Acordei e fui trabalhar. Estava tudo dentro da pacata normalidade do costume, quando abri a boca para falar e ficou tudo a olhar para mim. Ouvi-me a mim própria a falar, e o que dizia fazia sentido dentro da minha cabeça, mas para os outros não. De facto, a língua que eu estava a usar não era português e, estranhamente, também não era nenhuma outra língua que eu conhecesse. Era uma série de sons pausados, uns mais guturais, outros mais agudos, outros mais graves, que ressoavam na minha cabeça e formavam as palavras que eu queria, mas que os outros não conseguiam perceber. Tentei, tentei a sério, voltar ao português, mas não me saía uma única palavra nesta língua, nem uma única.
Ficou toda a gente muito preocupada comigo, porque eu tentava desesperadamente fazer-me entender e não conseguia. Ainda por cima, o meu trabalho exige que se fale muito, o que até hoje sempre considerei como uma grande vantagem, já que, à partida, gosto de falar. Mas hoje não consegui, não consegui falarcom ninguém, tentava e as pessoas faziam esgares de pena, de esforço para me perceber, tudo em vão. Quiseram chamar uma ambulância e tudo, mas eu lá consegui acenar que não, não queria ambulância nenhuma.
Parecia aquele filme da rapariga que acorda de manhã, chega ao escritório, tenta falar pela primeira vez naquele dia e não lhe sai nada, apenas uma série de sons desarticulados à homem das cavernas, e quanto mais ela tenta falar inglês, menos consegue, até que acabam por a mandar para o hospital, onde não descobrem a origem da sua doença nem muito menos conseguem explicar a razão para a língua materna, subitamente, se ter evaporado do cérebro da rapariga, e ela acaba por ficar sozinha para o resto da vida internada num hospital de malucos; no entanto, torna-se numa grande escritora, pois no tal asilo psiquiátrico, descobre que ainda consegue escrever na sua língua, de modo que desata a escrever desenfreada e maravilhosamente; há um médico que lê os seus textos, envia para uma editora, e a rapariga publica livro atrás de livro, acabando sozinha mas em glória. Levaram-na de ombro em ombro, encheram-lhe de flores o quarto, mas ela morre sozinha e cínica, pois sabe que é sempre a mesma história, depois do primeiro assombro logo o corpo fica farto.
Não sei se há um filme assim, mas devia haver, porque me parece ser um bom filme.
De modo que foi isto que me aconteceu hoje, e fez-me lembrar o tal filme, porque, sabe-se lá porquê, não consigo falar português, nem inglês, nem nada que não seja um conjunto de sons irreconhecíveis, mas ainda consigo escrever.
Mas não me vou tornar numa desenfreada e maravilhosa escritora.
Talvez este malefício que me aflige já tenha passado amanhã de manhã.
2 comentários:
Rita, põe-te em guarda!
Eh eh eh eh... estava a ver se passava... :)
Não estava, não, era mesmo de propósito, esta canção do Sérgio marcou-me. Só que a Rita da canção dele não teve uma vida nada agradável, pelos vistos... safa.
Enviar um comentário