domingo, 30 de novembro de 2008

O optimismo é piroso


Se há "cineasta" (palavra engraçada) que eu "adoro de paixão" (expressão engraçada) é Woody Allen. Adoro, adoro, adoro. Sonhei uma vez com Manhattan, e nunca me esquecerei deste sonho - o sol despertava por detrás dos arranha-céus, tal como no fim (ou no início? acho que é no fim) do filme, e eu estava com o Woody Allen no topo de um edifício a contemplar o espectáculo. No sonho, eu era a melhor amiga dele. Foi lindo (tal e qual tal e qual como na fotografiazinha que consegui pôr aqui ao lado).

Gosto de Woody Allen porque, com todo o respeito, acho que ele diz coisas acertadas sobre a vida com as quais eu me identifico. Gosto do pessimismo inabalável, cáustico, cheio de humor, de Woody Allen. Em "Deconstructing Harry" (na minha modesta opinião, o último filme mesmo, mesmo bom que fez - gostei do Match Point, mas enfim, nada que se compare), Harry, outro alter-ego cinematográfico deste "cineasta", vai parar à prisão, onde tem algum tempo para a seguinte conclusão - "I'm not good at life". E ainda bem que não, porque assim faz filmes magníficos em que pode falar disso. Se Woody Allen fosse uma pessoa feliz e contente, nada haveria a dizer dele.

O que me faz lembrar que, de facto, nada há de mais piroso do que o optimismo. O que haverá a dizer quando se é optimista? O que haverá a dizer quando nos esforçamos por andar de sorriso parvo estampado no rosto, à espera do tal dia que vai ser o "nosso" dia, da tal hora em que as coisas vão mudar e que vamos fugir do convento e correr para os montes, que estarão alegremente a celebrar o som da música, ou a música no coração, ou sei lá que mais? Se Woody Allen estivesse à espera de fugir para os montes para cantar o som da música, estava bem arranjado. Não fazia filmes de jeito e nem na França gostavam dele.

Não me consigo lembrar de um único escritor ou poeta de que gosto que não carregasse, ou pelo menos aparentasse carregar, uma alma negra. Até o próprio Almeida Garret, vaidoso, namoradeiro, afinal visconde, escrevia sobre infelicidades. A própria filosofia é exemplo de que o pessimismo é bem mais cool do que o optimismo. De quem é que normalmente as pessoas gostam de dizer que gostam - dos existencialistas (ai, a vida é um absurdo, ai, o homem só no mundo, as escolhas, Deus não existe, Deus não quer saber de ti, desenvencilha-te, és um bastardo, um abandonado, um órfão, não há sistema, não há salvação, percebe bem isto ou morre) ou do querido Feuerbach, o amor, a salvação, o amor, ai que lindo... Feuerbach quem? Está tudo dito. É sempre mais interessante gostar do pessimismo do que do optimismo.

E não é só na literatura e na filosofia que a vantagem estética do pessimismo é notória - é mais "fatal" vestir de preto do que de cores garridas; é mais interessante insinuar que somos um mar de conflitos interiores e que estamos, como Hamlet, indecisos entre aguentar ou agir contra os tais conflitos, do que andarmos por aí a dizer que acreditamos que "quem espera sempre alcança!"; é mais piroso usar pontos de exclamação, sinais de pontuação entusiásticos e enérgicos, do que o sóbrio, o cínico ponto final.

O cinismo e o pessimismo batem sempre a palma ao sorriso. Além disso, todo o humor vem sempre do pessimismo, do cinismo, da infelicidade. Há alguém optimista que tenha graça? Não me parece. De modo que só há vantagens no pessimismo e desvantagens no optimismo.

E é isto.

sábado, 29 de novembro de 2008

Envelhecer aos fins de semana custa (ou como o frio e a chuva toldam a nossa capacidade de escrever algo que faça sentido)

Como aos fins-de-semana tenho mais tempo para pensar, normalmente fico mais angustiada. Por exemplo, hoje tentei ir ao cinema, mas a fila para estacionar era tão grande que desisti logo. Também não estava assim com tanta vontade de ir ao cinema ou a outro lado qualquer, e por isso fiquei ali parada no trânsito, a olhar para a fila de carros a tentar estacionar, e a pensar se aquela gente faz sempre a mesma coisa todos os sábados, isto é, sair de casa e procurar um sítio para estacionar e, se o encontrarem, arranjar depois qualquer coisa para fazer. Mas toda a gente parecia muito ocupada menos eu. Toda a gente parece sempre que tem imensa coisa para fazer menos eu.

Sempre que vejo um grupo grande de pessoas aglomeradas no mesmo sítio, mesmo que seja a paragem de autocarro, tenho vontade de lhes perguntar o que estão ali a fazer. Parecem movidas por um objectivo mais nobre e mais útil do que o meu.

Surpreendo-me sempre que me dizem que não podem ir tomar café porque. Eu só não posso ir tomar café se estiver a trabalhar, de resto posso sempre. Mas os outros não, os outros parecem sempre ocupadíssimos e até se gabam, às vezes, da sua falta de tempo, como se menos tempo disponível equivalesse a mais vida vivida. É estranho.

Aos fins de semana, normalmente ponho-me a pensar que talvez eu também devesse ocupar-me mais de encontrar um sítio decente para estacionar. Dantes nem sequer pensava nisso, mas quando a idade começa a pesar, percebemos que não podemos, ou não devemos, ou não é bom para nós, estacionar em qualquer lado. Mas também já consegui perceber que a vida das pessoas não é melhor por encontrar sítio para estacionar, aliás, muitas vezes até se torna pior, mesmo que estejamos a falar de um lugar de estacionamento completamente gratuito, em frente à Gulbenkian, para estacionar à espinha de peixe e não paralelo ao passeio.

Portanto acho que, por enquanto, não vou estacionar o carro tão cedo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

(outra) Gaja que faz o meu estilo: Charlotte Gainsbourg


Já vi filmes com ela, e gostei razoavelmente do seu desempenho; já a ouvi cantar, e também gostei razoavelmente.

Mas o que esta mulher tem de que eu gosto mesmo, mesmo a sério, é esta inegável e inexplicável pinta. Esta mulher é um poço de pinta. Mais do que bonita, tem esta pintarola, o que é ainda melhor do que ser bonita.



Curiosamente, o pai dela, que está a cantar ali em baixo, também faz muito o meu estilo.


O que não deixa de ser... aaaaah..... nojento, talvez.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Nota mental 2: com o Corto Maltese não resulta, mas e com Marlon Brando...?

- Olha, Marlon, tu só queres andar aí no engate e nos copos, não é? Então põe-te daqui para fora e é já.
- Olha... essa é boa. Eu não vou a lado nenhum.
- Ai isso é que vais, pegas nas tuas coisinhas e rua.
- Então vou, tudo bem. Deves achar que eu quero saber. Pensas que vou ter saudades tuas, não é?
- Pois penso.
- Isso querias tu. Tenho os meus amigos, não preciso de ti para nada.
- Então ainda bem para ti. Andor.
E vai-se embora. Passadas algumas horas (não meses, não anos: horas), estou confortavelmente em casa a descansar quando ouço uma voz lá em baixo na rua, aos gritos. Vou à varanda. É o Marlon que voltou, de ar perdido, lacrimejante, que me grita à varanda, a acordar a vizinhança:
-Ritaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Ritaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
Olho para ele. Chora. Soluça. Está desesperado sem mim. Tem a T-shirt rasgada, revelando o peito bronzeado, de contornos bem definidos. Reconheço que é razoavelmente inteligente e de atributos físicos toleráveis, mas quer dizer, nada de especial, nada que não se veja todos os dias por aí, ou por outra: arranja-se melhor.
- Olha, querida, quando me conhecestes, tu pensastes que eu era um bocado para o ordinário, não pensastes? Pois, e tinhas razão. Eu era mesmo meio coiso. Tu mostrastes-me uma fotografia toda bem composta, tu lá em cima das colunas, mas eu fui e tirei-te do pedestral, não tirei? Tirei-te do pedestral e tu adorastes, não foi? E fomos felizes ou não, querida? Fomos ou não fomos?
- Credo, Marlon, essa gramática, ai essa gramática ... mas pronto, já que insistes...

A razão para esta conversa toda é que o Marlon é um tipo que faz muito o meu estilo, mas apenas porque, em inglês, ele dá menos erros de gramática. Aquela T-shirt justinha, rasgada... nem sequer vem ao caso.

Dura vita sed vita

As pessoas são tão estranhas. Falam muito de amor, de emoções, de afectos, como se fossem coisas imperecíveis, que ficassem na nossa vida para sempre e, no entanto, a facilidade com que estas coisas se evaporam é uma verdade da qual ninguém nos avisa.
É muito estranho, talvez até assustador, pensar que há pessoas de quem gostamos muito num determinado momento, e que depois, instantes depois, já não fazem parte da nossa vida nem nunca mais vamos ver. É muito estranho, talvez até entristecedor, pensar que alguém de quem gostámos muito pode já não ter nenhum significado para nós anos depois. Consigo lembrar-me de um número razoável de pessoas com quem conversei, com quem tomei café, que me falaram da vida, a quem eu falei da vida, e que podem até já ter morrido sem eu saber de nada, assumindo que elas andam por aí entretidas na sua azafamazinha, e elas se calhar mortas e enterradas e eu sem saber de nada, eu a pensar, "olha, há que tempos que não sei nada do x", ou, "olha, há séculos que não mando um mail à y". No entanto, quando tomei café com estas pessoas, quando lhes falei da vida, pensei que ia ser assim para sempre, que ia gostar delas para sempre, que ia precisar delas para sempre. Mas não.
A conclusão a tirar é que, quando nos dizem que o amor é um sentimento poderoso, estão a mentir-nos descaradamente. O amor é tão poderoso como o Carnaval de Torres Vedras, três dias que passam depressa e dos quais não nos lembramos no quarto dia, ocupados com a ressaca.
O sábio Serge sabia do que falava, a vida é assim.

