quarta-feira, 31 de março de 2010

Casas assombradas


Gosto de casas. Mais especificamente, gosto de casas abandonadas, em ruínas, carcaças à beira da estrada ou perdidas nos pinhais feios deste país, assombradas.
As casas são assombradas não por fantasmas (quer dizer - eu não acredito em fantasmas, mas como dizia o outro, que os há...), dizia, assombradas não por fantasmas, mas por memórias. Quanto mais velha é uma casa, mais memórias tem. Gosto de pensar no que se passou ali, no que poderá ter acontecido para que um lugar que foi feito para acolher pessoas não ter agora ninguém. Pode ter ocorrido um grande e horrível crime, passional, trágico, ou talvez banal, sem sangue, não sei, mas sei que a minha imaginação inventa, inventa, inventa sem parar sempre que tenho a sorte de pisar uma destas pobres casas em ruínas.
Tenho sempre pena quando vejo casas abandonadas com janelas emparedadas, pesadas correntes à porta, para afastar as pessoas de um sítio onde elas deveriam estar. Recentemente, tive a sorte de ir passear a uma montanha alta, verde, esplendorosa, que, além da beleza natural, tinha um hotel abandonado mesmo lá em cima. Nem quis acreditar na minha sorte. O porte escuro, escaqueirado, do edifício despontava por entre árvores e flores verdinhas, frescas, que contrariavam a soturnidade do hotel. Deslumbrante. Quis entrar no recinto, atrevi-me a subir umas escadinhas cheias de erva daninha, mas pus-me imediatamente a fugir a sete, oito, nove, pés, porque ouvi um ladrar imenso de uns cães absolutamente psicopatas, e tive medo que me viessem morder cheios de vontade. Ainda olhei para trás para os ver, gordos, grandes, castanhos, maus. Fiquei com tanta pena de não poder visitar aquele hotel recheado de fantasmas, de coisas que se passaram ali, quem sabe um menino a passear pelos corredores com um triciclo, incessantemente, duas meninas de olhos parados que repetem "come play with us, Danny...", um quarto onde não se pode entrar, uma velha desfigurada, desdentada, louca, a rir...
Vejo muitos filmes de terror. Mas não foram estes que me despertaram o gosto por casas abandonadas, que ninguém quer. Foram dois livros em particular; o primeiro foi Jane Eyre, da minha muito querida Charlotte Bronte (eu adoro as irmãs Bronte, mas o meu pai goza comigo, porque acha que elas são uma grande seca e não tem pachorra para histórias de meninas pobrezinhas governantazinhas; diz-me que eu já devia ter ultrapassado as Bronte, mas não, nunca ultrapassei nem quero), continuando, Jane Eyre, com aquele ambiente quase claustrofóbico, a Jane fechada no quarto vermelho em pequena, a louca fechada no sótão, uma casa cheia de segredos, cheia da vida de muitas pessoas; o outro livro foi Rebecca. A omnipresente mansão de Manderley, com a governanta vestida de preto, sem nada além de fel, ódio, mal, e o também omnipresente fantasma de Rebecca que paira por todos os quartos, vê tudo, sabe tudo, não deixa ninguém escapar. O que será viver numa casa com olhos, com ouvidos, que respira connosco? Consigo imaginá-lo quando encontro casas abandonadas, e por isso gosto tanto delas.
Porém, ainda antes deste dois livros, houve um outro elemento de fundamental importância que me revelou o interesse de um casarão repleto de memórias. Não, não foi um livro nem um filme, mas sim uma telenovela baseada num livro, chamada, dramaticamente, A Sucessora (nota para os senhores da TVI: pensem em arranjar, pelo menos, títulos decentes, retumbantes, para os dejectos que passam todas as noites, Olhos de Mar, Cabelos de Mel, Xixi e Cocó e outras pérolas do género. Uma coisa como A Sucessora, curto e com impacto, é que é). Não me lembro de quase nada desta telenovela, porque, além de ser ainda muito, muito pequena, a minha mãe quase nunca me deixava ver. Lembro-me, porém, que tratava da temática de uma jovem que casara com um homem rico e viúvo, que a tinha levado para o seu casarão onde havia um quarto sempre fechado, uma governanta maléfica, e a memória sempre eterna da falecida mulher. Lembro-me também de chegar ao colégio e todos os miúdos discutirem animadamente o que estava no quarto fechado: o cadáver da falecida mulher; a falecida mulher afinal viva, mas em cadeira de rodas; a versão mais macabra constava da falecida mulher afinal viva, amarrada a uma cadeira sem poder sair dali, alimentada pelo marido à colher.
Esta telenovela era, obviamente, inspirada na Rebecca e no livro homónimo (homónimo da telenovela, ou seja, também chamado A Sucessora) de uma autora brasileira, Carolina Nabuco. Por acaso, no Verão passado, li este livro, cheia de expectativa (tanto que esta Carolina processou a Daphne Du Maurier por plágio, mas, ao que sei, não ganhou). Infelizmente, o livro da Carolina tem não um lagarto pintado, mas alguma falta de piada. Talvez tenha valor pela descrição de algum colorido realista (eish, que profissional, eh eh), mas não achei grande coisa.
Para os queridos leitores que chegaram ao final deste post, que eu duvido que tenham sido muitos, porque isto de ler textos longos em blogs é o que é, eu própria também não costumo ter grande paciência, enfim, para os leitores que me acompanham até ao término, o meu muito obrigado, espero que tenham gostado, amanhã volto, volte comigo.
Era a brincar. Era para imitar aqueles talk shows foleiros e tal, tanto que eu amanhã nem sei se consigo cá vir. Isto para dizer que gosto de casas abandonadas, assustadoras, terríveis nas suas memórias, feitas da vida das pessoas.
E também para dizer que há um site magnífico que eu gosto muito de visitar e que consta de um arquivo lindíssimo de fotografias de locais abandonados. De uma beleza estranha e algo incompreensível, porque locais abandonados costumam ser feios. Mas, na verdade, não são. A beleza está em todo o lado e, de facto, e como dizem os ingleses, está no olhar de quem vê. O site é este.
Agora sim, muito obrigada, até amanhã, talvez.


