sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Romances ingleses que davam grandes filmes portugueses: O Monte dos Vendavais


INT. Sala escura, pouca mobília (mesa, cadeiras). Grande lareira, junto da qual se senta Catarina, uma jovem rapariga, a ler um pesado livro pousado nos joelhos. Tem uma manta sobre os ombros. À porta da sala está um rapaz espadaúdo e imóvel, Heathcliff, que a olha intensamente durante um perído de tempo considerável (40 minutos) Ouve-se o assustador som do vento forte lá fora, numa quinta, perto do Porto.

HEATHCLIFF: Olha, Cati, já te disse montes de vezes pa nã te casares. Já te disse montes de vezes qu'era pa ficares aqui. Nã percebo porqu'é que tu nunca m'ouves.

(Catarina levanta os olhos do livro pela primeira e vez e olha fixamente para Heathcliff. O seu olhar é decidido, e olha-o directamente nos olhos, como pessoa dinâmica que é, não por muito tempo, apenas 20 minutos)

CATARINA: Primeiro, agradecia imensamente que não me tratasse por Cati. Chamo-me Catarina, sabe perfeitamente. E também sabe perfeitamente que eu apreciaria imensamente ficar aqui consigo, quem sabe até casar. Apreciaria imenso. Mas a vida é complicada, Heathcliff, nem sempre conseguimos aquilo que queremos, percebe?

HEATHCLIFF: Ó pá, tu tamém, com essa mania das coisas, pá, mas vais-te casar pa quê, se tu nem gostas dele nem nada, tamém não te percebo, a sério que tu às vezes pá...tu gostas mazé de mim, tás p'aí com coisas, tu tamém.

CATARINA: Sim. É verdade, tem toda a razão, Heathcliff.
(grande plano: Catarina olha a lareira e os seus olhos brilhantes reflectem as chamas. Vemos uma única lágrima rolar cara abaixo)
Vou-me casar e nem sequer gosto dele.
(grande plano: Catarina olha o horizonte imaginário. 50 minutos de silêncio intenso)
HEATHCLIFF: Atão mas... afinal, com'é que é. Ficas ou vais? Fica, faxavor, deixa lá de ser esquisita. Gosto de ti, porra. Fica, Cati...

CATARINA: Ó Heathcliff, ouça, querido... eu também gosto imensamente de si. Aliás, o meu amor pelo Edgar é como a folhagem dos bosques, efémero, ao passo que o meu amor por si até é como as rochas por baixo das raízes das árvores e tudo, percebe, tipo imutável. Eu sei que somos um só. Mas, ouça... é que não vai dar, percebe. Agora já está tudo combinadíssimo com o Edgar, já tá tudo preparadíssimo, a festa e tal, imensa gente do Porto convidada... Mas eu vou amá-lo até morrer, ok, Heathcliff? É que, literalmente, vou amá-lo até morrer, porque eu não amo o Edgar. De todo.

HEATHCLIFF: Tás-me sempre a dar tanga, Cati.

(silêncio de grande intensidade dramática. Heahtcliff e Catarina olham-se ininterruptamente durante 60 minutos, expressando de uma forma contida o profundo afecto que os une)

CATARINA: Catarina, querido.

(Heathcliff volta a olhar Catarina brevemente, durante 20 minutos. No seu olhar há dor ao perceber que Catarina, no fundo, não tem coragem para suplantar o grande fosso entre as suas diferentes classes sociais)

HEATHCLIFF: É pá, pronto, tudo bem, Catarina, pronto, tamém quero lá saber. Olha, queres casar c'o outro, né? Então força, mas depois se correr tudo mal nã venhas p'aqui chorar, qu'eu tou-te já a avisar. Se sais desta casa é pa sempre, tás ouvir, Cati?!
CORTA PARA: Catarina novamente sentada, retomando a leitura do pesado livro. Heathcliff à porta da sala, voltando a contemplá-la durante 120 minutos.

Gosto verdadeiramente de cinema português, a sério.É como diz o Herman a fazer de Nelo, "os verdes muito verdes, os vermelhos muito vermelhos, aquilo parece que sai". Pois parece.

A sério que gosto de cinema português. Este post é brincadeirinha carinhosa.

2 comentários:

Xantipa disse...

Adorei! Adorei! Ainda mais do que o do Eric...
:)

Anónimo disse...

Sim. Brilhantismo literário.
Não só o bem escrito que estão, os post's, mas a profundidade do transmite.
Obrigada por este bocadinho.
Sofia