Memórias de uma menina bem impressionada



Quando era pequena, lembro-me de ir às aulas de Religião e Moral. O colégio onde eu andava tinha uma sala só para isso. Nessa sala havia um imenso Cristo na cruz que provocava um misto de horror, medo e pena. Era pequena e sentava-me numa mesa mesmo ao pé de Jesus Cristo, o que, como se calcula, era um acontecimento profundo. A cruz era mesmo imensa, e dali conseguia ver as feridas todas. Era terrível e impressionante. Parece-me que o "deixai vir a mim as criancinhas" tinha um significado ligeiramente diferente de "assustai verdadeiramente as criancinhas".

Certo dia, explicaram-nos quem era a Virgem Maria e disseram-nos que era a melhor mãe do mundo porque gostava mais de Jesus do que as outras mães gostam dos seus filhos. Valeu-me a minha própria mãe para me explicar que aquilo não era bem assim, caso contrário sofreria até hoje de um sentimento bastante forte de rejeição.

El Greco é para adultos, é o que eu defendo.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Vã glória de mandar: uma análise (mais ou menos) linguística

Os portugueses, à partida, gostam de mandar. Esta parece-me ser uma característica transversal à sociedade portuguesa, e não proporcional ao poder efectivo que se tem. Qualquer zé-ninguém tem tanto desejo de mandar quanto o primeiro ministro (o que, como sabemos, já é dizer muito). Ora, em parte por motivos profissionais, em parte porque gosto de pensar em coisas um pouco inúteis, costumo prestar atenção às técnicas linguísticas que as pessoas usam quando estão entretidas a mandar, oportunidade, aliás, que costumam agarrar com unhas e dentes, encantadas com o "poderzinho" que finalmente podem exercer. Reparei que, normalmente, estas técnicas linguísticas são bastante sofisticadas e, quiçá, poderão até merecer um estudo mais alargado do que aquele que eu aqui me proponho fazer. Por exemplo, quando vou às Finanças ou Segurança Social ou quejandos, falta-me sempre um papel. Normalmente, o funcionário não me diz logo do pé para a mão que me falta o papel, do estilo "ouça lá você, falta-lhe um papel". Evitando esta indelicadeza, o/a funcionário/a opta por ser indirecto e, consequentemente, linguisticamente mais delicado. Mexe e remexe a papelada, suspira para indicar aborrecimento, aperta os lábios e declara o seguinte, de forma apenas razoavelmente empertigada:

- Não estou aqui a ver nenhum anexo A1234567899668654687/F.
Eu fico perplexa, pois não percebo o que é que eu tenho a ver com aquilo que o funcionário consegue ou não ver. Normalmente digo:
- Ah, não? Ah... que pena.
Mas o funcionário volta a insistir na sua falta de visão, talvez para eu ter ainda mais piedade, e suspira ainda mais fundo, dando à voz algumas entoações irritadas, para eu me compadecer mesmo dele:
- Pois não, não estou a ver não. É que não estou mesmo a ver.
E depois fica a olhar para mim, com ar zangado. Depois de alguns minutos, eu percebo finalmente que o que ele está a tentar fazer é avisar-me, de forma delicadíssima, de forma muitíssimo indirecta, como quem se compraz em apontar ao cidadão aquilo que ele fez mal (o que eu sei que não pode ser verdade), que eu não entreguei o papel que devia ter entregado, e que a culpa é toda minha de ele estar tão zangado. E decido arriscar:
- Então... quer dizer que vou ter de voltar cá... com o tal A123457857075086770764067/F?
- Pois com certeza! Pois com certeza!
- Então não posso preencher num instante agora? É que não fazia ideia e...
E agora, triunfante no esplendor de todo o seu poder, diz-me o funcionário/a:
-NÃO. NÃO PODE.
Também gosto da atitude pedagógica dos portugueses quando mandam. Uma vez, no meu local de trabalho, perdi o cartão de identificação e tive de ir tratar do assunto com o senhor dos cartões. Expliquei-lhe que precisava de um cartão novo porque tinha perdido o meu, e responde-me o senhor:
-Então mas acha que eu lhe posso dar um cartão assim sem mais nem menos? (aqui está, método socrático no seu melhor - fazendo perguntas para a pessoa responder é a melhor forma de aprender!)
- Sim, eu trabalho aqui e... e portanto, acho que preciso de um cartão novo... não é?
- Ah pois, mas não. Isto há métodos. Eu tenho de seguir métodos. Sente-se aqui que vai ter de abrir um processo novo para ter cartão, não vê que isto há métodos!
E, neste saudável exercício de diálogo platónico, lá fiquei eu, mais uma vez preenchendo papelada, seguindo os "métodos" impostos pelo senhor dos cartões, cujo rigor profissional impedia de me dar um cartão provisório do pé para a mão para eu poder sair do parque de estacionamento.

Não sei se esta propensão para o "poderzinho" nos vem da ditadura, ou do passado colonial ou de um profundo complexo de inferioridade por sermos um país traumatizado, resultante de um filho que bateu na mãe, tal como explica Eduardo Lourenço no grande Labirinto da Saudade, livro que aliás me suscita muitos pensamentos e sobre o qual hei-de escrever aqui um dia, talvez, quem sabe. Mas tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é chato.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

(outra) Gaja que faz o meu estilo

Grace Slick, dos Jefferson Airplane. Comecei a gostar dela devido à capa de "Surrealistic Pillow", álbum da mesma banda, em que ela tem um cabelo impecável, e o meu sonho, há uns anos, era ter um cabelo assim, mas ou o meu cabelo tem algum problema, ou é o meu cabeleireiro que tem, pois nunca consegui atingir este ar assim cool aqui da Grace. Para remediar, decidi ouvir o disco e fiquei fã dos Jefferson e fã da Grace enquanto nova, porque entretanto envelheceu e ficou uma velha maluca que, na meia-idade, decidiu fazer parte de um grupo indescritivelmente piroso chamado "Starship" (bbrrrrrr, só de pensar até dá arrepios, o que está a minha Grace a fazer cantando aquele insultuoso "and we can do this thing together, standing strong forever, nothing's gonna stop us now, aaaaaaaaaaaaaaah! A princípio nem quis acreditar, disseram-me que era ela e eu não acreditei, eu ouvia a música quando era pequena e já na altura não gostava, depois cresci e descobri a verdade, afinal era a Grace, ai).
Adiante. Num filme que pelos vistos foi mal amado pelo público, mas que eu não acho muito mau, e ao qual até acho piada, que é o Melga, o Jim Carrey faz uma imitação suprema e de morrer a rir da Grace Slick a cantar aquela que é provavelmente a sua canção mais conhecida - Somebody to Love (mas tem mais graça se já conhecermos bem o original):



Lin-dooo. Grace, pede desculpa por essa coisa do Starship e voltamos a ser amigas. Mas continuo a adorar o teu cabelo. Sou uma fraca.

sábado, 22 de novembro de 2008

Em que demonstro porque é que não sou a Virginia Woolf,e/ou James Joyce e/ou restantes modernistas

Preguiça. Um mundo inteiro de preguiça. Tanta preguiça. Lá fora está frio. Dentro de casa também. Estou no sofá e tenho frio. A manta não aquece. Pensar em levantar e ligar o aquecimento. Mexo primeiro o pé ou a perna? Pensar em levantar e ir buscar um casaquinho. Mexo primeiro a mão ou o braço? Se não me levantar, continuo com frio. Se me levantar, tenho mais frio ao levantar-me. E andar pela casa à procura do casaco. Mas se continuar sentada tenho frio. Se realmente me levantar, mexo primeiro o pé, a mão, a perna ou o braço? E se for a cabeça? E se ficar no sofá e pronto, ainda que tenha frio? Não, não consigo ler porque não consigo segurar o livro, não quero ver televisão porque não está a dar nada, não percebo o pessoal que dá dinheiro ao fim do mês pelo MEO, penso, quando cheguei a esta casa já cá estavam estes canais todos e ainda bem, assim não pago nada, a culpa não é minha, assim dá para perceber que não vale a pena pagar para ter tv cabo ou meo, agora já não é tv cabo, é MEO, nunca consigo estar a par das tecnologias, com o ipod foi a mesma coisa, durante meses ouvia as pessoas falarem disso e não sabia o que era, com o Skype a mesma coisa, qualquer dia nem sei mexer num telemóvel, também dantes ninguém tinha telemóvel e ninguém sentia a falta, agora toda a gente vai comprar o iphone como se alguém precisasse disso, às vezes não sei, olha, daqui do sofá consigo ver a estante toda, aquele livro do Camilo Pessanha está ao pé dos estrangeiros, tenho de o ir arrumar, pois é, e aquele livro da Germana Tânger, tenho de encontrar aquele livro da Germana Tânger em que ela diz poetas portugueses, nunca o vi em lado nenhum, talvez naquela livraria de poesia, aquela que se chama qualquer coisa, ai, tenho de ir ver à net, mas tenho frio, levanto-me ou não, se me levantar mexo primeiro a perna ou o pé, tanta decisão, tenho frio, porque é que sou tão preguiçosa, tanta coisa para fazer e só consigo pensar no frio, e talvez decida ir hoje, eu mesma, comprar as flores.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Gajas que fazem o meu estilo


Esta Elizabeth Taylor. O máximo. Gosto particularmente dela em Cat on a Hot Tin Roof, porque normalmente também costumo gostar muito dos filmes baseados em peças de Tenessee Williams (curiosamente, nunca li as ditas peças, falha que vou ter de remediar muito em breve).

Adorei-a no Gigante, apesar de o filme ser interminável. A repressão da altura é flagrante: até nascerem os filhos, o casal Elizabeth-Rock Hudson dorme na mesma cama; depois da prole assegurada e a tarefa reprodutiva cumprida, já dormem em camas diferentes. Foi um pormenor giro em que eu reparei, porque afinal o filme é tão grande que às tantas a pessoa tem de encontrar coisas para se distrair.


