meg Ryan? É que parece tão inútil gostar-se dela.

Knocking on Heaven's Door

Responder ao desafio da S.M. não é difícil.
O desafio exige que confessemos os nossos pecados, e digo que não é difícil porque eu tenho (ou cometo) os pecados capitais quase, mesmo quase, todos.
Sem nenhuma ordem em especial, a não ser a gula, que, no meu caso, tem necessariamente de vir em primeiro lugar, eu admito que sofro dos seguintes actos pecaminosos:
1 - GULA: Mousse de chocolate, Ovomaltine, bolas de Berlim, croissant com doce de ovo, charlotte de chocolate, iogurte de bolacha maria, these are a few of my favourite things. É claro que a maior parte destas coisas não como há anos, literalmente há anos, excepto Ovomaltine, e com grande pena minha.
2 - PREGUIÇA: pecado complexo, no meu caso. Sou parcialmente preguiçosa. Não gosto de me cansar, pronto.
3 - IRA: eh pá. Passo a vida irada. Sou uma pessoa irada. Sou uma pessoa revoltada. Ninguém gosta de mim porque eu sou assim, irada. Já pensei em ir ao médico, tenho tantos problemas, sou viciada em Ovomaltine, tenho claramente perturbações ao nível de anger management, enfim... um sem número de maleitas.
4 - LUXÚRIA: Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga.
5 - SOBERBA/VAIDADE: yes, please.
6 - INVEJA: não, realmente não. A sério. Estava aqui a pensar de quem é que eu poderia ter inveja, mas acho mesmo que deste pecado estou eu livre. Quer dizer, posso sempre tentar invejar a Angelina Jolie, mas nem gosto assim tanto do Brad Pitt e não faço questão nenhuma de ter 20 filhos.
7 - AVAREZA: também acho que não. Sofro mais do mal exactamente contrário à avareza.

Posso,pois, assegurar que S. Pedro não terá nunca que se preocupar que eu lhe bata à porta.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Confissões de uma dependente anónima


Eu sou uma pessoa que tem um problema.

O meu problema é que gosto muito de Ovomaltine.

Gosto de Ovomaltine porque me faz lembrar o Milo que eu bebia quando era pequena, mas agora já não há Milo, e mesmo que houvesse não sabe ao mesmo, porque uma vez encontrei Milo à venda no estrangeiro, e trouxe três latas, mas o Milo não sabia ao mesmo que sabia quando eu era pequena, mas o Ovomaltine sabe mesmo, mesmo ao Milo de quando eu era pequena.

Bebo leite com Ovomaltine ao pequeno-almoço todos os dias porque penso que estou a beber apenas leite, e o leite não faz mal nem engorda.

Mas depois o Ovomaltine deixa-me muito mal disposta e vou trabalhar toda enjoada.

Mesmo assim, trabalho bem e a sorrir porque acredito que a pessoa tem de ser profissional até ao fim.

Sei que o Ovomaltine enjoa, mas não consigo parar de beber.

Sei que o Ovomaltine é caro, é quase 4 euros no Modelo, ao passo que o Nesquick, por exemplo, são 2 euros e treze por mais quantidade, e até mesmo o Suchard Express consegue ser mais barato, mas mesmo assim não consigo parar de beber Ovomaltine.

Sei que o Ovomaltine tem um nome feio, mas eu não me importo. Mesmo assim, bebo Ovomaltine.

Sei que o Ovomaltine está, provavelmente,a fazer mal à minha saúde, porque não sou desportista nem criança nem estou a crescer e consequentemente não preciso das proteínas e das vitaminas todas e do ferro e dos hidratos de carbono e das anti-bactérias e dos aloés-veras e dos bifidus activo e da pasta de dentes e das protecções todas que o Ovomaltine diz que tem. Mesmo assim, não consigo parar de beber.

Comecei por comprar um coiso de Ovomaltine por semana, depois passei para dois, agora já vou em três coisos de Ovomaltine por semana. É muito Ovomaltine.

