segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Febres de Domingo à noite

Ontem foi Domingo à noite e, como se não bastasse, chovia.
Fui a uma pastelaria ao pé da minha casa que tem sempre pão a sair, faça chuva ou faça sol (por acaso, fazia chuva), seja dia, seja noite (por acaso, já era de noite). Entrei e estavam dois gatos pingados sentados a uma mesa, à espera da fornada que estava para sair (dali a cinco, seis minutos, disse o senhor). Sentei-me também, à espera.
Havia um silêncio deprimente. Ouviam-se os pingos de chuva lá fora, um casal bichanava no canto, o balcão estava já todo despejado e limpo, sem bolos, sem nada. Esperava-se, apenas, pela última fornada de pão.
Talvez para cortar o ar estranhamente pesado, o senhor da pastelaria pôs um CD qualquer a tocar. Qual não é o meu espanto quando reconheço a voz do Donovan, a cantar o Atlantis. Já não ouvia Donovan há anos, e, que me lembre, sempre o ouvi em casa; nunca por nunca, mas mesmo nunca, estive ou soube de qualquer estabelecimento público que passasse como música ambiente a voz melosa do Donovan.
Sentada ali, à mesa da pastelaria, a um Domingo à noite, a chover lá fora, senti-me verdadeiramente uma Tom Waits, ou uma personagem de um dos quadros do Hopper. Talvez isto:



Ou, de forma ainda mais precisa, isto:



Faltava-me, talvez, um cigarro e uma voz de whisky queimado, como a Mercedes McCambridge, que dobrou a menina do Exorcista e fumou dois maços por dia para soar, mais ou menos, como um qualquer demónio. Nunca tinha passado por uma experiência assim.
Podia ter entrado um indivíduo de calças de ganga, botas caneleiras e chapéu à cowboy, com cara de Tom Waits em novo, que me tivesse dito:
- Mas estás aqui, miúda? Fartei-me de procurar por ti! Anda, que tenho o Jolly Jumper à nossa espera.
- Não, que ainda não te perdoei - diria eu, a chorar por entre o fumo do cigarro.
- Deixa lá isso, que não fiz por mal. Vamos embora ser felizes. - diria ele.
E pronto, lá iríamos nós a cavalo do Jolly Jumper em direcção ao pôr do sol, a chuva magicamente evaporada.
Mas não aconteceu nada disso. Veio a fornada de pão, comprei pão e pronto. Senti-me mesmo como num quadro do Hopper.
O Donovan é um grande cantor.

2 comentários:

aletis disse...

de cada vez que me sento num café sozinha, sinto-me uma personagem de um quadro de hopper. aliás, de cada vez que vou ao cinema sozinha ou que o sol me entra pelo quarto adentro e me apanha nua, sinto-me uma personagem de hopper. e de todos os cafés em que me sento, o que me faz lembrar mais os quadros de hopper é o il caffè di roma, por causa daquele verde forte, imagem da marca, e pelas suas mesas e cadeiras.

Rita F. disse...

É um bom exemplo.
Os cafezitos de beira de estrada também têm um ambiente solitário parecido com o destes quadros. A questão é que, em termos de cor, são o oposto. Até é impressionante como é que estes cafés conseguem ter tão pouca cor, por mais galhardetes de clubes de futebol que exibam. É mesmo um feito.