I think it's a fine thing that a man on the doorstep of death can still look at a woman like me with what I call deserved appreciation. - força aí, Lizzie.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Politécnicos e universidades: não podemos ser todos amigos?

Há alguns meses, aqui, o Público deu conta da reacção do Ministro Mariano Gago aos politécnicos que querem ser universidades:

Mariano Gago defende que os institutos politécnicos têm "de se afirmar melhores, mais capazes, com uma identidade de nome, uma identidade de função. Não queiram liquidar esse capital de modernidade tentando vestir os trajes, as formas, os rituais e os nomes do passado". [...] "em muitos aspectos", eles [politécnicos] "são mais capazes" que as universidades: "São mais capazes de proceder a renovações instituicionais, de integrar socialmente aqueles que normalmente não entrariam no ensino superior, de fornecer empregabilidade. Mais capazes, em suma, de responder a alguns dos principais desafios do país. São mais modernos".

Não sei bem o que pensar do facto de o Ministro da Ciência e Ensino Superior vir dizer que os politécnicos não devem querer ser universidades por estas últimas, pelos vistos, pertencerem "ao passado", e que os politécnicos são, aparentemente, sob múltiplos aspectos, "mais capazes" do que as próprias Universidades; entristece-me mas enfim, adiante.

A pretensão, quanto a mim estéril, dos politécnicos ao estatuto de universidade não é nova, mas é definitivamente permitida, e provavelmente até estimulada, pelo processo de Bolonha e respectivos adeptos, que gostam de apregoar que agora a universidade serve para que os alunos sejam capazes de arranjar um emprego no fim do curso. Se é só para isto que a universidade serve, então mais vale transformá-la já em centro de emprego e acabar com a história. Ninguém nega que os cursos universitários devem, com certeza, preparar os alunos para o mercado de trabalho; mas a universidade não é só isto. Será bom pensarmos que, na vida real e no mercado de trabalho, as pessoas também deverão ter os meios intelectuais para pensar mais e melhor, e que estes meios intelectuais se poderão aprender, e/ou desenvolver com profundidade, na Universidade. O saber pelo saber, a par da integração no mercado de trabalho, deve ser sempre uma prioridade dos cursos universitários.

Não percebo porque é que os politécnicos se querem tornar universidades, ou serem equiparados a universidades. Argumentam que, por exemplo, na "Europa", os politécnicos já conseguiram essa equiparação e até já podem dar graus de doutor. Com certeza sabem também, neste caso, que, nessa tal "Europa", ninguém integra o corpo docente de uma universidade, muito menos ministra cursos de doutoramento, apenas com uma licenciatura ou sequer com um mestrado. O doutoramento é o requisito mínimo para o início da carreira académica, não a sua prova derradeira. Portugal segue também, progressivamente, este caminho, embora as Universidades contem ainda com muitos não doutorados entre o seu pessoal docente (que se apressam, com certeza, a acabar as suas teses de doutoramento, porque num futuro próximo qualquer grau inferior ao doutoramento será incompatível com a manutenção do local de trabalho). Portanto, se os politécnicos se querem tornar universidades, o esforço com a qualificação do pessoal docente terá de ser exactamente o mesmo, e a exigência do cumprimento de investigação anual pelos docentes do ensino superior deverá também aplicar-se aos politécnicos.

Quer as universidades, quer os politécnicos, têm necessariamente de contar com pessoal qualificado e de apresentar rigor científico. Mas as suas funções são diferentes. Os politécnicos podem servir a comunidade "integrando socialmente aqueles que normalmente não entrariam no ensino superior", sendo dinâmicos, práticos, fortemente orientados para o mercado de trabalho, ter a tal "identidade de função" de que Mariano Gago fala (neste aspecto, concordo com ele). As universidades, por seu lado, têm de ir para além disto - devem ser verdadeiros e exigentes centros de investigação. Não porque são instituições do passado, mas sim porque são universidades.
Rui Reininho vai lançar um álbum a solo. Não sei se vou comprar ou não (embora tenha ouvido ontem uma das canções do disco na Radar e tenha de facto gostado), mas fico contente por saber da notícia.
Os GNR foram A minha banda portuguesa quando era mais nova mas, ao contrário dos Beatles, que ficaram para sempre, desapareceram da minha vida a partir do Rock in Rio Douro, que foi um grande desgosto que eu tive, tal foi a minha desilusão. Acalentei sempre a esperança de que melhorassem, mas não, de modo que pura e simplesmente deixei de os ouvir, mantendo-se o In Vivo como excepção à regra - ainda hoje acho que é um grande álbum da música portuguesa. Até acho que lhe deviam dar muito mais importância.
Reininho tinha uma aura um tanto ou quanto original, escrevia letras engraçadas (lembro-me de ser muito pequena e ouvir o "Efectivamente" com uma amiga da escola porque era a tal música do "adoro as pulgas dos cães"; ríamo-nos sempre perdidamente com isto, sendo que o resto da letra nos passava um tanto ou quanto ao lado), tinha piada, boa apresentação e era meio irreverente - noutro dia, encontrei na Bertrand um livro com excertos de entrevistas com Reininho, nos idos anos 80, e ele dizia coisas como "quero ser reformado" ou "quero escrever música para reformados", algo deste género, assim como "quero escrever para o Marco Paulo". Era calculadamente cool - e isto num país em que as bandas ainda não tentavam, de forma tão deliberada, apresentarem-se como cópias formatadas de bandas britânicas e americanas, todas com roupa da moda, cabelo desfeito em cor e gel, de boca prontíssima para o inglês (já toda a gente percebeu que falam muito bem em estrangeiro, petizada, portanto agora já se podem calar, obrigadíssima) e para tiradas retumbantes como "queremos agradecer este querido EMA"; quando as ouço é que penso mesmo "faz-me impressão o trabalho, oh oh, que se tem em ser superficial" - de modo que, cantando e falando só em português, o que chegava e sobrava, Rui Reininho conseguia ter um ar algo rebelde e diletante que lhe ficava mesmo bem, e que a mim me encantava.

Espero gostar muito, mas mesmo muito, do disco de Rui Reininho. My man (eu também sou muito pronta para o inglês, o que se há de fazer).

Almas penadas


A escrita é uma coisa muito estranha. É um espelho de nós próprios, e, talvez por isso, faz com que nos confrontemos com a nossa própria identidade como se esta fosse alheia, como se pertencesse a outro e não a nós. Ler algo que escrevemos há algum tempo é ler aquilo que outra pessoa escreveu, não aquilo que nós, tal como hoje somos, escrevemos.
Nunca me revejo naquilo que escrevi no passado. Leio e releio os textos e encontro sempre algo de que não gosto, ou algo que, muitas vezes, acho terrivelmente piroso, e este confronto com a falta de qualidade daquilo que escrevemos é duro. É quase alienante – releio os mesmos textos muitas vezes e é-me difícil acreditar que a pessoa que eu hoje sou escreveu aquilo há apenas três meses atrás, de modo que a minha identidade parece transfigurar-se numa espécie de alma penada que reside em palavras antigas que pus no papel e que agora voltam para me assombrar, vindas de algum lugar alheio a que eu, seguramente, não pertenço. E volto a lembrar-me do meu doce Bernardim: “de mim me sou feito alheio”.
Mas este lugar alheio é pura ilusão - ele existe, mas não é alheio. Este lugar alheio, onde escrevi textos tão maus que me envergonham, sou eu, é a minha casa. E por isso é que escrever é, por vezes, uma actividade tão dolorosa. O espelho mais revelador que podemos ter daquilo que somos. O confronto penoso com o eu como se fosse o outro, mas não é o outro, sou mesmo eu. Que confusão.
Tudo isto poderia fazer-me perguntar porque é que ainda tento escrever o que quer que seja, mas para isto o meu “eu”, ou talvez o “eu” que é o “outro” (simplifiquemos: “qualquer coisa de intermédio”) tem uma resposta: como o meu plano é endireitar a minha vida, estou à espera do dia em que vou olhar para o espelho e vou mesmo, mesmo gostar do que lá está, sem reservas de qualquer espécie.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O país do "você"

De toda a panóplia das formas de tratamento da língua portuguesa, o arraçado "você" é o que mais me intriga. Chamo-lhe arraçado porque não é carne nem peixe - começou como "Vossa Mercê", isto é, como forma nominal, e foi-se reduzindo até chegar a "você", que deverá ser um pronome. E quando deveremos usar esta interessante mistura de formas nominais e pronominais? "Nunca", diria eu, "sempre", diriam muitos. Hoje em dia, se não nos tratam por tu, tratam-nos por você, uma espécie de tratamento uniformizado que dá para tudo e todos, uma espécie de carapuça que serve a toda a gente. Pessoalmente, acho que as carapuças foram inventadas para cada um ter a sua e para haver tamanhos diferentes, portanto sou, desde logo, contra este uso indiscriminado do você.
No entanto, não deixa der ser algo cómico o uso muito próprio que alguns indivíduos dão a esta forma de tratamento. Ainda hoje ouvi numa loja: "vai ter de esperar um bocadinho, que eu agora não posso atender A VOCÊ". Precioso. Quando ouvi isto, comecei a padecer da doença dos cabelos em pé, de modo que tive de me ir embora.
Não sei o que é que as pessoas têm contra os respeitáveis "o senhor", "a senhora" ou "o menino" ou "a menina". São formas comuns, de alguma neutralidade, que não obrigam o falante a rebaixar-se, se é disso que as pessoas têm medo. Mas, por alguma razão, o degenerado "você" anda por aí nas bocas do mundo. Suponho que, para pessoas que já se conhecem, mas que ainda não são socialmente muito próximas, o "você" é aceitável. N'Os Maias, o seboso Dâmaso rebentava de orgulho porque Carlos lhe permitira o "você", e mais tarde até o arrojado tu:
Este dia pareceu belo a Dâmaso como se fosse feito de azul e ouro. Mas melhor ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco incomodado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes... Daí datava a sua intimidade: começou a tratar Carlos por você. Depois dessa semana revelou aptidões úteis. Foi despachar à Alfândega um caixote de roupa para Carlos. [...] Tanta dedicação merecia um tu de familiaridade. Carlos deu-lho.
Acontece que, muitas vezes, quando me tratam por "você", eu não conheço a pessoa de lado nenhum, não lhe ando a fazer recados nem espero que me ande a fazer recados a mim, nunca a vi mais gorda nem mais magra, de modo que o "você" é um bocadinho excessivo. Outra coisa, aliás, que me aborrece no "você" é que, além de ser arraçado, gosta de fingir que nos conhece bem, que já sabe dos nossos hábitos, e que dali ao "tu" vai ser um instantinho. Está mal, é aborrecido, é uma maçada. A língua, de facto, interfere muito com a nossa qualidade de vida.

