segunda-feira, 31 de maio de 2010

Lágrimas


Eu sou completamente a favor da felicidade, da alegria e até do optimismo, embora possa parecer que não. Mas a verdade é que sou.
No entanto, considero que há momentos na vida em que a tristeza é inevitável e assumi-la também. Por exemplo, tenho notado que, nos últimos tempos, têm-se sucedido notícias sobre pessoas que conheço vagamente e que se separaram ou divorciaram. Como as rupturas, quaisquer que sejam, mas principalmente as amorosas, são coisas que verdadeiramente me deixam aterrada, fico sempre cheia de pena, e indago acerca do estado de espírito da pessoa ("ah, mas ele/ela está bem? anda a trabalhar muito, ao menos, para conseguir esquecer?", sei lá, coisas parvas desta índole). Fico sempre abismada com as respostas que recebo. Uma semana depois do desgosto e já toda a gente mudou de emprego para se encontrar agora a ganhar €300000 por mês, ou já se casaram novamente, ou já apresentaram namorado novo aos pais, ou vão ter um bebé com o namorado/a novo/a, ou foram convidados para ir viver para a Califórnia como estrelas de cinema, etc., etc.
Admiro quem tem esta elasticidade para deixar que os azares da vida embatam neles para fazerem ricochete, superando rapidamente obstáculos e voltando a repor a ordem natural das coisas, que deve ser feliz. E porém, a rapidez com que as pessoas escamoteiam a tristeza é algo que me surpreende sempre. Não ouço falar de ninguém que fique em casa a chorar, que tenha dificuldade em manter uma vida normal, que admita que está infeliz. É evidente que muitos preferem esconder estados de espírito e adoptar uma fachada de alegria e força para o mundo exterior, o que é legítimo. Mas, mesmo em conversas pessoais que vou tendo, constato que a infelicidade e a tristeza são cada vez mais palavras proibidas no léxico de toda a gente.
Se eliminar os vocábulos "infelicidade" e "tristeza" equivalesse a erradicá-los definitivamente da vida das pessoas, estaríamos todos de acordo. Mas não nomear uma coisa não quer dizer que ela não exista. É impossível viver sem que, com grande pena minha e de toda a gente, sejamos atingidos por ondas negras de tristeza. É mesmo assim. Um bom método talvez seja chorar tudo o que há para chorar, resolver todos os lutos antes que eles se avolumem ainda mais. E isto não sou eu que digo - já há muito que se sabe do poder das lágrimas. Leia-se, interessantemente, o que diz José Tolentino Mendonça na sua introdução a O Dom das Lágrimas. Orações da antiga liturgia cristã, Assírio e Alvim, p.12:
Temos muitas maneiras de chorar, e o modo como o fazemos revela não só a temperatura dos sentimentos, mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos, mas choramos sempre para um outro ver. As lágrimas emprestam um realismo único, irresistível à dramática expressão de nós próprios. São um traço tão pessoal como o olhar ou o mover-se ou o amar.

Choramos pouco, não é? A não ser as velhotas- "eu-sou-uma-pessoa-doente" que de vez em quando aparecem na televisão (e não dão vontade nenhuma de rir, apesar de eu estar a falar disto descontraidamente), as pessoas não choram muito. E, se choram em privado, nunca dizem que choram. Isso é com elas, de facto, não me cabe a mim especular o porquê.
Mas pronto. Isto sou só eu a falar. Eu nem nunca chorei na vida e detesto, verdadeiramente, que chorem ao pé de mim, de modo que não sou pessoa para estar aqui a pregar sermões.

domingo, 30 de maio de 2010

Oh Denis doo-be-do


Por outro lado, e complementando o post anterior, gostaria muito de ter visto o Easy Rider no cinema, ao invés de em DVD, que é sempre uma coisa inferior. É a recordação que deixo aqui de Dennis Hopper, de quem gostei muito no próprio Easy Rider (o final é inesquecível; este filme vale muitíssimo a pena), tal como em Apocalypse Now, em que estava bastante cómico. A entrevista de Dennis Hopper nos extras do DVD do Easy Rider (ligeira vantagem do DVD) também é engraçada - Dennis Hopper diz que queria sempre tudo à maneira dele, mesmo quando isso era, claramente, a pior das opções possíveis. Uma vez, os outros produtores do filme fizeram tudo às escondidas, ele só descobriu no fim e, em vez de partir tudo (como parece que era sua característica), riu-se e disse "eles tinham razão, ficou muito melhor assim".
Era um gajo fixe, ao que parece. E que bonito que ele estava no Gigante, a fazer de filho da Lizzie.

sábado, 29 de maio de 2010

Ainda esta semana tentei ir ao cinema e não encontrei nada que me apetecesse, verdadeiramente, ver. Tudo deslavado. Uma dor de alma. A crise está por todo lado.
Como diz um amigo meu, a solução é passar a ir única e exclusivamente à Cinemateca e esquecer o resto.