Só em Ovomaltine gasto 12 euros por semana, com 12 euros podia fazer muitas outras coisas que não beber Ovomaltine. Mesmo assim, não consigo deixar de parar.

Senhor doutor, diga-me: acha que tenho um problema de dependência ou, para usar daqueles deslumbrantes e parvos neologismos de agora, uma adição? É que eu acho que talvez tenha.

Cenas da minha vida conjugal

- Rita, tu não és mulher para mim

- Como?

- Não és. You don't have what it takes.

- Olha... eu neste momento não tenho paciência, tá bem? E muito menos com o inglês para aí misturado, és tão piroso, sabes que eu detesto gente que tem a mania que sabe falar inglês e faz figura de urso. Tens a mania que és internacional, é?

- Sempre te custou muito ouvir as verdades, não é? Começas logo ao ataque. Pois é, querida, mas mais tarde ou mais cedo vais ter de te confrontar com coisas que não queres ouvir.

- Ah, e tu é que me vais dizer essas coisas? Logo tu?

- Vou, sim. Vou ter de ser eu. Já que não deixas mais ninguém dizer, digo eu.

- Mas dizes o quê, afinal?

- Digo-te o que já te disse. You don't have what it takes.

-Ai, pára, a porcaria do inglês, que tortura...

- Vou sair de casa.

- O quê?! Mas... porquê?

- Porque já não fazemos nada juntos. Já não há magia. Sabes bem que há muito tempo que deixou de haver magia. Não temos aquela criatividade de antigamente. Pensando bem, talvez nunca a tenhamos tido... let's face it. Sinto que entre os dois não há mais nada para fazer ou conversar. Chegou a hora de acabar.

- Nãããããããããããããããããõ!


E é esta a minha relação, traumática, desesperada, com uma folha de papel em branco, com um cursor a piscar, a piscar, a piscar, a pedir-me palavras que não chegam.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Lei do Menor Esforço


Lá fui eu ver o novo filme do Woody Allen este fim-de-semana.

Continuo a gostar tanto dele, tanto, tanto, tanto.

Mas não devido a este Vicky Cristina Barcelona, que não é horrível, mas também não é muito bom.

Eu acho que o Woody Allen tem uma cabeça que funciona a várias velocidades, como os automóveis, e ele vai controlando a velocidade a que quer que a cabeça funcione.

Por exemplo, acorda de manhã e não está para fazer nada, mas se não fizer nada aborrece-se, e por isso põe a primeira e pensa, "olha, assim como assim hoje também não tenho nada para fazer, a minha filha está ali a tratar dos nossos filhos - aaaah, nota mental: falar disto ao psiquiatra -, e se eu fizesse mas é um filme a despachar para encher tempo, pego ali no Crime e Castigo, em dois actores bem parecidos mas que queiram ser respeitáveis, invento uma coisa, filmo tudo num dia, tá a andar... é isso, vou chamar-lhe o Sonho de Cassandra, uma coisa assim a puxar aos Gregos para não desiludir o meu público, que gosta destas referências, é isso mesmo!"

Acorda noutro dia, põe a segunda e pensa, "pois é, Crime e Castigo, é isso, grande livro... e se eu inventasse uma história à Crime e Castigo mas em Londres, classe alta e tal, uma americana bimba, um oportunista do ténis, muito palacete inglês, gente a ler Strindberg, depois o tenista lá consegue casar com uma ricaça da alta, mas depois há a americana bimba a tentá-lo, e hei-de tornar o tenista horrível, mas todos os espectadores hão-de torcer por ele no fim, mas ao mesmo tempo vão criticá-lo e achar que ele é um animal, muito brechtiano... é isso mesmo, Match Point!"
Acorda noutro dia mais bem disposto e menos preguiçoso, mete a terceira ou a quarta, e quiçá talvez a quinta, e pensa, "eeeeeh... olha, eu agora era escritor, mas tinha um bloqueio...depois faço um filme sobre isso, onde personagens literárias se misturam com a realidade, e vou chamar-me Harry, no filme. Vai ser muitíssimo giro, às tantas nem se percebe quem é real, quem é personagem, como quando lemos um livro, e vou incluir uma deliciosa cena de um actor que fica desfocado..."
É quando decidir meter a quinta ou a sexta que ele faz Husbands and Wives, Hannah and Her Sisters, Alice, Purple Rose, Sweet and Lowdown, aqueles filmes muito suecos, muito Bergman (por acaso, a onda sueca do Woody Allen não é coisa que me apaixone muito; o Interiors, o Setembro, não me parecem extraordinários, por exemplo, mas acho que são bons filmes apesar de tudo, e portanto admito que, para estes, também tenha metido a quinta); para Annie Hall e Manhattan deve ter metido para aí a décima; e depois, de vez em quando, inexplicavelmente, decide afrouxar e tornar-se condutor de Domingo.