Making of Eric, The Presbyter


Já escrevi aqui sobre as grandes potencialidades de Eurico, o Presbítero para se tornar num grande blockbuster americano e, movida pelo grande desejo de ver este projecto concretizado, tenho pensado em possíveis actores para fazerem de Eric, o que é, como se compreende, uma exigente tarefa. Cheguei à conclusão de que aqui o Gonçalo Waddington seria a escolha ideal - um Eric português, moreno como convém, com um ligeiro ar atormentado, e que com certeza sabe falar inglês, de modo que está preparadíssimo para ir para Hollywood. E é bom actor, o que também é importante.
Portanto: temos guião, temos actor principal, temos banda sonora; só falta alguém para representar o cobiçado papel de Hermengard (além do realizador, do produtor e de alguns investigadores) e pronto, o Eric está pronto para a sua estreia mundial. Piece of cake, pá.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Às vezes queremos mesmo escrever qualquer coisa e não conseguimos. Não sai mesmo nada. Não vale a pena. Todas as linhas que nos atrevemos a passar para o papel são de uma foleirice escandalosa.
Como ando a ler muito Pessoa, lembro-me de que seria bom que eu fosse tão interessante por fora como sou por dentro.

Tão cansada, tão cansada, tão cansada, as segundas-feiras são terríveis, as terças ainda pior, a coisa só melhora às quartas, tão cansada que...


A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto alguém.

Essas coisas todas -

Essas e o que faz falta nelas eternamente -;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.


Um supremíssimo cansaço.


Dá-lhe, Pessoa. Ensina qualquer coisa à vida, para ver se ela aprende a tratar-nos bem.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Mestres









Há muito tempo que queria ler estes dois álbuns e finalmente fi-lo de uma assentada este fim-de-semana.




Lindos, os dois. A dupla Manara/Pratt é uma espécie de Lennon/McCartney da BD, não é?

A mim parece-me que sim:

- Não quero que matem Phillis e Elijah. Do Abner não sei o que pensar, sempre foi louco... e os loucos são sagrados, porque pensam de olhos abertos.

- Tudo isto me parece um disparate!

- Sim, tens razão!...É uma loucura, mas temos de fazer de conta que é uma coisa muito séria...é uma velha tradição índia, respeitar os disparates!

"Estranjas"

Octávia e Marco António.
Catarina de Aragão e Henrique VIII.
Silvia Plath e Ted Hughes.
Bertha Manson e Mr Rochester.
Penélope e Ulisses.
Ariane e Teseu.
Medeia e Jasão.
O que estas mulheres têm em comum é fácil de perceber - todas elas foram abandonadas, de forma mais ou menos óbvia, pelos maridos (Penélope é talvez um caso à parte, pois o marido só queria voltar para casa e não o deixavam, mas enfim). Lembrei-me disto nem sei porquê, talvez por de vez em quando pensar no belo Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys, que resgata a figura da pobre Bertha Manson. Esta última, personagem de Jane Eyre, e antes da obra de Jean Rhys, resumira-se a um empecilho desnorteado impedindo a felicidade da frágil Jane com o seu bígamo Mr Rochester. Fechada no sótão por ser louca desvairada, a pobre Bertha não tem outro remédio senão tentar reclamar o marido, que agora se prepara para casar com a doce Jane, através de desvarios, grunhidos e actos piromaníacos. Em Wide Sargasso Sea, Jean Rhys dá a Bertha uma vida anterior ao casamento, uma personalidade, anseios e medos, isto é, faz-lhe justiça. Ao ler Jane Eyre (e li mesmo muitas vezes), nunca me lembrei da vida desta Bertha, sempre pensei que era uma doida parva a empatar o Mr Rochester e a fazer a minha pobre Jane infeliz, e foi preciso ler Wide Sargasso Sea para começar a olhar para o tal Mr Rochester com outros olhos e pensar que este, afinal, antes de ter pedido Jane em casamento, devia talvez ter-se lembrado de que já tinha outra mulher convenientemente trancada no sótão com as suas loucuras.
A história de Medeia, por seu lado, é a mais terrível, a mais insuperável, e provavelmente aquela com quem não se pode deixar de simpatizar, ainda que tenhamos imensa pena dos filhos sacrificados. No entanto, quem tem de aguentar não só o marido que a troca por uma princesazinha qualquer mais nova, como o exílio que lhe é imposto, como também ainda ouvir, do próprio Jasão, que muita sorte teve ela, Medeia, em ter casado com ele e ter ido morar para a Grécia, ela que era uma estrangeira bárbara vinda das profundezas do Terceiro Mundo, tem com certeza mais do que motivos para se indignar. Não admira que Medeia tenha dado em doida e exercido a sua vingança da forma mais retumbante possível, e não deixa de ser curioso este olhar reprovador e duro que recai sobre as mulheres como “seres estrangeiros” – Medeia e Bertha (crioula das Índias Ocidentais que segue o marido para Inglaterra), por exemplo, são duas estrangeiras que o pagaram caro. Cleópatra, que neste caso não foi abandonada, mas antes envolvida em grande tragédia por gostar de Marco António, também era constantemente vilipendiada em Roma por ser uma bruxa egípcia.
O que custa nas histórias destas mulheres abandonadas, principalmente aquelas da vida real, é o facto de ilustrarem a escassez de opções que assolou, durante séculos, as mulheres que permaneceram sós, repudiadas por um qualquer marido. E muitas delas, mesmo assim, enfrentavam as misérias e “davam a volta por cima”, para usar uma alegre expressão dos dias de hoje (como bem representa Hester Prynne de The Scarlet Letter, que até foi escrito por um homem). As suas histórias não deixam, porém, de impressionar. Catarina de Aragão fechou-se num convento e morreu para o mundo, e esta sim é que provavelmente se terá dado por felizarda ao ouvir dos destinos bem mais duros das outras esposas (e respectivos pescoços) de Henrique VIII. Octávia ficou a tratar dos filhos até morrer, e ainda por cima parece que um deles morreu e que lhe despedaçou o coração de vez (para ser sincera, li isto na Wikipedia, portanto tanto pode ser verdade como mentira). O caso de Silvia Plath é ainda mais cruel, quanto a mim. Também de coração estilhaçado ao ver-se abandonada por Ted Hughes, poeta que na altura aliava o sucesso literário ao sucesso entre as mulheres, Silvia Plath suicidou-se, mas o que aqui impressiona é que, neste caso, estamos a falar de alguém brilhante, inteligente, que escreveu uma poesia vigorosa, estranha, bela, e que era igualmente magnífica na prosa – a “Bíblia dos Sonhos”, colecção de contos de Silvia, é provavelmente o melhor livro de contos que já li, ou pelo menos aquele de que mais gosto. Uma pessoa que, ao que me parece, deveria ter muitas razões para viver. Mas os caminhos tortuosos da mente humana são, de facto, insondáveis.
E é isto, hoje deu-me para pensar sobre a condição feminina. Gosto de viver no século XXI, apesar de tudo o que ainda há para fazer relativamente à condição das mulheres no mundo, e gosto de saber que, se não tenho o talento de Silvia Plath, pelo menos tenho uma compensação, que é a de viver como quero (ou quase, aquele problema da assimetria...)

domingo, 16 de novembro de 2008

Seguindo esta sugestão, e ainda bem que o fiz, tive oportunidade de assistir a uma apresentação muito interessante de Patrícia Portela acerca dos seus dois livros e da forma como os livros também podem pertencer ao campo das artes perfomativas.
A "Odília ou a história das musas confusas do cérebro" interessou-me particularmente e vai ser uma das minhas leituras em breve. Trata de uma musa confusa, a tentar perceber o que fazer à vida e como inspirar os poetas. Patrícia Portela disse que o que a levou a escrever este livro foi a questão das "ideias". Como é que temos uma ideia? Como é que elas surgem? De manhã acordamos a pensar de uma forma, e à noite as coisas já são completamente diferentes porque tivemos uma ideia, ou mais do que uma, que de repente surgiu assim, do nada, talvez. O trabalho das musas concentra-se precisamente nos ecassos momentos antes de a ideia nos surgir, naquele fugaz intervalo de tempo em que não temos ainda a ideia e em que esta finalmente nos aparece no cérebro, um pouco como nos jogos de futebol:
"Para sermos mais precisos, ainda não estamos, mas estamos quase a estar. O que está para acontecer já aconteceu, mas como chegámos antes, tudo o que podemos fazer agora é esperar que aconteça.
Isto é, estamos num tempo com dois tempos, assim como,
como no futebol,

no futebol em directo, estamos à frente da televisão, e ouvimos: goooooooooooooooooolo! [uma página inteira com a palavra "golo" - este livro é mesmo giro]

Neste tempo entre dois tempos, as horas param.

Só as palavras se mexem.

E já me podem ler mas não me podiam ler ainda,

percebem?"