Conversa de café


Um amigo meu dizia, há imensos anos (tudo o que me aconteceu, pelos vistos, foi sempre há imensos anos), que gostava de namorar com raparigas feias. É que, explicava ele, como são feias, são mais interessantes, porque não podem contar com a carinha laroca para atrair a atenção. Ele arranjava, inclusivamente, metáforas muito engraçadas dignas, sei lá, de elevações de espírito como um episódio do Sexo e a Cidade, mas naquela altura tinham, de facto, graça - é como mergulhar no mar, chegares lá ao fundo e veres tudo com toda a clareza, o azul da água que não é o mesmo à superfície, enfim, coisas assim.
Lembro-me de ter protestado contra esta conversa. O que ele dizia é que as feias dão menos trabalho a engatar. Mas não era isso. Ele tinha, convictamente, mais interesse em pessoas feias do que em pessoas bonitas.
Eu também, curiosamente. Já escrevi que gosto de imperfeições e etc. e tal. Mas também acho mais graça a pessoas feias que depois, com o tempo, se vão tornando bonitas. A beleza perfeita é aterradora - é como ir a um museu ver um quadro e ficar ali estarrecido a olhar. E o quadro, se calhar, até ficava muito bem na nossa sala. Mas, passado algum tempo, tornava-se um objecto de decoração como outro qualquer. Perdia a novidade, alguma piada, até. E, por isso, as pessoas muito bonitas sofrem um processo inverso aos feios - também devido a alguma inveja, que é, de facto, algo de muito desagradável e vil, quanto mais observamos as pessoas muito bonitas, mais defeitos descobrimos, e estes defeitos avolumam-se de forma a tornarem-se insuportáveis. "Ah, que lindo que ele é, mas tem umas mãos esquisitas" - e, dia após dias, só vemos aquelas mãos horríveis, de gestos deselegantes, que estragam tudo. "Ah, que elegante que ele é, mas tem a boca torta" - e, de dia para dia, a boca vai-se tornando tão torta que chega à bochecha e, qualquer dia, vai parar à orelha, o que pode causar algum desconforto. É por isso que o meu problema com um certo cinema dos dias de hoje é não haver actores nem actrizes feios na quantidade necessária. Têm todos aquele ar higienizado da nata de Hollywood, que me incomoda um tanto ou quanto. Eu gosto mais de ir ver filmes com pessoas feias, que tenham alguma coisa para onde eu possa olhar sem ser dentes ofuscantes.
Não quero com isto dizer que a beleza não é importante. É, e quem diz que não é, sinceramente, está a mentir e pronto. Acontece é que a beleza, curiosamente, é algo de muito mais complexo do que se possa pensar. A beleza não envolve só, ou talvez nem sequer envolva fundamentalmente, perfeição física - envolve aquela entidade diáfana e inefável designada por "pinta". E a pinta ou se tem, ou não se tem, mas quando existe, traz consigo a verdadeira beleza.
É evidente que há uns seres estranhos que conseguem ter as duas coisas, excelsa perfeição física e pinta, mas nesses não vale a pena pensar, que só servem para a gente se sentir mal. Eu, a esses, punha-os a todos num museu e não os deixava sair de lá, para o mundo real. Era bem feita.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio

O que é "escrever bem" ou "ter jeito" para a escrita?
Quando as pessoas dizem que têm muito jeito para a escrita, isso normalmente nunca corresponde à verdade. Apenas quer dizer que não dão erros ortográficos e que conseguem escrever a metro, isto é, mais de dez linhas, sem lhes faltar ideias. Não me posso esquecer do mafarrico que se sentou ao pé de mim na cantina da escola e que disse que tinha "muito jeito" para escrever poemas, tanto jeito que as pessoas até lhe diziam que ele dava ares de Fernando Pessoa. Escrevia bem, achava ele.
Eu não sei o que é escrever bem. Sei dizer se considero que alguém escreve bem ou mal, mas não consigo exactamente definir porquê - quer dizer, quando a escrita é má, consigo, porque se torna bastante fácil. Quando se escrevem diálogos do calibre "então compraste mais sapatos?", "É. Comprei", está tudo dito. Qualquer pessoa que, com ou sem licença poética, admita "é" como resposta a uma pergunta que não contém o verbo "ser" tem, claramente, problemas que eu duvido que não ultrapassem a própria (má) escrita. Mas, lá está, como qualquer pessoa de nacionalidade portuguesa, tenho muito mais facilidade em apontar e justificar o que está mal do que justificar o que está bem.
Sei que aprecio cada vez mais a escrita que é apenas formalmente má, ou propositadamente má. Há quem escreva propositadamente mal de forma admirável. Agora só me consigo lembrar de Charles Bukowski e Lobo Antunes em certas crónicas e momentos de alguns romances, mas há outros. Escrita com asneiras, com frases entrecortadas ou mesmo interrompidas, que começam a meio e terminam no início, mas uma escrita fluida, escorreita, viva. Penso que era isto que Truman Capote designava, muito interessantemente, por "underwriting". Curiosamente, o primeiro romance de Truman, Other Voices, Other Rooms, sobre o qual já escrevi aqui no blog, é tudo menos "underwritten". Mas é uma escrita simples, ao mesmo tempo. Não é excessiva, apenas admite momentos de alguma extravagância, o que é inteiramente diferente.
Bom. A minha intenção era escrever um post que se dedicasse com algum afinco ao problema do calor e de as pessoas insistirem em mostrar ao mundo a sua flacidez, usando tops de licra que se colam de tal forma às protuberâncias que ficam a parecer da família do bonequinho da Michelin, e como isso não é bonito nem correcto, sendo que a minha sugestão ia no sentido de se começar a usar umas coisas mais folgadas a bem da estética comum, assim como sapatinhos fechados para quem não tem paciência para limpar as unhas dos pés, já que certas visões de dedões descuidados assustam ligeiramente, mas enfim; acabei por escrever algo completamente diferente.
Ainda não sei como se vai chamar este post. Falta-me o "títalo". Este é um exemplo de escrita propositadamente má. O resto também pode ser, mas este foi mesmo de propósito.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Ligeira inveja

Este blog anda muito mole, muito pouco dinâmico. Quer dizer, "dinâmico" é coisa que nunca foi e ainda bem - eu própria não sou dinâmica. Canso-me ao pé de pessoas dinâmicas. Não tenho muita paciência para pessoas dinâmicas. Se calhar, tenho inveja.
Deve ser isso. É a inveja. Gosto de pensar que sou uma pessoa que não sente inveja nenhuma, mas não é verdade. Há vezes em que acontecem coisas excelentes aos outros, e nós ficamos felizes por eles, a sério que ficamos, mas mesmo assim não conseguimos impedir aquela ligeira, ligeiríssima, sensação de que há uma agulha que nos espicaça ao de leve, algures no corpo, na barriga, no pescoço, talvez. "Porque não eu? Eu mereço mais" - temos este pensamento baixo e vil.
Eu, pelo menos, tenho.
Tudo para dizer que o blog está muito mole. Esfarela, como diria Ramalho Ortigão nas Farpas.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Dialéctica - parte II

