Nos últimos dias, a minha actividade central tem sido ler e rever a tese, numa procura incessante, cansativa e enervante de gralhas, falhas, negligências, enfim, tudo o que possa figurar numa terrível "errata". Infelizmente, já tive oportunidade de constatar que esta tal errata vai existir, e constará até de uma lista maior do que eu desejaria, mas enfim. E porém, as erratas são coisas tão reconfortantes. Errámos aqui e ali? Não há qualquer problema, é só escrever "onde se lê x, deve ler-se y", e está tudo absolutamente, integralmente resolvido. Fácil, barato, sem complicações. Um luxo.
Pus-me a pensar que, na vida, seria igualmente vantajoso e muitíssimo confortável conseguirmos sacudir a responsabilidade do capote e resolver todos os eventuais erros com uma errata (o meu estimadíssimo Soren Kierkegaard haveria de gostar disto. Que aconteceria ao teu drama das opções, querido Soren?). Era tão bom chegarmos ao pé das pessoas e dizer, por exemplo, "olha, sabes aquele dia em que não te quis pagar o café? Em vez disso, deves ler "queria muito ter pagado o teu café, mas não tinha troco". E elimina-se logo ali a ofensa.
Há uma longa lista de coisas para as quais eu precisava de uma errata, a saber:
onde se lê "esqueci-me de comprar o alpista certo para o passarinho quando tinha oito anos e ele ficou doente", deve ler-se "comprei o alpista certo e o passarinho ainda hoje está rijo, a cantar que se farta"
onde se lê "não me lembro do nome daquele menino que de vez em quando aparecia no colégio, muito amarelinho e magro, e que depois deixou de aparecer de todo", deve ler-se "lembro-me perfeitamente do nome dele, chamava-se Rui e gostava de brincar à apanhada"
onde se lê "há tanto tempo que não nos víamos, temos de combinar qualquer coisa" deve ler-se "desculpa lá, não tenho paciência para telefonar e provavelmente nunca terei, portanto deixemos a conversa de circunstância e poupemo-nos a promessas nunca cumpridas e eternos planos adiados"
onde se lê "aaah, perdi o telemóvel e os números todos que lá tinha, depois mudei de casa, foi por isso que nunca mais disse nada, sabes?" deve ler-se "deixei de gostar de ti, de ter paciência para um tipo de usa 20 perfumes e foi ver o Tomb Raider duas vezes ao cinema, desculpa lá, é a vida, não é nada de pessoal, qualquer tipo com tanta variedade de perfumes e com tanta pujança para o Tomb Raider nunca seria indivíduo a quem eu atendesse o telemóvel, percebes, e provavelmente também há muita coisa em mim que tu nunca suportarias, como por exemplo o facto de eu só gostar de usar um perfume e de não gostar do Tomb Raider, portanto deixemos as coisas como estão, cada um à sua vida, e muita felicidade para ti"
onde se lê "ah, tenho andado tão ocupada com a tese" deve ler-se "tenho andado ocupada, mas não o suficiente que não possa pensar em disparates e depois vir escrevê-los para o blog"
E etc.
Que conforto, que refrigério, que facilidade seria a vida com toda uma imensa errata onde pudéssemos escrevinhar. Mas as coisas não são assim, volto à conclusão de que Kierkegaard tinha toda a razão, há que escolher, escolher sempre, e viver com isso para o resto da vida. Façamo-nos à vida, pois. Que mais podemos fazer, não é.
Pus-me a pensar que, na vida, seria igualmente vantajoso e muitíssimo confortável conseguirmos sacudir a responsabilidade do capote e resolver todos os eventuais erros com uma errata (o meu estimadíssimo Soren Kierkegaard haveria de gostar disto. Que aconteceria ao teu drama das opções, querido Soren?). Era tão bom chegarmos ao pé das pessoas e dizer, por exemplo, "olha, sabes aquele dia em que não te quis pagar o café? Em vez disso, deves ler "queria muito ter pagado o teu café, mas não tinha troco". E elimina-se logo ali a ofensa.
Há uma longa lista de coisas para as quais eu precisava de uma errata, a saber:
onde se lê "esqueci-me de comprar o alpista certo para o passarinho quando tinha oito anos e ele ficou doente", deve ler-se "comprei o alpista certo e o passarinho ainda hoje está rijo, a cantar que se farta"
onde se lê "não me lembro do nome daquele menino que de vez em quando aparecia no colégio, muito amarelinho e magro, e que depois deixou de aparecer de todo", deve ler-se "lembro-me perfeitamente do nome dele, chamava-se Rui e gostava de brincar à apanhada"
onde se lê "há tanto tempo que não nos víamos, temos de combinar qualquer coisa" deve ler-se "desculpa lá, não tenho paciência para telefonar e provavelmente nunca terei, portanto deixemos a conversa de circunstância e poupemo-nos a promessas nunca cumpridas e eternos planos adiados"
onde se lê "aaah, perdi o telemóvel e os números todos que lá tinha, depois mudei de casa, foi por isso que nunca mais disse nada, sabes?" deve ler-se "deixei de gostar de ti, de ter paciência para um tipo de usa 20 perfumes e foi ver o Tomb Raider duas vezes ao cinema, desculpa lá, é a vida, não é nada de pessoal, qualquer tipo com tanta variedade de perfumes e com tanta pujança para o Tomb Raider nunca seria indivíduo a quem eu atendesse o telemóvel, percebes, e provavelmente também há muita coisa em mim que tu nunca suportarias, como por exemplo o facto de eu só gostar de usar um perfume e de não gostar do Tomb Raider, portanto deixemos as coisas como estão, cada um à sua vida, e muita felicidade para ti"
onde se lê "ah, tenho andado tão ocupada com a tese" deve ler-se "tenho andado ocupada, mas não o suficiente que não possa pensar em disparates e depois vir escrevê-los para o blog"
E etc.
Que conforto, que refrigério, que facilidade seria a vida com toda uma imensa errata onde pudéssemos escrevinhar. Mas as coisas não são assim, volto à conclusão de que Kierkegaard tinha toda a razão, há que escolher, escolher sempre, e viver com isso para o resto da vida. Façamo-nos à vida, pois. Que mais podemos fazer, não é.
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