Também entra aqui Penélope, amiga de Odília, que decide escrever ao demorado Ulisses:

"Querido Ulisses,
Escrevo-te esta carta mas não quero que me respondas.
Volta.
Penélope"
Parece-me uma excelente carta para enviar a alguém como Ulisses.


sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Não bata mais no ceguinho, Tolstoi (ou por outra, na marrequinha)

A gente a querer ir de fim de semana, a gente a querer descansar o cansado cérebro, e ler, e ter estas palavras a ressoar na cabeça:

"A história passada da vida de Ivan Ilitch fora a mais simples e vulgar e por isso a mais horrível"


(pontos de exclamação, pontos de exclamação, pontos de exclamação, que eu detesto, mas que aqui são precisos)

Quer dizer, uma pessoa a querer endireitar-se, a precisar de força e de estímulo, e depois fica a pensar nisto. Vai ser tudo muito mais difícil do que eu pensava (e as minhas previsões já eram suficientemente pessimistas).

Quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita?


Foi preciso fazer a minha "avaliação" no ginásio para ver, finalmente, a minha intuição explicada. Sempre pensei que havia algo em mim que não estava bem, uma sensação qualquer de que algo não batia certo. Os professores do ginásio (ou PiTis, como se diz agora), após olharem para mim e me verem fazer aqueles exercícios parvos que temos de fazer, braços para cima, braços para baixo, cabeça contorcida, etc. e tal, disseram-me, "ó Rita, olhe que tem aí qualquer coisa torta". Hã? Devo ter mesmo muitas, pensei eu, mas eles continuaram: "Pois, agora não consigo ver se é a coluna, se é a anca, se é a perna, mas olhe que, aí, há qualquer coisa torta. Tem de ir ao ortopedista, porque isso não é má postura, isso é mesmo dos seus ossos, de certeza que vem desde pequena"

Ou seja: descobri nesse dia que nasci torta.Percebi finalmente o que se passa comigo. A intuição que tinha vinha, afinal, disto: sou assimétrica e torta e, à medida que envelheço, pelos vistos (e segundo o que me disseram também no ginásio), cada vez menos me endireito. E, realmente, desde pequena que me parecia que a assimetria dominava a minha vida. Esta (a minha vida) sim, sempre teve algo de cubista, as coisas desencontradas, as perspectivas que não batiam certo, os ângulos agudos. Daí ter sempre percebido o querido Cesário, que odiava ângulos agudos, e bem. Daí ter deixado aqui a capa desta BD de que gostei tanto, da pobre menina inclinada, que se a tentassem endireitar caía e ainda era pior. Ou seja: não havia remédio.

Será que para mim também não há remédio? Como sou torta, a minha visão é diagonal e assimétrica, não consigo ver as coisas direitas, a minha perspectiva vê tudo ao contrário, ou com uma ligeira inclinação, à semelhança da Torre de Pizza, o que causa graves problemas quando temos uma vida para viver no mundo real. Tenho dificuldade em perceber tudo, penso que as coisas são de uma forma e afinal são de outra. É um martírio. Será assim até morrer?

Na esperança (que espero não ser vã), de que para mim ainda haja remédio, decidi que hei-de ir ao ortopedista e pedir "sôtor, endireite-me, que eu quero endireitar a minha vida".

Hei-de endireitar-me, hei-de endireitar-me, passar a ver tudo direitinho, clarinho, que beleza...

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Bernardim aos molhos

E, a propósito ou não, o poema completo do doce Bernardim, que aqui deixo por ser bonito e por fazer pensar, pensar, pensar até a cabeça doer...:

Antre mim mesmo e mim
não sei que s'alevantou,
que tão meu imigo sou.

Uns tempos com grand'engano
vivi eu mesmo comigo,
agora no mor perigo
se me descobre o mor dano.
Caro custa um desengano,
e pois m'e não matou
quão caro que me custou

De mim me sou feito alheio
antr'o cuidado e cuidado
está um mal derramado,
que por mal grande me veio
Nova dor, novo receio
foi este que me tomou
assi me tem, assi estou.

Tu é que me compreendes, Bernardim.

Anita vai à Fnac


Numa bela tarde de Inverno, Anita e sua amiga Alexandra decidiram ir à Fnac do Chiado. A Fnac tem muitos livros, e muita literatura, e portanto Anita e Alexandra quiseram ir a esta livraria para comprar livros edificantes que as tornassem boas cidadãs, porque: os livros são os nossos melhores amigos.

Quando chegaram à Fnac, tiveram muita dificuldade em escolher o que comprar para poder ler em casa, porque a oferta era muita, e toda de grande qualidade. Optaram por começar a perscrutar os livros sob a égide "literatura traduzida".

- Alexandra, como vamos decidir o que levar para ler no meio de tantos livros bons?! - perguntou Anita, perplexa. Ao que Alexandra respondeu que o melhor era começar a ler as contracapas para terem uma ideia. O primeiro que vislumbraram chamava-se "As Asas do Amor", da editora Ulisseia, escrito por um senhor chamado Nicholas Drayson, e tinha uma crítica de um leitor, o senhor Richard Fortey, que dizia que o livro era "um livro que aquece, com um sabor doce único. Fiquei encantado". Alexandra e Anita ficaram muito impressionadas com isto, porque o senhor Richard Fortey tinha gostado tanto do livro que até se dera ao trabalho de o descrever com uma elaborada técnica literária, a da sinestesia, em que os sentidos se misturam, e portanto o livro, além de aquecer, também tinha sabor. "O senhor Fortey também deve ser um grande leitor de Cesário Verde", pensou Anita. "Hmmmm.... com leitores deste gabarito, este deve ser um bom livro de certeza". E colocou de imediato "As Asas do Amor" no cestinho das compras.

A obra que viram a seguir era da Kristina, da Celeste e da Juliana, três irmãs sem apelido e com a fotografia na contracapa para manter o anonimato, porque o livro que haviam escrito, "Unidas pela Dor", era muito chocante e íntimo. As três irmãzinhas contavam a sua história verídica e tinham sido violadas muitas vezes, possivelmente umas dez vezes ou mais, e Anita e Alexandra ficaram com muita pena. Decidiram que um livro tão sincero como aquele, que partilha com os leitores a dura realidade do mundo, deveria ser lido. Anita e Alexandra até consideraram que toda a gente devia ler aquele livro para saber mais sobre as dores do mundo, mas não viram mais ninguém a comprá-lo, o que atribuíram ao mundo cruel e egoísta em que hoje vivemos, em que ninguém quer saber de ninguém. O livro seguinte, "O Menino de Cabul", também era baseado numa história verídica, e contava com um lindo papagaio de papel na capa, mas este as duas amigas decidiram não comprar porque era menos realista, só tinha uma violação, e não muitas. Era um livro mais suave e, como leitoras, Anita e Alexandra viam-se na obrigação de ler livros mais pesados para saber mais sobre o mundo.

O livro que seguidamente colocaram no cestinho das compras parecia também excelente, era de uma senhora chamada Anita Shreve, publicado pela Asa e tratava da infelicidade da viuvez. A protagonista era casada com um piloto, mas, permanentemente aterrorizada pela ideia de o marido poder ter um acidente e morrer, divorcia-se dele e casa pela segunda vez com um médico, só que este último é que acaba por morrer, e então a protagonista fica sozinha de vez e tem de provar ao mundo como é ser mulher e recomeçar tudo do zero. Anita e Alexandra pensaram que aquele livro era uma grande lição de vida.

As duas amigas viram mais, muito mais, livros irresistíveis nessa tarde, mas decidiram só comprar estes, porque já tinham leitura que lhes chegasse e sobrasse. Gastaram algum dinheiro, mas saíram da Fnac muito edificadas, porque sabiam que os livros eram os seus melhores amigos. Amiguinhos, não se esqueçam disto.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Nota mental: não apaixonar por Corto Maltese


- Olha, Corto, eu agora tenho de ir para a faculdade, mas depois quando voltar podíamos ir jantar fora.

- ...

- Não queres?

- ...

- Então? Estás mal disposto? Queres ficar em casa?

- É que...

- Diz.

- É que... o mar...

- O que é que tem o mar? Queres ir ali a Santa Cruz, é isso?

- Não, é que... olha, não és tu, sou eu.

- (Pronto. Bonito)

- O mar... eu... tu quando me conheceste já sabias. Eu sou marinheiro. Eu vivo a viajar, a perder países. Uma aventura em cada porto. Não vai dar. Tenho de ir.

- Então ... e .... e o resto... e tudo...

- Então mas e tudo o quê? Também, isto só dura há um mês. Olha que um mês já é muito para mim, tu sabias perfeitamente quando me conheceste.

- Ó pá, para lá com isso, "sabias perfeitamente, sabias perfeitamente", que estupidez!

- Tu é que és estúpida.

- Não, tu é que és, aliás, sabes o que é que tu és? És mas é um grande estúpido.

-Não, tu é que és.

- Não, tu é que és.

- Não, tu é que és.

- Não, tu é que és.


Já nem sei quem é que está a falar (devo ser eu, convém que a última palavra seja minha). Adoro Corto Maltese. É aventureiro, inteligente, bonito, está sempre do lado certo da História, toma o partido dos indefesos e dos rebeldes. Adoro o traço firme, carregado, cinematográfico de Hugo Pratt.