A dialéctica senhor/escravo tem muitas ramificações e relevância na sociedade dos nossos tempos. É, no fundo, uma explicação da dependência. As pessoas desprezam os "drógados", porque não contribuem para o bem da comunidade e arrumam carros quando ninguém lhes pede, mas elas próprias (eu incluída) são dependentes.
Exemplificando. O meu computador é ancião. Não direi que é pré-histórico, mas é, vamos lá, da Antiguidade. Nem sequer chega à Idade Média. Mas funciona, portanto vou-me aguentando, alegremente, com ele. A desvantagem, porém, de estar em posse de um computador pré-medieval é que, com alguma frequência, ele é acometido de certas maleitas. Desta vez, foi o carregador que se estragou, o que me obrigou a ficar dois dias sem pc, até encontrar forma de resolver a questão, que felizmente foi resolvida.
Constatei, nesse par de dias, que não ter computador é debilitante. Não pude trabalhar. Tudo o que precisava para trabalhar, processador de texto incluído, estava no pc. Não pude escrever. Já não consigo escrever à mão. Sei isto porque me perguntaram - mas não podes escrever à mão? E aí, fui forçada a admitir que não. O máximo que ainda escrevo à mão são cartas, postais, mas normalmente envio emails. Se pegar numa caneta e olhar para uma folha branca, a gritar por palavras, nada me sai.
De modo que o trabalho atrasou todo e passei dois dias entupida. Ainda por cima, o livro que estou a ler não me agrada sumamente, o que toldou ainda mais a minha mente habituada a estímulos fáceis.
E assim se conclui que Hegel tinha toda a absoluta razão - o computador é o senhor, eu sou verdadeiramente a escrava. E o mesmo se passa com toda a gente que tem o trabalho todo no computador, de tal forma que este se torna quase um pedaço da vida das pessoas. Se o perdemos, é uma chatice.
Porém, ontem, nas notícias, ao ver as pessoas fascinadas, algumas até dispostas a fazer sacrifícios à carteira, com os novos écrãs 3D, para poderem ir para casa e lá ficarem, de óculos escuros, a olhar para a televisão, senti uma súbita alegria reconfortante. Sim, eu posso ser um exemplo de alienação, que é coisa que terei de resolver. Mas há gente muito, muitíssimo, pior do que eu.

sábado, 22 de maio de 2010

Todos os livros são compostos de mudança

Tal como as pessoas, os livros mudam. E mudam de uma forma muito clara.
Li o Dracula de Bram Stoker na adolescência. Adorava os arrepios na espinha, o medo que me provocava. Os capítulos em que Jonathan Harker está fechado no castelo, à mercê de vampiros e restantes criaturas igualmente malévolas, pareciam-me claustrofóbicos, medonhos, magistrais.
Voltei a ler Dracula já adulta. Uma leitura fácil, de arrepio fácil, um sobrenatural quase sensacionalista. Um livrinho com piada.
Também li O País das Últimas Coisas, de Paul Auster, há uma série de anos. Adorei. Também achei "claustrofóbico" que, pelos vistos, era a principal qualidade que procurava na escrita enquanto atravessava a adolescência. Voltei a lê-lo há dois anos. Ao contrário do que ouço dizer, gente até de grande iluminação, eu não acho o Paul Auster nada mau. Também não achei o País das Últimas Coisas mau. Está é muito longe de ser o grande, imenso livro que eu pensava que era.
Há certos livros que são como, por exemplo, os namoradinhos da escola primária. Já não os vimos há centenas de anos, e as memórias que temos deles são fofinhas e queridas e boas. Se calha vê-los na vida real, a desilusão é profunda - ninguém consegue corresponder a expectativas tão ternurentas. Os livros do passado são, na maior parte dos casos, exactamente a mesma coisa.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Dialéctica


Eu acho que, mais ou menos, percebi aquela questão da dialéctica senhor/escravo do Hegel e tal. O trabalho liberta. Se o senhor vive do trabalho do escravo, então quem é livre é o escravo, porque, sem o trabalho deste, o senhor não vai a lado nenhum e portanto quem é dependente é o senhor, e não o escravo.
Pois. Isto é tudo muito bonito e verdadeiro. E nem sequer vou falar da adendazinha que o Marx juntou aqui a esta dialéctica. Vou dizer, sim, que se eu pudesse ser livre sem ter de andar a trabalhar, desculpa lá, ó Hegel, mas preferia muito mais.
Não me venham com as histórias do trabalho que é edificante. Onde é que está a edificação em ter de andar a trabalhar para ganhar dinheiro ao fim do mês? Trabalho assim não é edificante. Nós é que nos enganamos a nós próprios porque é a única forma de suportar o jugo, e então inventámos este conceito de "realização profissional" para taparmos os olhos. E é exactamente aquilo que eu faço, porque, se os meus olhos se abrem, e eu vejo o Carmo e a Trindade finalmente a cair, nunca mais Lisboa se recompõe. E depois é uma maçada.
Ai.
Se o Hegel fosse vivo, conversava um bocadinho com ele no sentido de o fazer alterar, ligeiramente, a dialéctica - não dá para ser "toda a gente é senhor porque ninguém precisa de trabalhar?".

