terça-feira, 25 de novembro de 2008

Vã glória de mandar: uma análise (mais ou menos) linguística

Os portugueses, à partida, gostam de mandar. Esta parece-me ser uma característica transversal à sociedade portuguesa, e não proporcional ao poder efectivo que se tem. Qualquer zé-ninguém tem tanto desejo de mandar quanto o primeiro ministro (o que, como sabemos, já é dizer muito). Ora, em parte por motivos profissionais, em parte porque gosto de pensar em coisas um pouco inúteis, costumo prestar atenção às técnicas linguísticas que as pessoas usam quando estão entretidas a mandar, oportunidade, aliás, que costumam agarrar com unhas e dentes, encantadas com o "poderzinho" que finalmente podem exercer. Reparei que, normalmente, estas técnicas linguísticas são bastante sofisticadas e, quiçá, poderão até merecer um estudo mais alargado do que aquele que eu aqui me proponho fazer. Por exemplo, quando vou às Finanças ou Segurança Social ou quejandos, falta-me sempre um papel. Normalmente, o funcionário não me diz logo do pé para a mão que me falta o papel, do estilo "ouça lá você, falta-lhe um papel". Evitando esta indelicadeza, o/a funcionário/a opta por ser indirecto e, consequentemente, linguisticamente mais delicado. Mexe e remexe a papelada, suspira para indicar aborrecimento, aperta os lábios e declara o seguinte, de forma apenas razoavelmente empertigada:

- Não estou aqui a ver nenhum anexo A1234567899668654687/F.
Eu fico perplexa, pois não percebo o que é que eu tenho a ver com aquilo que o funcionário consegue ou não ver. Normalmente digo:
- Ah, não? Ah... que pena.
Mas o funcionário volta a insistir na sua falta de visão, talvez para eu ter ainda mais piedade, e suspira ainda mais fundo, dando à voz algumas entoações irritadas, para eu me compadecer mesmo dele:
- Pois não, não estou a ver não. É que não estou mesmo a ver.
E depois fica a olhar para mim, com ar zangado. Depois de alguns minutos, eu percebo finalmente que o que ele está a tentar fazer é avisar-me, de forma delicadíssima, de forma muitíssimo indirecta, como quem se compraz em apontar ao cidadão aquilo que ele fez mal (o que eu sei que não pode ser verdade), que eu não entreguei o papel que devia ter entregado, e que a culpa é toda minha de ele estar tão zangado. E decido arriscar:
- Então... quer dizer que vou ter de voltar cá... com o tal A123457857075086770764067/F?
- Pois com certeza! Pois com certeza!
- Então não posso preencher num instante agora? É que não fazia ideia e...
E agora, triunfante no esplendor de todo o seu poder, diz-me o funcionário/a:
-NÃO. NÃO PODE.
Também gosto da atitude pedagógica dos portugueses quando mandam. Uma vez, no meu local de trabalho, perdi o cartão de identificação e tive de ir tratar do assunto com o senhor dos cartões. Expliquei-lhe que precisava de um cartão novo porque tinha perdido o meu, e responde-me o senhor:
-Então mas acha que eu lhe posso dar um cartão assim sem mais nem menos? (aqui está, método socrático no seu melhor - fazendo perguntas para a pessoa responder é a melhor forma de aprender!)
- Sim, eu trabalho aqui e... e portanto, acho que preciso de um cartão novo... não é?
- Ah pois, mas não. Isto há métodos. Eu tenho de seguir métodos. Sente-se aqui que vai ter de abrir um processo novo para ter cartão, não vê que isto há métodos!
E, neste saudável exercício de diálogo platónico, lá fiquei eu, mais uma vez preenchendo papelada, seguindo os "métodos" impostos pelo senhor dos cartões, cujo rigor profissional impedia de me dar um cartão provisório do pé para a mão para eu poder sair do parque de estacionamento.

Não sei se esta propensão para o "poderzinho" nos vem da ditadura, ou do passado colonial ou de um profundo complexo de inferioridade por sermos um país traumatizado, resultante de um filho que bateu na mãe, tal como explica Eduardo Lourenço no grande Labirinto da Saudade, livro que aliás me suscita muitos pensamentos e sobre o qual hei-de escrever aqui um dia, talvez, quem sabe. Mas tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é chato.

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