Mas ainda bem que nunca me apaixonei por Corto Maltese.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Pochlosta

(Pensando sobre o post do Lourenço)

Assim à partida, a pensar alto, diria que o pochlost tem muito que se lhe diga.
Ultimamente, tenho-me interessado por aquele pochlost que, tendo a forma e conteúdo de pochlost, acaba por não o ser verdadeiramente, ou por outra – é-o, mas encerra também em si a sua própria redenção.
Explico-me melhor. Recentemente, tive não uma, mas duas amigas que olharam para mim com esgares de nojo, reacção que nunca tinha antes provocado em nenhum dos meus amigos (e, esperançosamente, em nenhum ser humano, mas quanto a isto nunca se sabe). Uma das amigas teve esta reacção desagradável por eu lhe ter dito que gostava muito de ouvir o November Rain dos Guns’N’Roses. Outra querida amiga (que permanece uma grande amiga, felizmente), além do esgar de nojo, revirou os olhos e exclamou “o quê?!...ai meu Deus” (e este “ai meu Deus” proferido quase num murmúrio, como normalmente fazemos para indicar que está tudo perdido e nada resta senão desprezo), e tudo isto porque lhe disse que gostava muito do Pó de Arroz do Carlos Paião. E pergunta-me ela, ainda com levíssima esperança de salvação: “mas gostas só desta canção, ou gostas de outras dele?”. Ao que eu respondo que gosto de outras, da Cinderela, do Playback, deste modo conseguindo vários “meu Deus” cada vez mais murmurados. Se elas soubessem o mais encerra o meu ipod tinham, então, um verdadeiro ataque, mas a culpa não é minha – peço desculpa, mas melhor do que Kylie Minogue e Madonna para combater o tédio das passadeiras e bicicletas do ginásio não há; se houver, alguém por favor que me informe.
Admito perfeitamente que November Rain e Pó de Arroz sejam pochlost. Mas são pochlost bom, se é que isto existe. Na minha opinião, parece-me que pode existir. Há certas coisas que são, sem dúvida nenhuma, “falsamente atraentes” e, pior, “falsamente inteligentes”, que é, quanto a mim, o mais hediondo crime, ainda por cima ampliado por, normalmente, as pessoas irem atrás destas coisas verdadeiramente “malignas” sem perceberem a malvadez, a torpeza da falsa inteligência ou da falsa emoção. Os escritores da chamada Geração X, as pobrezas de espírito de Richard Bach ou Nicholas Sparks, por exemplo, que depois dão filmes ainda mais insuportáveis (filmes que eu nunca vi, nem nunca hei de ver, e que, contrariamente ao que se costuma dizer, sei muito bem que não preciso de ver para saber que não prestam) – e isto é apresentado como um “elevado nível de arte”, “o valor mais alto da emoção”. E há mais exemplos - a música que ouvimos 10 vezes (Kylie, Madonna) e de que depois nos fartamos, porque não há ali nada que dê para mais, ao contrário dos Beatles, do Tom Waits, do Leonard Cohen, por exemplo, que ouvimos 20 vezes e há sempre coisas novas a descobrir; os livros que nos encantam quando lemos pela primeira vez e que se esboroam à segunda leitura, porque afinal não estão assim tão bem escritos, porque afinal não têm nenhuma verdade que nos mude a vida, como por exemplo (na minha experiência pessoal), Isabel Allende e quejandos (o realismo fantástico sul americano já não me atrai, aconteceu, o coração muda, é mesmo assim); os filmes que nos sentimos na obrigação de gostar, ou que à partida até gostamos, mas que depois percebemos que o que oferecem não é mais do que uma pretensão desmedida que arruína tudo, como por exemplo (lamento muito, mas vou voltar a insistir neste ponto, ainda por cima sendo este um exemplo perfeito do filme aparentemente “profundo e belo” “lambido todo pela crítica, pelo público”) “Aquele querido mês de Agosto”, etc., etc.
Há, no entanto, no meio deste pochlost todo, algumas coisas que se salvam. Não deixam de ser falsamente atraentes (embora tenham o mérito de não tentar ser inteligentes, e portanto não são falsamente inteligentes porque pura e simplesmente não são inteligentes), mas há nestas coisas algum rasgo que qualidade, de originalidade, que as redime. Não consigo pôr o dedo na ferida e indicar o que é, exactamente, que redime estas coisas, mas algo como November Rain e Pó de Arroz têm-no, quanto a mim. Talvez seja o valor sentimental, a reminiscência da infância e da adolescência, partilhados por toda uma geração, que salva este pochlost menos mau. É o tal “pochlost” benigno. Ou talvez não. Existirá pochlost benigno? Existirá pochlost inofensivo, como eu penso que o November Rain e o Pó de Arroz são?
Talvez a “pochlosta” seja eu e tenha agora mesmo acabado de me desmascarar.

Wil-ly escrevia só para mim (2)

Já que estamos a falar de Shakespeare, vou aqui deixar outra coisa que o grande William também escreveu, obviamente, só para mim, mas que considero imperativo partilhar.

Discurso de Marco António após a morte de César, em Julius Caesar,acto III, cena 2:

Friends, Romans, countrymen, lend me your ears;
I come to bury Caesar, not to praise him.
The evil that men do lives after them;
The good is oft interred with their bones;
So let it be with Ceasar. The noble Brutus
Hath told you Caesar was ambitious:
If it were so, it was a grievous fault,
And grievoulsy hath Caesar answer'd it.
Here, under leave of Brutus and the rest -
For Brutus is an honourable man;
So are they all, all honourable men -
Come I to speak in Caesar's funeral,
He was my friend, faithful and just to me:
But Brutus says he was ambitious;
And Brutus is an honourable man.
He hath brought many captives home to Rome,
Whose ransoms did the general coffers fill:
Did this in Caesar seem ambitious?
When that the poor have cried, Caesar hath wept:
Ambition should be made of sterner stuff:
Yet Brutus says he was ambitious
And Brutus is an honourable man.
You all did see that on the Lupercal
I thrice presented him a kingly crown,
Which he did thrice refused: was this ambition?
Yet Brutus says he was ambitious;
And, sure, he is an honourable man.
I speak not to disprove what Brutus spoke,
But here I am to speak what I do know.
You all did love him once, not without cause:
What cause withholds you then, to mourn for him?
O judgement! thou art fled to brutish beasts,
And men have lost their reason. Bear with me;
My heart is in the coffin there with Caesar,
And I must pause till it come back to me.

(... pausa também do leitor, para absover tanta beleza e para recuperar o coração, que perdeu por solidariedade a Marco António)

Agora sim: políticos deste país, é pôr aqui os olhos. É pôr aqui os olhos. Queriam vocês. Nem o "Yes we can" se compara. E foi tudo escrito para mim.

Escrevia só para mim, uma peça sem fim e eu olhava, olhava... Willy escrevia só para mim




Não consigo conceber a profundidade do talento de certas pessoas por achar que é algo brilhante demais, algo que a minha vã filosofia não alcança. Consido apreciar, mas não conceber.

Pessoas como, precisamente, Shakespeare. Alguns tentam inventar (uso, efectivamente, este termo porque tudo indica que se tratam de invenções) teorias acerca da “verdadeira” identidade de Shakespeare, sendo que Sir Francis Bacon e Elizabeth I são as mais populares. Talvez seja complicado para algumas pessoas perceber como é que um provinciano pouco viajado e sem educação esmerada (Shakespeare frequentou o ensino público isabelino comum à maior parte dos pequenos burgueses da altura e ficou-se por aí, o que aliás diz bastante da qualidade do ensino na Inglaterra quinhentista) conseguiu pensar e escrever a verdade da natureza humana, ainda por cima revelando o esplendor da língua inglesa como só um verdadeiro génio linguístico conseguiria. No entanto, Shakespeare, provinciano, pouco viajado, sem educação esmerada, fê-lo. De onde é que lhe viriam as ideias? Como é que percebia tão bem as pessoas? - o pobre Macbeth, um Raskolnikov avant la lettre, angustiado, duramente vergado sob o peso das suas acções, o asqueroso Richard III, as imperfeitas personagens de Medida por Medida, todas elas equivocadas, todas elas nem totalmente boas nem totalmente más, todas elas humanas. Medida por Medida é, aliás, das peças que já li, a que gosto mais talvez por isso, pela imperfeição tão humana das personagens. Há um pequeno excerto na peça de que gosto muito, e que me parece condensar a verdadeira humanidade das personagens (pessoas) criadas por Shakespeare. O irmão de Isabella, Claudio, foi condenado à morte por “ante-nuptial fornication”, o que, até para a altura, era um castigo claramente excessivo. Isabella vai falar com o governador da cidade, o sóbrio e severo Angelo, que, demonstrando toda a sua profunda reverência à lei, informa Isabella que esta dormirá com ele ou, em alternativa, verá o seu irmão morrer. A pobre Isabella, que ainda por cima se prepara para entrar para o convento, recusa de imediato, indignada, e comunica ao irmão que este, infelizmente, terá de se preparar para a fatalidade do confronto final com o Criador. Ao invés de demonstrar grande nobreza, coragem e elevação de carácter, Claudio reage como qualquer homem às portas da morte reagiria – com medo. E argumenta:
If it were damnable, he (Angelo) being so wise, why would he for the momentary trick be perdurably fined? O Isabel –
Ao que Isabella, mal acreditando no que ouve, retorque:
What says my brother?
E é agora que Claudio se limita a responder, de forma simples e breve:
Death is a fearful thing.
Está aqui tudo dito. Claudio é um homem que vai morrer e que não olhará a meios para salvar a vida porque o medo da morte é mais forte do que a honra, a bravura, a dignidade. Se a sua sobrevivência depender de a irmã prescindir da sua bem resguardada pureza, então seja. Este death is a fearful thing encantou-me desde a primeira leitura por o ter achado, desde logo, tão surpreendentemente humano. Será talvez apenas um pormenor em Medida por Medida, e certamente em toda a vasta obra de Shakespeare, mas para mim é um grande traço de humanidade, é a literatura que retrata verdadeiramente pessoas, não personagens.
Assim, a grandeza desmedida de Shakespeare é algo que tenho dificuldade em conceber. É algo que me faz ler as suas peças e ficar de boca aberta a pensar como foi possível, o que aliás, não é nada de novo. Sou eu e o resto do mundo.
Por isso é que há textos que resistem ao tempo e outros que sucumbem. Os que resistem parecem sempre novos, e dão-nos sempre a sensação de sermos os primeiros a descobri-los, ainda que saibamos que há milhares de pessoas que pensaram o mesmo, ou quase o mesmo, quando os leram.
Death is a fearful thing – gosto de pensar que fui eu, e apenas eu, com a ajuda de Shakespeare, que evidentemente a escreveu só para mim, a descobrir o segredo desta frase.