O inferno são os outros

Acho graça, surpreendo-me e, na maior parte das vezes, irrito-me, com a vaidade das pessoas.
Não percebo a vontade desesperada de se evidenciarem. Falam por cima dos outros e falam de coisas óbvias e banais. Coisas em que outros pensaram já há muito, coisas que muitos fizeram antes deles. Que não são nada de especial.
Acham-se na posição justa para criticar, julgar, aconselhar os outros. São paternalistas. Escrevem e falam em inglês demasiadas vezes, vendo nisso um sinal do seu cosmopolitismo pobre, da sua educação tristemente pouco esmerada. Gosto muito de inglês, mas nunca confio em quem recorre a ele demasiadas vezes, quase em detrimento do português. É um tanto ou quanto aquilo que poderíamos designar por "provinciano".
Também já percebi que há algo que as pessoas excessivamente vaidosas gostam muito de fazer, e que é comprazer-se na sua arrogância. Consideram que a arrogância lhes confere superioridade, interesse, um certo snobismo aristocrático. Vêem nela força de carácter e não a tomam por aquilo que realmente é - a fraqueza cobarde de quem vive do artifício. E uma fraqueza bastante irritante e desagradável, por sinal. E, no entanto, dizem "às vezes acham-me muito arrogante", "às vezes acham-me muito agressivo", "às vezes acham que eu não dou confiança", como se tudo isto fosse louvável.
E depois esforçam-se tanto - valha-me Deus, o quanto se esforçam. Sempre em constantes manobras para atrair atenção, para perceber de que forma conseguem ultrapassar os outros, aquilo que podem exibir. É patético. É triste.
Passou-me a maleita do corpo, mas hoje ficou-me a do espírito. A vaidade é insuportável, é repugnante. E conheço gente demais assim. De modo que me entristece. De modo que a maior parte das pessoas vale pouco a pena.
E eu própria tenho pena.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Maleita

O problema das maleitas que demoram a passar e persistem em afligir-nos por muitos dias é que se começa a ter muito afincadamente a noção do "mal-estar". Quase que se materializa à nossa frente.
Os sonhos de febre são os piores, os mais disformes. Vozes que nos gritam ao ouvido e que depois se esbatem, para mais tarde voltarem novamente, em ondas, e aquelas cores estranhas, amorfas, que percorrem a mente em grande rapidez. É, na verdade, uma experiência muito surreal.
Como não consigo escrever mais, que o "mal-estar" assola, queria porém deixar um poema que ilustra tudo isto e muito mais. Só me lembro dele (do poema) quando estou doente, e penso que se percebe porquê - foi escrito por Samuel Taylor Coleridge, esse romântico levemente alucinado que, como muitos outros românticos, gostava de comer comida estragada para ter pesadelos e depois escrever sobre eles. Manias.
Não admira, portanto, que o talento de S. T. Coleridge, combinado com as grandes perturbações intestinais que com certeza o acometiam, e que, como todos sabemos, seriam com certeza grande inspiração, tenha resultado neste clarividente poema sobre o incómodo, a alteração, da "doença" - aqui vão, sem mais delongas, alguns versos de "The Pains of Sleep":
Ere on my bed my limbs I lay,
It hath not been my use to pray
With moving lips or bended knees;
But silently, by slow degrees,

My spirit I to Love compose,

In humble trust mine eyelids close,

With reverential resignation,

No wish conceived, no thought expressed,

Only a sense of supplication;

A sense o'er all my soul impressed
That I am weak, yet not unblessed,

Since in me, round me, every where

Eternal strength and wisdom are.


But yester-night I prayed aloud

In anguish and in agony,
Up-starting from the fiendish crowd

Of shapes and thoughts that tortured me:

A lurid light, a trampling throng,

Sense of intolerable wrong,

And whom I scorned, those only strong!

Thirst of revenge, the powerless will

Still baffled, and yet burning still!

Desire with loathing strangely mixed
On wild or hateful objects fixed.

Fantastic passions! maddening brawl!
And shame and terror over all!


É um pouco isto que se passa quando estamos doentes e não dá para fechar os olhos e dormir o sono dos justos, não é?

domingo, 16 de maio de 2010

Matéria

Bom, uma intoxicação alimentar é do pior que pode acontecer ao Homem. Para mim, equivale ao que Kafka dizia sobre acordar cedo - é degradante. A pessoa confronta-se, verdadeiramente, com o facto de ser um animal, talvez o único animal racional sobre a Terra, mas ainda assim um animal, que nada mais tem do que "matéria". Matéria, matéria, matéria por todo o lado. Nestas alturas, não servem de nada as elevações do espírito, nem a arte, nem os bons livros, nem nada, mas apenas o confronto com o facto de sermos apenas "pó". É, até, um exercício de humildade - quer sejas a Rainha de Inglaterra, ou o Obama, ou apenas uma rapariga normal, o que tens para mostrar ao mundo, a tal matéria, é igual para todos e comum à raça humana, que é, na verdade, uma raça animalesca como as outras.
Até é quase filosófico, uma intoxicação alimentar. Dá para a gente pensar.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Pois que tudo são coisinhas

E, mais uma vez, venho aqui dar conta não das pessoas que são assim e assado e que me irritam, mas antes daquilo que em Portugal é assim e assado e que me enternece (embora talvez me devesse irritar).
Há uma certa ternurinha em Portugal, uma certa disposição mansa, a que acho muita graça, embora esta mansidão seja, provavelmente, só fachada, mas enfim. Por exemplo, n'O Mistério da Estrada de Sintra, Eça faz pela primeira vez menção à personagem de Fradique Mendes, esse exótico espécime estrangeirado, que, numa festa, decide falar extravangantemente da relação amorosa e fatal que manteve com uma mulher canibal. E diz-se assim:

Carlos Fradique contava as situações monstruosas de uma paixão mística que tivera por uma negra antropófaga:
- Um dia, exaltado de amor, aproximei-me dela,arregacei a manga e apresentei-lhe o braço nu. Queria fazer-lhe aquele mimo! Ela cheirou, deu uma dentada, levou um pedaço longo de carne,mastigou, lambeu os beiços ...e pediu mais.
-Oh! sr. Fradique! - gritaram todos, escandalizados.