Adoro Woody Allen e sei que está fora do seu alcance fazer um filme que seja horrível. Este Vicky Cristina é giro, divertido, com diálogos engraçados e reconhecíveis e, sinceramente, pelo Javier vale muito a pena ir ver o filme e regalar o olhar. Mas não enche as medidas. Ainda não foi desta que Woody Allen decidiu meter a quinta, nem a quarta, e duvido muito que tenha sequer arriscado a terceira.

No entanto, Woody - amor, I love you.

Alguém em quem confiar


Há pessoas discretas. Não é necessariamente uma coisa má. Pelo contrário, até é uma qualidade muitíssimo apreciável e fundamental. Tenho tendência a gostar do exuberante e do barulhento (de tal modo que eu própria me tentei tornar exuberante e barulhenta, embora nunca tenha chegado à parte do exuberante. Fiquei-me apenas pelo barulhenta, o que é pena), mas reparo agora, com o passar dos anos, que a discrição é um predicado interessante.

Há pessoas que não enchem a sala nem o olhar. Não ficamos a olhar para elas quando passam por nós. Não dizem necessariamente coisas muito relevantes sempre que abrem a boca, e nós ficamos a pensar que elas, tudo bem, não serão más pessoas, mas são com certeza aborrecidas e cinzentas. Estas pessoas, geralmente, e pelo que tenho observado, limitam-se a ficar ali, quietinhas, à espera do momento em que alguém possa precisar delas. Quando isso acontece, desvelam verdadeiramente as suas grandes potencialidades. São de uma extraordinária sensatez, de uma inteligência profunda, ficamos de boca aberta a olhar para elas, a pensar "olha, quem diria, esta mosquinha morta, qual mosquinha morta, qual quê, é um ser espectacular", e sentimo-nos envergonhados por ter julgado alguém tão mal. Quando precisamos mesmo, normalmente não é o divertido, interessantíssimo e cosmopolita Fradique Mendes que corre em nosso auxílio; é antes a sensatez, a paz de espírito e a reserva de uma Morgadinha dos Canaviais, de quem eu, pessoalmente, gosto bastante, apesar de não ter nada contra, e tudo a favor, de Fradique Mendes.


Pensei nisto porque me lembrei de actores que, tal como os livros, são "middleweight". Bons, sólidos actores que não enchem o écrã como a Elizabeth T., não são óbvias "bombas" a quem todos se rendem como a Scarlett Johansson, nem são um poço de talento evidente, como Edward Norton, quanto a mim (o que eu adoro este homem, mas partiu-me o coração vê-lo a fazer de Hulk, estúpido). São actores em quem se pode confiar, estão ali para o que for preciso, não vão a lado nenhum nem levam tudo à frente, como esta Shelley Winters da fotografia. Eu digo já que, a julgar pela foto em que ela mais parece uma dona de casa ataviada a pedir ao marido para lhe tirar uma foto porque finalmente vão jantar fora pela primeira vez em dez anos, não dava nada por ela. Parece anódina, cinzenta. Mas a Shelley é, quanto a mim, o perfeito exemplo da sólida actriz discreta mas muito competente, talvez porque apenas a tenha visto em igualmente muitíssimo competentes papéis secundários em Lolita, A Place in the Sun, Night of the Hunter.


É bom ter alguém em quem se pode confiar.