sábado, 8 de novembro de 2008

De mim me sou feito alheio

O que é que quer dizer “ser de algum lado”? Quando me perguntam de onde sou, tenho imensa dificuldade em responder. Devo responder que vivo na cidade x? É que a cidade onde vivo não é, quanto a mim, o sítio de onde sou, porque não nasci lá (aqui), não vivi lá (aqui) em pequena e a maior parte das pessoas que lá (aqui) vivem são apenas pessoas com quem divido o pedaço de terra por onde caminho, não são meus amigos, e mesmo que sejam – “meus amigos são por serem meus amigos, e mais nada”, como dizia Jorge de Sena, não por viverem geograficamente próximos de mim. Tudo isto contribui para que me sinta, com algum pesar, uma forasteira em todo o lado, e também para que perceba, mais do que nunca, o grande Variações com o seu “só estou bem onde não estou”. Dizem-me que toda a gente passa pelo mesmo em certas alturas da vida. Esta é daquelas alturas. A culpa é toda da idade, que me faz envelhecer e pensar demais.
Assim, se me perguntam de onde sou, devo responder, então, que sou da cidade onde nasci? É que a cidade onde nasci já não é de onde eu sou porque já não vivo lá, não vivo lá há mesmo muitos anos, não tenho amigos nem vizinhos nem uma cara vagamente conhecida a quem dirigir um cumprimento seguido de meio sorriso, lá. Tenho família na cidade onde nasci, é certo, mas família tenho em tantos sítios diferentes que ter ou não ter familiares em determinada localidade não pode, com certeza, ser critério para determinar de onde somos. Além disso, “meus familiares são por serem meus familiares, e mais nada”.
Devo dizer que sou do sítio onde trabalho e onde acabo por passar a maior parte dos meus dias? Não, porque se é certo que a minha presença física é exigida em determinada localidade, não é aí que vive o meu espírito nem é aí que eu gosto de estar. Não é daí que eu sou.
De onde sou, então?!
Talvez as pessoas não precisem de ser de um sítio em particular. Sempre que leio Fernando Pessoa, detenho-me num poema em particular: “viajar, perder países, ser outro constantemente, por a alma não ter raízes…”.Uma alma sem raízes não tem lugar. Um lugar físico, uma aldeia, uma vila, uma cidade, quero dizer. Mas uma alma sem raízes, mesmo sem lugar, é de algum lado. É talvez daquilo que gosta, daquilo que a faz continuar, seja lá o que isto quer dizer.
É de poemas como este, de Fernando Pessoa. É de Bernardim Ribeiro: “entre mim mesmo e mim, não sei o que se alevantou…”
És tu e eu, Bernardim, se te posso tratar por tu (“é o Bernardim, nós chamamos-lhe assim” – havia uns desenhos animados com esta canção, só que o nome do pequeno herói era Robin, não Bernardim; no entanto, prefiro “Bernardim”, porque é um nome muito musical e presta-se a qualquer lenga-lenga: “Bernardim, Bernardim aos molhos, por causa de ti, choram os meus olhos; ai Bernardim, quem te disse a ti que a flor do monte era o alecrim!”, e por aí fora; é mesmo um nome muito musical e alegre, ainda que Bernardim Ribeiro não tenha escrito coisas muito alegres – escreveu-as belíssimas, é o que interessa). Compreendo-te muito bem, Bernardim. Às vezes, a nossa vida não parece bem que é a nossa, não é, Bernardim? Parece de outra pessoa, não é, Bernardim? Já não tenho mais frases em que se justifique usar o teu nome, Bernardim, para grande pena minha, Bernardim, mas se alguém me compreende és tu, Bernardim.
Concluindo (e convém que, a bem da coesão textual, se proceda aqui a uma pequena conclusão): não sou de lugar nenhum, e talvez por isso seja bom contar com o apoio de poemas como o que deu título a este post e que foi escrito pelo doce Bernardim Ribeiro (que provavelmente também não era de lugar nenhum; aliás, muitos dizem que ele nem sequer existiu, que era apenas um alter-ego de Sá de Miranda, o que é situação bem mais grave; entre sentir que não se é de lado nenhum e pura e simplesmente não existir, sempre prefiro a primeira).

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Quando eu morrer

A morte que eu acho mais espectacular é a do Hegel. Não devido ao facto de ter morrido, mas sim devido à forma como morreu. Reza a história que, no leito da morte, alguém terá informado Hegel de que, pelos vistos, a realidade não era bem, bem como ele a tinha descrito e pensado. A isto, replica Hegel: «pior para a realidade».
Quanto a mim, não há nada que supere uma frase destas no leito da morte (e, pensando bem, fora dele muito provavelmente também não).
Uma professora minha, muito dada a sentenças pouco interessantes, informou a turma inteira da sua opinião relativamente à morte de William Blake, dizendo que não concebia melhor maneira de morrer do que estar na cama a trabalhar e de repente fechar os olhos (pelos vistos, foi assim que Blake morreu, segundo a tal professora). Provavelmente, “trabalhar” quereria dizer, no vocabulário muito pouco imaginativo e definitivamente pouco sonhador desta professora, “fazer poemas e desenhar”, que era o que Blake fazia ao produzir os seus belíssimos livros iluminados. Blake morreu a criar, diria eu, não propriamente a “trabalhar”, mas enfim, há que ser solidário para com as limitações semânticas das pessoas. Se é verdade que vislumbro algum encanto nesta morte, continuo a afirmar que não supera a morte de Hegel. A morte de Hegel consegue ser muito melhor, porque fundamentalmente este filósofo disse à realidade que não queria saber dela para nada e que o seu sistema filosófico, a sua criação intelectual sólida, circular e inexpugnável, era superior e autónoma. Há que admirar a confiança demonstrada por Hegel na sua própria criação intelectual. Eu, pelo menos, admiro, porque se é certo que a última palavra foi da realidade (afinal de contas, Hegel acabou mesmo por morrer), o Hegel, pelo menos, não se curvou sob o peso terrível das coisas que não podemos mudar.
Quando crescer, quero morrer como o Hegel.

Romances ingleses que davam grandes filmes portugueses: O Monte dos Vendavais


INT. Sala escura, pouca mobília (mesa, cadeiras). Grande lareira, junto da qual se senta Catarina, uma jovem rapariga, a ler um pesado livro pousado nos joelhos. Tem uma manta sobre os ombros. À porta da sala está um rapaz espadaúdo e imóvel, Heathcliff, que a olha intensamente durante um perído de tempo considerável (40 minutos) Ouve-se o assustador som do vento forte lá fora, numa quinta, perto do Porto.

HEATHCLIFF: Olha, Cati, já te disse montes de vezes pa nã te casares. Já te disse montes de vezes qu'era pa ficares aqui. Nã percebo porqu'é que tu nunca m'ouves.

(Catarina levanta os olhos do livro pela primeira e vez e olha fixamente para Heathcliff. O seu olhar é decidido, e olha-o directamente nos olhos, como pessoa dinâmica que é, não por muito tempo, apenas 20 minutos)

CATARINA: Primeiro, agradecia imensamente que não me tratasse por Cati. Chamo-me Catarina, sabe perfeitamente. E também sabe perfeitamente que eu apreciaria imensamente ficar aqui consigo, quem sabe até casar. Apreciaria imenso. Mas a vida é complicada, Heathcliff, nem sempre conseguimos aquilo que queremos, percebe?

HEATHCLIFF: Ó pá, tu tamém, com essa mania das coisas, pá, mas vais-te casar pa quê, se tu nem gostas dele nem nada, tamém não te percebo, a sério que tu às vezes pá...tu gostas mazé de mim, tás p'aí com coisas, tu tamém.

CATARINA: Sim. É verdade, tem toda a razão, Heathcliff.
(grande plano: Catarina olha a lareira e os seus olhos brilhantes reflectem as chamas. Vemos uma única lágrima rolar cara abaixo)
Vou-me casar e nem sequer gosto dele.
(grande plano: Catarina olha o horizonte imaginário. 50 minutos de silêncio intenso)
HEATHCLIFF: Atão mas... afinal, com'é que é. Ficas ou vais? Fica, faxavor, deixa lá de ser esquisita. Gosto de ti, porra. Fica, Cati...

CATARINA: Ó Heathcliff, ouça, querido... eu também gosto imensamente de si. Aliás, o meu amor pelo Edgar é como a folhagem dos bosques, efémero, ao passo que o meu amor por si até é como as rochas por baixo das raízes das árvores e tudo, percebe, tipo imutável. Eu sei que somos um só. Mas, ouça... é que não vai dar, percebe. Agora já está tudo combinadíssimo com o Edgar, já tá tudo preparadíssimo, a festa e tal, imensa gente do Porto convidada... Mas eu vou amá-lo até morrer, ok, Heathcliff? É que, literalmente, vou amá-lo até morrer, porque eu não amo o Edgar. De todo.

HEATHCLIFF: Tás-me sempre a dar tanga, Cati.

(silêncio de grande intensidade dramática. Heahtcliff e Catarina olham-se ininterruptamente durante 60 minutos, expressando de uma forma contida o profundo afecto que os une)

CATARINA: Catarina, querido.

(Heathcliff volta a olhar Catarina brevemente, durante 20 minutos. No seu olhar há dor ao perceber que Catarina, no fundo, não tem coragem para suplantar o grande fosso entre as suas diferentes classes sociais)

HEATHCLIFF: É pá, pronto, tudo bem, Catarina, pronto, tamém quero lá saber. Olha, queres casar c'o outro, né? Então força, mas depois se correr tudo mal nã venhas p'aqui chorar, qu'eu tou-te já a avisar. Se sais desta casa é pa sempre, tás ouvir, Cati?!
CORTA PARA: Catarina novamente sentada, retomando a leitura do pesado livro. Heathcliff à porta da sala, voltando a contemplá-la durante 120 minutos.