Este "oh! sr. Fradique!" deslumbra-me e faz-me sempre rir. Este escândalozinho que as pessoas deste país gostam de sentir, dissociando-se dele, fazendo questão de afirmar que são muito morais, muito decentes, muito queridas. É bonito. E não esquecer que vem tudo acompanhado de uma impecável, mais uma vez também muito decente, boa-educação, patrocinada pelas requintadas (e intrincadas) formas de tratamento da língua portuguesa - o "sr. Fradique", honorífico + apelido, não há cá primeiros nomes para ninguém.
As pessoas gostam de se enternecer, em Portugal. Gostam de pensar que são boas pessoas. E isso é bonito. Acho mesmo que sim.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Ah! E ainda a respeito do que se passa no youtube, o pessoal que se dá ao trabalho de ir lá retirar material devia pôr os olhos nos grandes Monty Python, que criaram um canal onde disponibilizam todo o seu material, porque sabem, e provavelmente apreciam, que as pessoas gostam deles e da obra que criaram.
Só gente medíocre é que tem medo da pirataria, é o que eu acho. Os DVDs dos Monty Python deixam de se vender? Eles perdem dinheiro? Não me consta que isso aconteça (posso estar errada, mas penso que não).


(E também me esqueci de juntar à lista dos descontrolados raivosos aquele horrível do Manual de Instruções para Crimes Banais, filme do qual penso que falarei em breve. Foi dos filmes mais terríveis que vi, e o criminoso do filme foi dos que mais detestei. Explicarei porquê.
Mas agora não.)

Desejo sinceramente que o youtube se

Bom, mas é que fico mesmo a espumar de raiva, com vagas incontroláveis de instintos absolutamente assassinos, qual cão danado, qual Vincent Vega e Jules a descarregar a arma depois daquele "Ezequiel 25:17", qual Robert DeNiro no GoodFellas a despachar os tipos todos que sabiam dos negócios escuros dele ao som do Leyla do Eric Clapton, qual Kaiser Soze a matar inimigos e pessoas que conheciam os inimigos e até pessoas que deviam dinheiro aos inimigos, qual Vitto no Padrinho, que volta à terrinha na Sicília para despachar o gordo mafioso que lhe tinha matado o pai, fico assim como esta gente toda, quando vou ao youtube e constato que uma data de links que pus no facebook ou nos favoritos não está lá, e também (atenção) não está disponível em mais nenhum lado. OK?
É que não está.
Estamos a falar de Mário Viegas a recitar poesia, por exemplo.
Estamos a falar de excertos mínimos de filmes (não são o filme inteiro, nem de perto nem de longe).
Estamos a falar de clips do South Park, que eu, por acaso, até acho que ainda não saíram sequer em DVD.
Estamos a falar de entrevistas antigas com escritores, músicos.
Estamos a falar de videoclips que, por amor de Deus, mais não servem do que promover bandas e que, estando disponíveis no yoube, apenas estimulariam o apreço e o gosto pelas mesmas, resultando, talvez quem sabe, na efectiva compra do CD.
A sério. Terem retirado o Mário Viegas, então, deixa-me fora de mim, absolutamente fora de mim, com instintos assassinos, qual os sapatos da enfermeira no Vestida para Matar, qual Hanibal Lecter (sim, sim!, é este o meu estado), qual Kaiser Soze, qual Robert DeNiro em Goodfellas, em Padrinho, qual Vincent Vega, cães danados e outros que me estão agora a faltar.
Oh pá, a sério. Que estupidez. Lembram-se daquilo que o Miguel Esteves Cardoso disse da Leya há bem pouco tempo? Pois bem, eu digo exactamente o mesmo à gentinha que vai ao youtube retirar conteúdos inofensivos, interessantes e que, além de não infringirem direitos de autor, apenas promovem e publicitam os ditos autores.
E agora despeço-me, que a fel destila em golfadas, toda eu sou fel, bleagh, que porcaria, tenho de ir tomar um duche para adocicar.

(nota para dizer que estou a ponderar seriamente criar uma etiqueta "fel" neste blog. É que, infelizmente, a minha natureza resvala sempre para o mal).

domingo, 9 de maio de 2010

Bola


Gosto de futebol por causa da festa. Não percebo a fundo todas as regras do jogo, e nem sequer conheço todo o plantel do Benfica. Mas gosto de futebol e sou do Benfica.
Acima de tudo, gosto de bola, que pode ser uma rodilha de trapos ou uma esfera mais pesada e profissional, e que permite que os miúdos joguem na rua e que os adultos disputem campeonatos. A bola dá oportunidade tanto ao pobre como ao aristocrata - há inúmeros casos de jogadores que vieram do nada, de vidas pobres ou quase miseráveis, mas que chutavam a bola desde pequenos e que assim descobriram um talento imenso (o que não desculpa de forma nenhuma a pobreza, mas mostra como o futebol chega a tantas vidas diferentes). A bola fascina crianças, que de repente se esquecem da sofisticação dos brinquedos com pós modernos para exercitar o pé em chutos animados, e no entanto é uma coisa tão simples, que não custa nada. Uma bola.
E, por isso, ver o Benfica campeão é, como dizem os benfiquistas mais empedernidos, "uma alegria muito grande" e "uma coisa muito bonita". Primeiro, porque, por herança familiar, que mais tarde se tornou do coração também, sou do Benfica. Segundo, porque é inesquecível ir à Luz e ver tantas pessoas felizes. Respira-se felicidade, que transborda de tanta gente tão diferente, velhos, novos, famílias inteiras, adolescentes, mulheres, homens.
Aceito quem não gosta de futebol, quem não tem paciência, quem é indiferente a derrotas e vitórias (nem sequer é uma questão de aceitar; não tenho nada a ver com isso). Aceito, porém, com muita dificuldade que me digam que ter um clube do coração "é uma estupidez", como às vezes ouço, e que o futebol só serve para negócios escuros por causa de uma data de homens a correr atrás da bola. Os negócios escuros do futebol só entristecem quem verdadeiramente gosta de um clube, assim como o mau perder e as cenas de batatada que às vezes acontecem também mancham, vergonhosamente, aquilo que devia ser uma festa alegre. E porém, estes episódios tristes não afectam a felicidade de uma vitória, ou a plenitude de cantar a plenos pulmões na Luz (onde não consegui estar hoje, com uma pena imensa), de cachecol ao pescoço.
É uma coisa muito bonita. Uma alegria muito grande. E gosto que as pessoas partilhem isto por causa de uma simples bola. Não me parece menor, não me parece pouco inteligente. Parece-me bem, e isto independentemente de sermos do Benfica, do Sporting, do Porto.
Viva a bola e, hoje, com toda a força, viva o Benfica.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Um possível problema de tradução


