Não consigo conceber a profundidade do talento de certas pessoas por achar que é algo brilhante demais, algo que a minha vã filosofia não alcança. Consido apreciar, mas não conceber.
Pessoas como, precisamente, Shakespeare. Alguns tentam inventar (uso, efectivamente, este termo porque tudo indica que se tratam de invenções) teorias acerca da “verdadeira” identidade de Shakespeare, sendo que Sir Francis Bacon e Elizabeth I são as mais populares. Talvez seja complicado para algumas pessoas perceber como é que um provinciano pouco viajado e sem educação esmerada (Shakespeare frequentou o ensino público isabelino comum à maior parte dos pequenos burgueses da altura e ficou-se por aí, o que aliás diz bastante da qualidade do ensino na Inglaterra quinhentista) conseguiu pensar e escrever a verdade da natureza humana, ainda por cima revelando o esplendor da língua inglesa como só um verdadeiro génio linguístico conseguiria. No entanto, Shakespeare, provinciano, pouco viajado, sem educação esmerada, fê-lo. De onde é que lhe viriam as ideias? Como é que percebia tão bem as pessoas? - o pobre Macbeth, um Raskolnikov avant la lettre, angustiado, duramente vergado sob o peso das suas acções, o asqueroso Richard III, as imperfeitas personagens de Medida por Medida, todas elas equivocadas, todas elas nem totalmente boas nem totalmente más, todas elas humanas. Medida por Medida é, aliás, das peças que já li, a que gosto mais talvez por isso, pela imperfeição tão humana das personagens. Há um pequeno excerto na peça de que gosto muito, e que me parece condensar a verdadeira humanidade das personagens (pessoas) criadas por Shakespeare. O irmão de Isabella, Claudio, foi condenado à morte por “ante-nuptial fornication”, o que, até para a altura, era um castigo claramente excessivo. Isabella vai falar com o governador da cidade, o sóbrio e severo Angelo, que, demonstrando toda a sua profunda reverência à lei, informa Isabella que esta dormirá com ele ou, em alternativa, verá o seu irmão morrer. A pobre Isabella, que ainda por cima se prepara para entrar para o convento, recusa de imediato, indignada, e comunica ao irmão que este, infelizmente, terá de se preparar para a fatalidade do confronto final com o Criador. Ao invés de demonstrar grande nobreza, coragem e elevação de carácter, Claudio reage como qualquer homem às portas da morte reagiria – com medo. E argumenta:
If it were damnable, he (Angelo) being so wise, why would he for the momentary trick be perdurably fined? O Isabel –
Ao que Isabella, mal acreditando no que ouve, retorque:
What says my brother?
E é agora que Claudio se limita a responder, de forma simples e breve:
Death is a fearful thing.
Está aqui tudo dito. Claudio é um homem que vai morrer e que não olhará a meios para salvar a vida porque o medo da morte é mais forte do que a honra, a bravura, a dignidade. Se a sua sobrevivência depender de a irmã prescindir da sua bem resguardada pureza, então seja. Este death is a fearful thing encantou-me desde a primeira leitura por o ter achado, desde logo, tão surpreendentemente humano. Será talvez apenas um pormenor em Medida por Medida, e certamente em toda a vasta obra de Shakespeare, mas para mim é um grande traço de humanidade, é a literatura que retrata verdadeiramente pessoas, não personagens.
Assim, a grandeza desmedida de Shakespeare é algo que tenho dificuldade em conceber. É algo que me faz ler as suas peças e ficar de boca aberta a pensar como foi possível, o que aliás, não é nada de novo. Sou eu e o resto do mundo.
Por isso é que há textos que resistem ao tempo e outros que sucumbem. Os que resistem parecem sempre novos, e dão-nos sempre a sensação de sermos os primeiros a descobri-los, ainda que saibamos que há milhares de pessoas que pensaram o mesmo, ou quase o mesmo, quando os leram.
Death is a fearful thing – gosto de pensar que fui eu, e apenas eu, com a ajuda de Shakespeare, que evidentemente a escreveu só para mim, a descobrir o segredo desta frase.
If it were damnable, he (Angelo) being so wise, why would he for the momentary trick be perdurably fined? O Isabel –
Ao que Isabella, mal acreditando no que ouve, retorque:
What says my brother?
E é agora que Claudio se limita a responder, de forma simples e breve:
Death is a fearful thing.
Está aqui tudo dito. Claudio é um homem que vai morrer e que não olhará a meios para salvar a vida porque o medo da morte é mais forte do que a honra, a bravura, a dignidade. Se a sua sobrevivência depender de a irmã prescindir da sua bem resguardada pureza, então seja. Este death is a fearful thing encantou-me desde a primeira leitura por o ter achado, desde logo, tão surpreendentemente humano. Será talvez apenas um pormenor em Medida por Medida, e certamente em toda a vasta obra de Shakespeare, mas para mim é um grande traço de humanidade, é a literatura que retrata verdadeiramente pessoas, não personagens.
Assim, a grandeza desmedida de Shakespeare é algo que tenho dificuldade em conceber. É algo que me faz ler as suas peças e ficar de boca aberta a pensar como foi possível, o que aliás, não é nada de novo. Sou eu e o resto do mundo.
Por isso é que há textos que resistem ao tempo e outros que sucumbem. Os que resistem parecem sempre novos, e dão-nos sempre a sensação de sermos os primeiros a descobri-los, ainda que saibamos que há milhares de pessoas que pensaram o mesmo, ou quase o mesmo, quando os leram.
Death is a fearful thing – gosto de pensar que fui eu, e apenas eu, com a ajuda de Shakespeare, que evidentemente a escreveu só para mim, a descobrir o segredo desta frase.
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