Vi ontem, na RTP2, um documentário surpreendente e estranho. Chamava-se Grey Gardens, e era sobre duas senhoras, mãe (Big 'Edie') e filha ('Little' Edie), que viviam isoladas, sem dinheiro e sem ajuda, num casarão nos Hamptons, uma zona chique perto de Nova Iorque onde os endinheirados vão passar férias. O pai, nos dias de opulência, tinha abandonado a mãe na mansão; esta tinha chamado a filha para viver consigo, e a filha acedera, abandonando a sua vida em Nova Iorque para fazer companhia à mãe. Envelheciam as duas numa mansão vazia e enorme, decadente e esquálida, cheia de sombras e uma estranha alegria amarga, ou pelo menos assim parecia, quando os documentaristas as filmaram. As duas senhoras tinham chamado a atenção por viverem numa casa decadente e mal cheirosa, cheia de gatos e ratos e outros animaizinhos, de tal modo que os vizinhos já se tinham queixado; por outro lado, o facto de serem tia e prima de Jackie Kennedy e/ou Onassis também não passava despercebido. Aliás, a Jackie K. e/ou O., ao saber da indigência das familiares, abriu os cordões à bolsa para limpar e fazer obras à casa, mas isso já não aparece no documentário.
O que aparece é uma vida bizarra, de completa isolação, em que duas mulheres vivem uma rotinha de uma estranheza absoluta, alimentando-se de memórias dos dias em que cantavam e dançavam e eram felizes. A lembrança dessa felicidade é aquilo que as sustém, é quase elástica - a mãe, Big Edie, fala do antigo marido, de como a sua vida foi preenchida, de como cantava belíssimamente, e como ainda hoje é feliz com os seus gatos e com as caganitas que estes lhe deixam no quarto; a filha, Little Edie, diz que as únicas coisas que gosta na vida são a Igreja Católica, dançar e nadar; fala constantemente do regresso a Nova Iorque, de como a sua vida está em standby para que a possa retomar na cidade, de como a sua mãe a irrita ao afastar todos os (poucos) pretendentes que foi encontrando. Little Edie parece não perceber que tem 56 anos. Para ela, viver naquela enorme casa assombrada é um sonho, um estado passageiro, que acabará em breve e lhe abrirá a porta para a felicidade esperada, cheia de dança, de canto e de homens de sonho (não ter um homem que nos peça em casamento é um nojo, diz ela).
Este documentário, que rapidamente faz lembrar obras de ficção sobre a solidão e seus terríveis sucedâneos (o grande Sunset Boulevard e Whatever Happened to Baby Jane vêm imediatamente à mente), é triste e bonito e engraçado, tudo ao mesmo tempo. Gostei mesmo muito do filme e das estranhas Edies, mas não deixa de ser um terrível retrato de uma solidão inexpugnável. É estranhíssimo perceber que, afinal, o ser humano precisa desesperadamente dos outros, precisa de pessoas que confirmem a sua "ligação à terra" (e a mim custa-me dizer isto, porque sempre fui de opinião que quanto menos pessoas houver a chatear a vida de alguém, melhor). No fundo, o ser humano precisa de ser recordado por alguém, precisa que os outros saibam que ele exista, para não se tornar num fantasma, que era quase o que esta mãe e filha eram, apesar de todo o seu encanto (pareciam muito engraçadas e queridas).
O ser humano não é leve, e se é, precisa de ser pesado; precisa de, como dizia Nietzche, "provar a sua fidelidade à terra", não através do niilismo, mas antes de amarras ao mundo real, amarras que nos tornam pesados, presos à terra. Estas amarras são as outras pessoas. E eram estas amarras que a Big Edie e a Little Edie não tinham.
Um belíssimo filme. Vale muito a pena ver, é o conselho que aqui deixo, esperando que a minha vã filosofia barata não tenha estragado o apetite para este belo Grey Gardens.
3 comentários:
Vou mesmo procurar! Obrigada!
Espero que consigas encontrar e que gostes muito. Penso que não deve ser difícil encontrar a edição em DVD. Pelo que li na net, há uma edição especial de dois discos e tudo.
Eu vi hoje na Sony o filme para TV "Grey Gardens" baseado nesse documentário. Fiquei chocada e maravilhada ao mesmo tempo. E a tua filosofia não é barata mas sim aquilo que o filme transmite. Tenho mesmo que ver o documentário!
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