8 comentários:

Maariah disse...

Claro que li até ao fim, primeiro devorando cada palavra para rapidamente chegar ao fim e saber que raio é afinal esta novela, por exemplo, como voltei a ler calmamente e saboreando cada frase (sim é foleiro saborear frases mas eu gosto de demorar a minha leirura em determinadas palavras).

Eu também gosto de casas abandonadas e também dou por mim a imaginar ( se bem que a minha imaginação não é muito fértil..) quem terá lá vivido, que histórias aquelas paredes contarão.

Lembro-me de em miúda ter ido uma vez explorar uma dessas casas. Entre um misto de medo e emoção lá estavamos nós. Passados uns anos essa casa foi restaurada e é actualmente um jardim infantil. Não passa lá vez nenhuma sem me lembrar de como a casa era antes.

Não me lembro nada da novela de que falas, mas lembro-me bem da senhora "falecida" que vivia no sotão. Lembro-me que achava a actriz bonita. O marido ainda vi em outras novelas mas ficou na minha memória com essa personagem.

Que comentário mais longo. Fui ...

Maariah disse...

Voltei ... prometo ser breve, quero apenas agradecer o link do site.

Andorinha disse...

Eu tenho uma casa abandonada, ou melhor, o meu Pai tem 62,5% e a minha Tia 32,5%. Ambos nasceram nessa casa. A casa é um Solar com perto de 350 anos, pelo menos. Com direito a brasão, matagal a dar com um pau e soalho de pau santo a ruir. Não tem fantasmas a não ser aqueles que lá deixamos quando a abandonamos pq o meu Pai e a minha Tia zangaram-se depois de terem comprado a casa aos irmãos. Mas em 350 anos pode ter acontecido muita coisa. Uma coisa é certa, dentro daquelas paredes nasceu muita gente.
Os romances que nos causam impacto fazem-nos sonhar. Desde que li os Pilares da Terra do Ken Follet nunca mais olhei pra uma igreja ou Catedral sem pensar nas mil histórias de vida que lá estão. E pronto, quase que escrevi um post!

Andorinha disse...

62,5% e 37,5% :) Não que interesse muito, mas só pra não pensares que eu tenho os 5 % que faltavam ;)

Analog Girl disse...

Para além de ler até ao fim pergunto-me se andaste a ler os meus pensamentos sem me conheceres (nem nunca comentei aqui antes).
Da minha cozinha vejo um casarão abandonado, e todos os dias ao pequeno-almoço invento histórias e questiono as memórias que lá andarão. Este post fez eco dos meus pensamentos. Da novela não tenho memória nenhuma, mas o Rebecca...grande livro...

fado alexandrino. disse...

Não vou escrever muito, fiquei muito triste.
Para começar visitei, fotografei e coloquei algumas fotos no meu blog colectivo de fotografias do Parque e do esplendoroso edifício que ilustra o post.
Ver o seu estado actual é absolutamente deprimente, não se consegue compreender como é que não é possível dar-lhe uma utilidade digna, que triste povo.
um menino a passear pelos corredores com um triciclo
Também vi, curiosamente sempre pensei que devia ser uma situação de grande expectativa.
Sempre me entusiasmou estar com uma mulher que se (aqui não se pode pôr a palavra que não gosta) sozinhos naquele casarão com milhares de hora para se descobrirem em jogos dos mais variados.
Não foi o caso.

Di disse...

Realmente! E eu saber como é que a ideia deste post nasceu...

Rita F. disse...

Maariah, nada a agradecer, espero que o link não tenha desiludido.Uma casa abandonada como jardim infantil é tão estranho... ao mesmo tempo, ainda bem para a casa. Para as criancinhas é que eu não sei. Ficou bonito, o jardim infantil?

Andorinha, essa casa deve ser uma delícia. Um verdadeiro sonho. Tenho sempre pena quando há disputas familiares, que conseguem ser muitíssimo destrutivas, mas uma casa de 350 anos está, com certeza, cheia de disputas e também reconciliações. 350 anos é uma eternidade.

Analog Girl, Rebecca é talvez o livro que li mais vezes, a seguir apenas aos Maias, que também leio muitas vezes. É soberbo. E Manderley, por si só, é uma personagem indestrutível, poderosíssima. É uma das razões por que o livro é tão bom, acho eu.

Fado, partilho inteiramente a tristeza. Até foi por isso que escolhi a foto. É um edifício maravilhoso, dos mais bonitos que já vi. E tão imenso e vazio... porquê?

Di, sabes e bem! :***