Gosto verdadeiramente de cinema português, a sério.É como diz o Herman a fazer de Nelo, "os verdes muito verdes, os vermelhos muito vermelhos, aquilo parece que sai". Pois parece.

A sério que gosto de cinema português. Este post é brincadeirinha carinhosa.

In just seven days, I can make you a man, ou: androginia

Infelizmente, a sua figura repugnante ainda está na minha memória…não era homem nem mulher, mas era tão frágil que odiava os fortes, fossem homens, sacerdotes ou deuses. Criou um deus à sua semelhança, insignificante e efeminado, e fez dele pai e mãe ao mesmo tempo, dando-lhe uma única função: o amor. Este foi o Herege, o que se fez chamar Akhenaton
Naguib Mahfouz, Akhenaton, o Rei Herege

Como se vê aqui pela fotografia, as incomensuráveis e magníficas estátuas de Akhenaton que podemos apreciar no Museu do Cairo são tudo menos repugnantes. A face do Faraó mantém aquele meio sorriso enigmático, comum à forma como todos os Faraós do Egipto foram normalmente representados, mas difere destes últimos pelos lábios grossos e a cara notoriamente afilada. Nas mãos, cruzadas sobre o peito, segura os costumeiros ceptros, mas o ventre e as ancas, ao contrário dos firmes traços masculinos dos Faraós anteriores (e dos que se seguiram) são rotundos, protuberantes, roliços até, como os de uma jovem mulher em idade fértil. Esteticamente (e não só), o reinado de Akhenaton foi uma revolução, ou uma heresia, ou um atraso, dependendo das perspectivas, devido a esta fusão inaudita do masculino e do feminino, e do novo resultado que isso trazia na representação do Faraó (e, pelos vistos, no governo da nação também). Esta foi a demonstração mais óbvia que tive dos resultados esteticamente tão interessantes que a androginia pode ter.
Ao ouvir a “Lola” dos Kinks voltei a pensar nesta questão da androginia. A Lola parece mesmo ser daquelas mulheres muito macho, ou então um travesti. E o senhor que canta a canção gosta da Lola talvez por não ser, nas suas próprias palavras, o homem mais masculino do mundo. Talvez algo semelhante à inesquecível figura enleada de Tim Curry no Rocky Horror Picture Show, nitidamente um homem mas carregado de maquilhagem berrante e a pavonear-se em corpete, meias de liga e umas pernas do tamanho do mundo, elegantemente alcandoradas em garridos saltos vertiginosos:


Absolutamente deslumbrante em todo o seu esplendor de baton, rímel, plumas e restantes atavios. A maquilhagem fica melhor a um jovem Tim Curry do que a muitas mulheres. Aliás, e como já pude constatar, qualquer exibição do Rocky Horror Picture Show ainda leva as pessoas em alegre grupos ao cinema, sendo de tradição que os homens se vestem de mulher. Pelo que observei, todos estes homens são muito machos na sua vida normal, mas, na noite em que vão ver este filme em particular, despem-se de todas as inibições e é vê-los de unhas pintadas e meias de ligas a exibir as pernaças, um pouco como no Carnaval de Torres Vedras, mas mais composto. Tenho um amigo que diz que, no fundo no fundo, as mulheres são todas umas lésbicas e que adoram homens andróginos, com ar de gaja. Se isto é verdade, é também verdade que os homens adoram qualquer desculpa para se vestirem à gaja da cabeça aos pés e a preceito, muitas vezes com mais pormenores até do que uma verdadeira mulher.

Ao ler o livro de Mafhouz, percebemos que Akhenaton era efeminado porque, ao invés da guerra, preferia o amor. Qualquer semelhança com Jesus Cristo não é, como parece claro, pura coincidência. Já Vénus era a deusa do amor e Marte o deus da guerra. No entanto, juntar tudo num só, como Akhenaton, e se possível com a exuberância irrepreensível de Tim Curry, resulta e bem.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Romances portugueses que davam grandes filmes americanos: Eric, The Presbyter

Tagline: They took away his country. They took away his love. Now he's back... to take away their lives.

EXTERIOR. Mountainous region. Twilight.

(The screen shows the whole length of the landscape. On top of a mountain stands a knight dressed in black on a black horse. He is silent. There is noise coming from belligerant hords looking up at him. The camera moves slowly over the black knight to show the hords led by Arab king Tariq)

TARIQ - Yoh, Eric. Give it up, man. Just give it up. You know I don't wanna hurt you. I don't wanna, you're a good warrior. You're the best. Join me while you still can.
(camera zooms on Eric. He is silent. His look is stern and cold)

Are you listening to what I'm telling you, Eric? What the fuck is your problem, man? Can't you see the men I've got here with me? Do you think you can take them on? Alone? On your own? You're good, but I know and you know you're not that good. Join me now and we'll get your woman, man, I'll help you. She's being held in a convent, I've checked it out. Piece of cake. I'll have my way with the ladies of the cloth and you get your woman back.

(camera zooms on Eric again. This time he speaks. His voice is deep and angered)

ERIC - Tariq, I've begged you to go away and leave this region in peace. I've asked you nicely. I have tried in every way to spare your life and the lives of your men. I have tried to make you respect my country. But when you open your filthy mouth to talk about Hermengard (camera zooms on Eric's left hand - he draws his sword with a swift, strong movement) ... that's where I draw the line.

CUT TO: war field. Eric stands alone, on his horse, his clothes dripping with blood. Around him lie dead, slaughtered corpses.

Tudo isto com banda sonora a valer ("Saudade" dos Heróis do Mar - em alternativa versão Ritual Tejo - para as cenas lamechas para dar um toque português à coisa, "Requiem for a Dream", versão Kronos Quartet e não Senhor dos Anéis para dar um tom épico de bom gosto) e um guião com a mesma qualidade deste excerto que eu aqui deixei, que, como me parece óbvio, é de facto de extrema qualidade. Grande filme que dava o Eurico.

Teste: Que Álbum dos Beatles é Você?

Num diálogo de Pulp Fiction que acabou por não ser incluído no filme, as pessoas eram divididas entre "pessoas de Elvis" e "pessoas de Beatles", da mesma forma que se fala de "pessoas que gostam de cães" e "pessoas que gostam de gatos". Eu, apesar de apreciar bastante o Rei, sou definitivamente uma pessoa de Beatles, que, por mais música que ouça, nunca consigo deixar de considerar a banda das bandas, os melhores dos melhores.
Depois de termos determinado se somos pessoas Elvis ou pessoas Beatles, há ainda a grande questão de escolher um determinado álbum da banda como favorito ou, indo até mais longe, como aquele que se considera "o melhor". Assim, temos as pessoas Sgt Pepper's, as pessoas Abbey Road ou as pessoas White Album, porque normalmente é num destes três (ou talvez até em todos os três) que as escolhas recaiem. É raríssimo, senão até inaudito, depararmo-nos com uma pessoa Let It Be, uma pessoa Rubber Soul ou até uma pessoa Revolver (álbum que, aliás, e na minha humilde opinião, merece estar na lista dos candidatos a melhor álbum dos Beatles, a começar logo pela capa); quanto a alguém Please Please Me, ou a um indivíduo Beatles for Sale ou até a fulano Hard Day's Night, isso então penso ser impossível de encontrar. Quanto mais se recua na discografia dos Beatles, mais as pessoas se coíbem de encontrar álbuns favoritos ou até músicas preferidas, porque canções simples, bonitas e que cumprem exemplarmente o seu objectivo (um Love Me Do, um And I Love Her, um All My Loving, por exemplo) são vistas como a antecipação da grandeza dos Beatles, e não como a própria grandeza.
Talvez haja aqui alguma razão. Os discos que, de facto, acabo por ouvir mais são, invariavelmente, de Rubbber Soul (inclusive) para a frente, esquecendo injustamente Hard Day's Night, lançado no mesmo ano, 1965, e o primeiro que é inteiramente composto pelos Beatles, sem espaço para covers das músicas populares dos anos 50 que figuravam nos primeiros álbuns. Mas, de facto, a diferença entre Hard Day's Night e Rubber Soul é já notória. O verdadeiro salto qualitativo, a grande diferença entres os grandes Beatles e os Beatles magníficos detecta-se aqui. A diferença entre os discos de 66 (Revolver) e 67 (Magical Mystery Tour, Sgt Pepper's) é alguma, mas não tão abissal, julgo eu, e isto porque, como já disse, Revolver é um disco soberbo. Os Beatles deixaram de dar concertos nesse ano, já que assim como assim as pessoas não iam para os ouvir mas sim para os ver e desmaiar de excitação, e portanto puderam aventurar-se pelos caminhos musicais que entenderam, experimentando o que lhes apetecia sem ter de pensar em como transpor a sofisticação musical do disco de estúdio para o concerto ao vivo. Talvez por isso possamos encontrar em Revolver o experimentalismo, o uso da cítara por George Harrison já na fase do misticismo (aliás, a cítara até encontramos logo em Rubber Soul, precisamente), o surrealismo de John Lennon em She Said, She Said e Tomorrow Never Knows, a perfeição pop de McCartney (que, como Beatle, gostava de nos lembrar que as pessoas normais também existem, como li algures, penso que no All Music Guide) no grande Eleanor Rigby.

Tudo isto para dizer que não tenho álbum favorito dos Beatles, e que, dependendo da fase da vida, ouço uns mais do que outros. O meu coração tem, porém, um fraquinho polígamo por Revolver e, decididamente, por Abbey Road, que, há dezasseis anos atrás, quando comecei a ouvir Beatles a sério, foi o primeiro álbum que verdadeiramente me deslumbrou. Ainda hoje me continua a deslumbrar, e contra isto nada há a fazer, apenas abrir bem os ouvidos e deixar a música entrar.