quarta-feira, 10 de março de 2010

E é isto uma senhora

Há um conto em Dubliners, de James Joyce, acerca de uma senhora que queria que a filha tocasse no recital de piano, e queria à força que isso acontecesse, de tal modo que começa o conto como personagem respeitável e incólume acaba a fazer figura de parva aos olhos dos outros, objecto de desprezo e escárnio. "E é isto uma senhora!" - é a última frase que pronunciam sobre ela.
Já não leio o conto há muito tempo, mas nunca me esqueci desta frase. Porque o mundo é exigente demais. As pessoas têm de ser sempre compostas, inteligentes, olhar por onde andam e nunca dar um passo em falso. Escolher amigos, profissão, casa e rotinas sem se enganarem, um engano, um único engano pode ser desastroso, depois não entras no curso que queres e vais para o desemprego, depois não arranjas o emprego que queres e és explorado e macerado até te pisarem o sangue, depois não te apaixonas e não te casas nem tens filhos e és infeliz para o resto da vida, quem sabe se não te tornas tarado, quem sabe se os outros não vão olhar para ti como o pequeno, talvez inofensivo mas é sempre de desconfiar, maluco que se senta à mesa do café, de meio sorriso na cara, a meter conversa com todos, a segredar palavras indecifráveis de si para si, emparedado numa solidão que mete pena, e depois como é?, é esta a vida que queres para ti?
É impossível viver assim. A senhora só queria ver a filha a tocar piano em público, deixem-na em paz.
Não se é menos senhora, ou menos pessoa, por causa disso.

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