Em Birthday Letters/Cartas de Aniversário, de Ted Hughes, edição Relógio d´Água e tradução de Manuel Dias, há um poema de que gosto muito, muito, muito que se chama Blue Flannel Suit e que, antes de terminar, diz assim:

You waited,
Knowing yourself helpless in the tweezers
Of the life that judged you, and I saw
The flayed nerve, the unheable face-wound
Which was all you had for courage

A tradução é a seguinte:

Esperaste,
sabendo-te indefesa nas tenazes
da vida que te julgava, e eu vi
no teu nervo esfolado e na ferida incurável do teu rosto,
toda a tua coragem

Não sou tradutora, nem conto atrever-me sequer a tentar traduzir poesia, e talvez o meu problema com esta tradução seja apenas hiper-sensibilidade minha em relação ao poema de que gosto tanto. No entanto, julgo que, efectivamente, o último verso traduzido não faz jus à fragilidade bonita do original. O "nervo esfolado" e a "ferida incurável" é tudo o que resta, e é tudo com que se pode contar para ir arranjar coragem não se sabe bem onde; "which is all you had for courage" é muito diferente de "eu vi [no nervo esfolado, na ferida incurável] toda a tua coragem". A tradução portuguesa dá uma força quase dominadora a esta coragem que, no original inglês, não me parece existir. Há coragem, sim, mas esfarrapada, frágil, de modo que o "flayed nerve" e "unhealable face-wound" se tornam, curiosamente, ainda mais poderosos - são sinais de ferida e desgosto que, apesar de tudo, continuam a ser coragem.
Mas pronto. De resto, nada a dizer. A minha mensagem ao tradutor é, fazendo minhas as palavras de Herman a Manoel de Oliveira, "que não desista" e "que continue".

Ardente e violentamente

Estou a sempre a começar posts pelo desagradável intróito (tão desagradável como a própria palavra "intróito" e a pessoa que o escreve) "não gosto de pessoas que...".
E este post não vai variar. Não gosto de pessoas que não gostam muito de uma coisa. Aquelas pessoas que gostam de tudo e não gostam verdadeiramente de nada.
Ah, Pearl Jam? Gosto, pois, já os vi ao vivo.
Ah, Kraftwerk? Gosto, pois, já os vi ao vivo.
Ah, Quim Barreiros? Gosto, pois, já o vi ao vivo.
Ah, George Orwell? Gosto, pois, já o li ao vivo.
Ah, A Aparição? Gosto, pois, já li e pensei sobre o livro ao vivo! (pois claro...)
Ah, Lídia Jorge? Gosto, pois, já a li e vi o filme ao vivo.
Ah, Murakami? Gosto, pois, etc.
Não é possível. Há gente que gosta destas coisas todas que eu enunciei, tudo ao mesmo tempo, sem critério nenhum, e sem se manifestar ardente e violentamente por nada. Não acredito em quem não se manifesta ardente e violentamente por nada, e prefiro não acreditar, porque é gente que me irrita.
Uma vez, ao ler uns pensamentos de Vergílio Ferreira, de que, por acaso, gostei muito, deparei-me com o seguinte: Morrerás em breve. É incontestável. E quanta verdade morrerá contigo sem saberes que a sabias. Só por não teres tido a sorte de num simples encontro ou encontrão ta fazerem vir ao de cima.
Portanto, como é que há pessoas que passam a vida a evitar as verdades que devem sentir com toda a força, a encolher os ombros, a gostar de tudo por igual, por atacado? Essas pessoas são as mesmas de quem fala Vergílio Ferreira. Fazem-me impressão.
Sou uma pessoa muito impressionável.

Umas notinhas sobre uns documentários que tenho visto


Há pouco tempo, vi na televisão o filme, presumo que mais ou menos ficcionado, sobre Grey Gardens, uma casa decadente nos Hamptons onde viviam Big Edie e Little Edie, mãe e filha, dementes, doces e completamente afastadas do mundo. Conheci-as ao ver o documentário dos irmãos Maysles, que me impressionou muito, e sobre o qual escrevi aqui; vi também, há relativamente pouco tempo, um outro documentário destes realizadores sobre os Beatles (The Beatles - The First US Visit) que, incrível e supreendentemente, me desapontou.
Estes documentários, tal como o recente Fantasia Lusitana de João Canijo, recusam muito claramente a voz off e vão mais longe - recusam entrevistas com possíveis "especialistas" a opinar sobre o assunto, deste modo evitando quaisquer cortes entre o espectador e o objecto a documentar. É o objecto que tem a única voz do filme, inteira e ininterrupta. Quando este objecto consiste em duas senhoras divertidas e com uma vida tão estranha e inimaginável como as Edies, corre tudo bem. Quando o objecto consiste num país que sofre do tal irrealismo prodigioso, também corre tudo bem. Então, porque é que não resulta com os Beatles?
Porque a única coisa que decorre de um documentário filmado nos anos 60 e que se limita a filmar os Beatles em todas as ocasiões possíveis é o facto de se tornar penosamente óbvio que nenhum dos quatro elementos da banda estava alguma vez sozinho, ou tinha tempo para reflectir, ou para pura e simplesmente ficar calado. Tinham sempre gente à volta, e o que o documentário regista é que os quatro Beatles passavam a vida a mandar bocas inconsequentes e a "entrar no personagem", correspondendo à performance que deles era constantemente esperada. A autenticidade, que enternece e seduz em Grey Gardens, é evitada e nunca transparece no documentário sobre os Beatles.
Talvez a conclusão a retirar seja isto mesmo, a de que os Beatles, coitadinhos, tinham sempre gente à volta, ou então eram pura e simplesmente ocos e não tinham nada para dizer. Eu, porém, acho que tinham porque já li entrevistas bem mais interessantes com a banda. De modo que este estilo documental de dar voz, directa e ininterrupta, àquilo que se retrata nem sempre é boa ideia. Às vezes, não faz mal haver voz off, os tais especialistas a explicar tudo bem explicadinho como se o espectador fosse parvo e tal. Dá mais substância.
Bom. Não tenho mais nada a dizer. Parece que, depois de tanta frase, teria assim uma conclusão mais retumbante, não é? Mas não, fico mesmo por aqui. Não era a minha intenção escrever um post enganoso, e portanto desde já aqui deixo as minhas desculpas.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Desculpas que se arranjam para não ir limpar a casa

