segunda-feira, 17 de novembro de 2008

"Estranjas"

Octávia e Marco António.
Catarina de Aragão e Henrique VIII.
Silvia Plath e Ted Hughes.
Bertha Manson e Mr Rochester.
Penélope e Ulisses.
Ariane e Teseu.
Medeia e Jasão.
O que estas mulheres têm em comum é fácil de perceber - todas elas foram abandonadas, de forma mais ou menos óbvia, pelos maridos (Penélope é talvez um caso à parte, pois o marido só queria voltar para casa e não o deixavam, mas enfim). Lembrei-me disto nem sei porquê, talvez por de vez em quando pensar no belo Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys, que resgata a figura da pobre Bertha Manson. Esta última, personagem de Jane Eyre, e antes da obra de Jean Rhys, resumira-se a um empecilho desnorteado impedindo a felicidade da frágil Jane com o seu bígamo Mr Rochester. Fechada no sótão por ser louca desvairada, a pobre Bertha não tem outro remédio senão tentar reclamar o marido, que agora se prepara para casar com a doce Jane, através de desvarios, grunhidos e actos piromaníacos. Em Wide Sargasso Sea, Jean Rhys dá a Bertha uma vida anterior ao casamento, uma personalidade, anseios e medos, isto é, faz-lhe justiça. Ao ler Jane Eyre (e li mesmo muitas vezes), nunca me lembrei da vida desta Bertha, sempre pensei que era uma doida parva a empatar o Mr Rochester e a fazer a minha pobre Jane infeliz, e foi preciso ler Wide Sargasso Sea para começar a olhar para o tal Mr Rochester com outros olhos e pensar que este, afinal, antes de ter pedido Jane em casamento, devia talvez ter-se lembrado de que já tinha outra mulher convenientemente trancada no sótão com as suas loucuras.
A história de Medeia, por seu lado, é a mais terrível, a mais insuperável, e provavelmente aquela com quem não se pode deixar de simpatizar, ainda que tenhamos imensa pena dos filhos sacrificados. No entanto, quem tem de aguentar não só o marido que a troca por uma princesazinha qualquer mais nova, como o exílio que lhe é imposto, como também ainda ouvir, do próprio Jasão, que muita sorte teve ela, Medeia, em ter casado com ele e ter ido morar para a Grécia, ela que era uma estrangeira bárbara vinda das profundezas do Terceiro Mundo, tem com certeza mais do que motivos para se indignar. Não admira que Medeia tenha dado em doida e exercido a sua vingança da forma mais retumbante possível, e não deixa de ser curioso este olhar reprovador e duro que recai sobre as mulheres como “seres estrangeiros” – Medeia e Bertha (crioula das Índias Ocidentais que segue o marido para Inglaterra), por exemplo, são duas estrangeiras que o pagaram caro. Cleópatra, que neste caso não foi abandonada, mas antes envolvida em grande tragédia por gostar de Marco António, também era constantemente vilipendiada em Roma por ser uma bruxa egípcia.
O que custa nas histórias destas mulheres abandonadas, principalmente aquelas da vida real, é o facto de ilustrarem a escassez de opções que assolou, durante séculos, as mulheres que permaneceram sós, repudiadas por um qualquer marido. E muitas delas, mesmo assim, enfrentavam as misérias e “davam a volta por cima”, para usar uma alegre expressão dos dias de hoje (como bem representa Hester Prynne de The Scarlet Letter, que até foi escrito por um homem). As suas histórias não deixam, porém, de impressionar. Catarina de Aragão fechou-se num convento e morreu para o mundo, e esta sim é que provavelmente se terá dado por felizarda ao ouvir dos destinos bem mais duros das outras esposas (e respectivos pescoços) de Henrique VIII. Octávia ficou a tratar dos filhos até morrer, e ainda por cima parece que um deles morreu e que lhe despedaçou o coração de vez (para ser sincera, li isto na Wikipedia, portanto tanto pode ser verdade como mentira). O caso de Silvia Plath é ainda mais cruel, quanto a mim. Também de coração estilhaçado ao ver-se abandonada por Ted Hughes, poeta que na altura aliava o sucesso literário ao sucesso entre as mulheres, Silvia Plath suicidou-se, mas o que aqui impressiona é que, neste caso, estamos a falar de alguém brilhante, inteligente, que escreveu uma poesia vigorosa, estranha, bela, e que era igualmente magnífica na prosa – a “Bíblia dos Sonhos”, colecção de contos de Silvia, é provavelmente o melhor livro de contos que já li, ou pelo menos aquele de que mais gosto. Uma pessoa que, ao que me parece, deveria ter muitas razões para viver. Mas os caminhos tortuosos da mente humana são, de facto, insondáveis.
E é isto, hoje deu-me para pensar sobre a condição feminina. Gosto de viver no século XXI, apesar de tudo o que ainda há para fazer relativamente à condição das mulheres no mundo, e gosto de saber que, se não tenho o talento de Silvia Plath, pelo menos tenho uma compensação, que é a de viver como quero (ou quase, aquele problema da assimetria...)

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