segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Despojos do dia


Realmente, nunca tendo lido o Ulysses, percebo porque é que um escritor portentoso como Joyce decidiu, e conseguiu, escrever um livro imenso que relata, ou esmiúça, ou analisa, ou não sei bem o que é que faz, apenas um dia na vida de um homem. De facto, num dia passa-se muita coisa, pelo menos muita coisa digna de observação, embora às vezes não nos afecte directamente.
Na minha manhã de hoje, passaram-se pelo menos três coisas dignas de nota.

Fui ao banco e estava lá uma senhora quarentona, no entanto de mini-saia, no entanto de top verde justo, no entanto de casaquinho de malha justo azul-forte, a levantar as poupanças. Não é nada comigo, mas não pude deixar de ouvir, e além disso a senhora não percebia como é que o processo se desenrolava, e se perdia juros ou não, e falava de um modo apressado, quase nervoso, ao passo que a senhora do banco, que a tratava por "tu", podendo eu apenas presumir que já se conheciam, a cliente e a bancária, explicava-lhe tudo pausadamente. A linguagem, de facto, diz muita coisa, e a crise, pelos vistos, está mesmo aqui, ao nosso lado, à vista desarmada, bastando para isso a gente ir ao banco. E também é incrível, quanto a mim, e este adjectivo assume aqui conotação fortemente negativa, que o banco obrigue os clientes a tratar de assuntos destes (o destino das suas poupanças) assim ao balcão, para toda a gente ouvir. Agora sinto-me um tanto ou quanto mal por ter descrito aqui este incidente, para toda a gente ler, mas não vou apagar nada.

Depois fui tomar café (e também um pequenino, mínimo pastelinho de nata) e constatei que havia dois écrãs plasma ligados, um na Sic, outro na Tvi. O som estava cortado, porque a rádio estava ligada, embora baixinho, para que as pessoas pudessem, por um lado, deliciar-se com a qualidade das imagens de pelo menos duas estações de televisão, e por outro arrebitar os ouvidos para decifrar, no incomodativo sussurro de fundo, a música carnavalesca que a rádio passava. Em geral, o ambiente daquele café era muitíssimo agradável e a música ambiente cumpria a sua função. A minha conclusão relativamente a este segundo incidente é que vivemos efectivamente numa sociedade de excessos, de tal modo que não só podemos comprar bicas, doces e bolos de todos os tamanhos e feitios num qualquer café, como apreciar duas emissões televisivas na qualidade do plasma, docemente acompanhados pela música da rádio. Impressionante.

Dirigi-me, em seguida, ao supermercado, onde precisava de adquirir leite e iogurtes, já que eu sem iogurtes caio na fraqueza, e, quando saía, reparei que o chão estava molhado. Havia uma senhora de esfregona na mão a limpar o chão, uma outra senhora a olhar para ela a agarrar o joelho, e uma outra senhora mais gorda a abrir a boca para falar. Esta senhora mais gorda ilustrou, efectivamente, uma característica que eu já há muito pensava ser bastante própria dos portugueses, que é a dissimulação. Mesmo quando estamos zangados, nunca temos a coragem de começar a partir tudo desde o início. Vamos a medo, sempre devagarinho, para ver se nos podemos aventurar, se não. Foi o que se passou com esta senhora gorda que, numa verdadeira escalada de verdadeira violência verbal, enceta e perpetua o seguinte diálogo com a senhora da limpeza:

- Olhe, desculpe lá, mas tem de pôr aqui um sinal a dizer que isto está molhado. Não vê que esta senhora ia caindo? (e aponta para a senhora agarrada ao joelho, que pelos vistos está mesmo magoada mas nada diz, limitando-se a assumir o confortável papel de transeunte curiosa)

- aaaah... não está assim tão molhado.... (resposta, de facto estúpida, da senhora da limpeza, que só tinha de pedir desculpa e ir buscar o tal sinal a dizer: atenção - piso molhado)

- Minha querida, tudo certo. Mas esta senhora magoou-se e podia ter sido eu, ou você!

Com este "minha querida", fiquei convencida que tudo teria uma solução pacífica, e afastei-me para me ir embora. Esqueci-me que um "minha querida" encerra muita mágoa, de modo que, depois de umas breves respostas da senhora da limpeza que não consegui perceber bem, ouço, audivelmente, a senhora gorda, já descomposta, indignada, e absolutamente esquecida do "minha querida":

- Você tá-se a rir! VOCÊ TÁ-SE A RIR?! Se fosse comigo, você não se ria, ouviu? Havia de ser você a cair aqui, havia de ser você, só queria tar aqui para ver, você não se ria, ouviu, VOCÊ NÃO SE RIA, SE FOSSE EU SUJAVA-LHE ISTO TUDO, HAVIA DE FICAR AQUI O RESTO DO DIA, VOCÊ IA VER!

Continuei no caminho de casa e deixei de a ouvir. Não sei se efectivamente a senhora gorda foi patinhar no chão que a senhora da limpeza tinha lavado, só por desfeita, mas sei que estas últimas palavras que ouvi da indignada senhora gorda já revelavam completo descontrolo e completa revolta. Devo dizer, no entanto, que estou do lado da senhora gorda. A senhora da limpeza parece-me um bocado parva, se efectivamente se pôs a rir da outra senhora agarrada ao joelho. Um bocado estúpida, de facto.

Há dias em nos acontece de tudo. Falta-me ser o James Joyce para transformar todos estes incidentes em livro e dar-lhe um título original, do estilo "As Ondas", ou um título mais longo como " Mrs F. said she would buy the flowers herself", qualquer coisa assim, muito original.

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