1 - estar a ler um texto com a expressão "queda livre", em vez disso ler "queca livre" e ficar a pensar em possíveis ilações que se poderão retirar de algo que Freud, com certeza, designaria por acto falhado

2- pôr-me a ver o Henrique Sá Pessoa a cozinhar ao ar livre (sim, cozinhar ao ar livre, não em queda livre e nem sequer a tal outra hipótese), tipo Jamie Oliver, e pensar que há pessoas que têm uma maneira lenta de falar que é muito engraçada. É o Henrique Sá Pessoa e o Nicholas Cage. São lentos a falar. Acho piada a esta idiossioncrasia porque eu sou o contrário, falo muito depressa e ninguém percebe o que eu digo, o que complica a minha vida.

3 - reparar que o Henrique Sá Pessoa está a cozinhar com a música pirosa dos Journey no background (aquela que é "don't stop believing, just a small town girl", blá blá) e ficar a pensar que isso quer dizer alguma coisa que eu não estou a atingir. É que eu, por acaso, até acho piada à música

4 - estar sentada no sofá e olhar para o chão e pensar, "ah, afinal também não está assim tão sujo"

5 - estar sentada no sofá e pensar que afinal não almocei bem e tenho de ir comer mais qualquer coisa, se não começo a limpar e depois fico sem forças, e depois como é que é?!

6 - escrever este post

7 - ir ao youtube procurar o vídeo que aqui vai figurar

8 -pensar que, realmente, o Henrique Sá Pessoa e o Nicholas Cage têm mesmo uma maneira engraçada de falar, são assim lentos.

terça-feira, 4 de maio de 2010

O trauma Branwell Brontë


Branwell Brontë nasceu numa família de mulheres, com três irmãs que ficaram para a história ao contrário do seu próprio nome, tão rapidamente esquecido como a sua vida vã. Os recursos da família eram dispendidos no único filho varão, em quem o pai insistia em ver rasgos de brilhantismo que mais ninguém via e, se bem que encorajasse também as historietas e as fantasias que as filhas gostavam de escrever, era Branwell que era resguardado para Oxford e Cambridge, onde nunca entrou, era Branwell que viajava, era Branwell que ficava em casa, protegido pela família, ao passo que as irmãs eram enviadas para escolas onde se morria de tuberculose e má nutrição.
Era também Branwell que se embebedava, que se tornava toxicodependente, que morria de amores proibidos pela senhora da casa onde trabalhava como professor dos filhos do casal e que, assim, trazia verdadeiramente o temido "opróbrio" à família.
A História tornou claro que Charlotte, Emily e Anne eram brilhantes, e Branwell não; que Charlotte, Emily e Anne escreviam bem, e Branwell não; que Charlotte, Emily e Anne haviam sido injustamente menosprezadas, e Branwell injustamente sobrevalorizado.
E, no entanto, a figura de Branwell Brontë é estranhamente interessante. O seu percurso auto-destrutivo, sem limites (adultério, droga, doença, excesso, morte prematura com tuberculose), mostra bem que, antes da História, era já para ele claro que seriam as suas irmãs as dignas herdeiras da chama literária que, nele, se apagava - no quadro que pinta de si próprio e das suas irmãs (este aqui ao lado), Branwell apaga a sua própria figura, preferindo que a sua identidade merecidamente se apague. No fundo, é uma personagem condenada desde o início, curvada sob o peso de expectativas familiares irrealistas que nele insistiam em ver génio, verve, imortalidade, e ele sem conseguir corresponder por pouco que fosse. Nem génio, nem verve, nem nada - apenas um tipo normal, acalentado por uma família para quem ele, que não tinha nada, era tudo.
Viver para corresponder às expectativas dos outros deve ser muito complicado.

domingo, 2 de maio de 2010

A propósito de louras



Agora fala-se muito da Grace Kelly; é capa da Vanity Fair, é exposição do guarda-roupa no Victoria & Albert, que eu hei-de ir ver, se a tanto me ajudar o engenho e a arte, é reminiscência saudosa do incomparável estilo, eterna elegância, inimitável porte principesco, tanto que até casou com um príncipe e tudo (e que caro o pagou). Aliás, a reportagem da Vanity Fair chega aos píncaros do risível, sendo um bom exemplo do que acontece quando certos e determinados desejos e anseios humanos são canalizados para estrelas de Hollywood e se desenvolvem fixações pouco saudáveis que levam a que se escrevam coisas como isto:

As for color, Grace was given her own, Apollonian palette. Wheat-field and buttercup yellows, azure and cerulean blues, seashell pink and angel-skin coral, Sun King gold and Olympus white—no one wore white like Grace Kelly. To those with a feeling for history, beauty, and style, Grace Kelly’s late-career wardrobe—the huntress Artemis during the day and Aphrodite at night—is unforgettable if not positively Delphic.

Bom. Eu, por acaso, gosto da Grace Kelly. Primeiro, o louro americano sempre me deslumbrou, em particular o louro gélido da Grace Kelly, que resultava tão bem nos filmes do Hitchcock. Aliás, nos filmes deste, as louras são sempre heroínas corajosas, e as morenas não necessariamente más, mas sempre umas pobres tristes (exemplo paradigmático, as duas meninas dos Pássaros - a loura sobrevive e fica com o namorado, a morena morre depois de ter sido sempre desprezada pelo seu amor). Mas continuando.
A propósito de louras, de quem eu sempre gostei foi da Marilyn. Comparada com a Grace, a Marilyn parece a desleixada com um palmo de cara que se enganou e, em vez de entrar na tasca onde habitualmente cantava o vaudeville de collant rasgado, entrou no restaurante fino onde se toca piano e come lagosta. E, no entanto, há um encanto mais autêntico na Marilyn, uma certa espontaneidade que eu acho enternecedora. A Grace não enternece. É uma estátua de gelo que ali está para deslumbrar, para ser admirada. A Marilyn, de busto emproado, cabelo platinado, cara de falsa ingénua, parece mais perdida, mais tonta, menos séria, menos perfeita. Tem uma sensibilidade que a Grace não consegue, ou, pelo menos, nunca conseguiu nos filmes que vi dela.
E por isso gosto mais da Marilyn, porque na vida real também me interessam mais as pessoas que revelam as fragilidades que têm, que não se envergonham disso. Os que as tentam esconder, muitas vezes mal disfarçadamente, irritam-me um bocadinho.

Fantasia Lusitana


Ao ver "Fantasia Lusitana", de João Canijo (sou fã absoluta deste homem), confirma-se plenamente o que Eduardo Lourenço, com toda a sabedoria e pelos vistos presciência, escreveu no Labirinto da Saudade: o irrealismo prodigioso com que Portugal se vê ao espelho.
O documentário de Canijo revela como toda a propaganda do Estado Novo, alguma dela até, devo confessar, tristemente divertida ("os nossos mercados são tão bonitos, as belas cebolas, as batatas, suas irmãs, que só esperam pelo seu melhor amigo, o bacalhau", coisas assim), dizia, toda esta propaganda disseminava a imagem do pobrezinho mas honrado Portugal, reduto intocável de paz, felicidade, alegre modéstia, mimosa fé, alheio à guerra, ao holocausto, aos próprios refugiados que invadiam Lisboa - "pois que tudo são coisinhas", como escreveu Garcia de Resende (quer dizer, escreveu mais ou menos isto, não posso garantir que saiba de cor) a propósito da corte portuguesa renascentista. Era o que se passava em Lisboa - tudo eram coisinhas, alegres, frescas, fadistas. Interessantíssimos os relatos de Saint-Exupery e Alfred Doblin, que eu não fazia ideia que tinham passado por Lisboa, mas que estiveram de facto cá em 1940 - ambos falam de como a luz da nossa belíssima cidade (aqui, sem sombra de ironia - Lisboa é efectivamente uma beleza, e ainda bem) acaba por ter um efeito muito mais desconcertante do que apaziguador. Um falso paraíso, uma paz prestes a desmoronar-se, todo um povo que quer com toda a força acreditar, prodigiosa e irrealisticamente, que a guerra está lá longe, que não o afecta.
Algumas imagens do documentário são aterradoras, e isto porque ainda se reconhece tanto do país da altura naquilo que o país é agora (sim, isto é um lugar-comum mais do que comum, bem sei; já quando se lê o Eça se percebe que ainda há tanta coisa igual, blá, blá... mas os lugares-comuns têm uma vantagem, é que normalmente são verdadeiros).
Mas quem sou eu para me queixar. Vamos ter feriado porque o Papa nos vem visitar, e isso para mim é sinal dos tempos, que a liberdade está a passar por aqui. Há que rejubilar.

Henry Chinaski

Quando aparecia a feira na cidade, toda a gente lá ia. Era um acontecimento.
Eu gostava da feira porque era a única altura do ano em que se podia comprar pão doce, fresquinho e com uma camada de açúcar por cima. No resto do ano, nenhuma padaria o vendia.
A juventude gostava de se concentrar na pista de carrinhos de choque. Os rapazes vinham do frango assado ao jantar, fim de tarde na feira, e exibiam ali a destreza automobilística, já que ninguém os deixava tirar a carta. As raparigas usavam gel no cabelo, vestiam fatos de sair e agrupavam-se ao pé da pista, a lançar olhares ansiosos aos condutores, na esperança de que eles as convidassem para encontrões e solavancos de encontro a outros carrinhos. Às vezes, funcionava, e a noite acabava por detrás de um qualquer pavilhão, já com os carrinhos bem esquecidos e com a mente concentrada noutros choques bem diferentes; outras vezes, não funcionava, e lá voltavam as raparigas para casa, em bando, o gel no cabelo que afinal não fizera diferença nenhuma, mais valia nem terem posto nada. Se era Carnaval, ainda levavam com um balão de água em cima, ouviam os rapazes que o tinham lançado a fugir e a rir, e chegavam a casa como verdadeiras gatas pingadas.
Para mim, a noite acabava sempre a vomitar, que pão doce e rodopios de carrinhos de choque me davam mais que voltas ao pobre estômago. O gel no cabelo não adianta nada quando se sofre do estômago, e portanto nunca me incomodei com isso. A feira também costumava vender calendários com fotografias de pessoas famosas, a Marilyn, o Elvis, o James Dean. Uma vez, encontrei um conjunto de calendários com os Beatles e comprei logo, muito satisfeita com o meu achado. Nessa noite, senti que o vomitanço tinha compensado.
Nas outras noites, nem por isso. Não me querendo comparar, percebo perfeitamente Henry Chinaski. Além disso, não gosto de feiras, nem nunca gostei.