Há, de facto, uma aura sanguinolenta a pairar sobre a cabeça de certas condessas. Além da Erzsebeth Bathory, a condessa-vampira sobre a qual escrevi aqui, também temos a Condessa de Ségur, que igualmente exerce em mim uma espécie de fascinação. Lembrei-me disto hoje à tarde, em que conversava com uma amiga minha e, entretidas na Fnac a olhar para os livros, nos deparámos com um exemplar do General Dourakine, da Condessa de Ségur. Deve ter sido dos livros desta senhora que mais li. Não me lembro bem, bem da história, mas tenho uma imagem algo vívida de que as cenas de chicotada (chicotada literal, isto é, pancada efectuada recorrendo ao uso de um chicote) eram inúmeras. Quando alguém fazia uma coisa mal (criança, criado, a má da fita), pimba, o castigo era chicotada de arrancar a pele. Depois havia a personagem do General Dourakine, que era apresentado como homem de grande coração, embora o adjectivo que mais se utilizasse para o descrever fosse "colérico"; era daquelas personagens de quem as criancinhas deveriam gostar porque, apesar de andar sempre aos gritos e desancar quem não fazia exactamente o que ele queria, era uma boa pessoa. Tenebroso.
Também me lembro do Bom Diabrete (acho que era assim que se chamava) e da Irmã do Inocente, este último uma coisa crudelíssima, de faca e alguidar, em que um pobre idiota de bom coração faz disparate atrás de disparate, é troçado por todos e amado por ninguém, a não ser a irmã, e no fim morre. Já não me lembro exactamente de qual a pedagógica mensagem que eu deveria ter aprendido com esta história, mas haveria uma, com certeza.
Não tendo evidência nenhuma do que vou dizer a seguir, a minha teoria é, porém, que a Condessa de Ségur tinha um pendor para a crueldade que seria talvez interessante estudar psicologicamente. Nem tudo é negativo, no entanto; lembro-me de que, no General Dourakine, aparecia às tantas uma certa personagem, pobre e entristecida, mas muito bondosa, que tinha fugido à Sibéria e era uma espécie de refugiado político, a quem o General dá abrigo, permitindo até que case com a neta, apesar da penúria do tal refugiado. Isto é edificante, há que admitir.
E há também que admitir que não é apenas a Condessa de Ségur que evidencia um certo comprazimento com a faca e alguidar; ainda no outro dia estava a reler uma edição de contos infantis de que gosto muito, porque tem ilustrações do Gustave Doré (vide imagenzinha) - adoro o desenho a carvão, cheio de pormenor e expressividade, deste senhor. E, dizia, estava entretida a ler os contos infantis e a constatar a sua violência incontida - o pai do Polegarzinho que abandona os filhos na floresta, para morrerem à fome ou comidos por uma fera; o gigante que quer comer os meninos; a bruxa da casinha de chocolate que mantém o Joãozinho preso numa jaula, na engorda, para o assar e comer; o temível, absolutamente criminoso Barba-Azul, que tem uma sala ensaguentada em casa onde guarda os cadáveres sanguinolentos das suas ex-mulheres, que ele próprio matou(!). Sinceramente, isto dito assim parece mais digno do jornal O Crime do que outra coisa.
E, no entanto, é engraçado como sou muito mais sensível a esta tal violência agora, na idade adulta, do quando lia estas histórias quando era pequena, em que o mundo maniqueísta onde Bem e Mal se digladiavam com toda esta intensidade fazia sentido.
Por isso é que me parece uma estupidez que se amenizem as histórias infantis (o Lobo Mau que não morre no fim nem come a Avózinha porque esta se esconde no armário, por exemplo); acho que faz parte da infância ver o Bem a vencer o Mal, violentamente, e ainda que seja apenas nas histórias.
Mas enfim, nada disto diminui a minha perplexidade relativamente à crueldade e chicotada e pancada e tortura de animais e quejandos que podemos ler nos livros da Condessa. Embora, entre esta última e a asséptica e querida Anita, eu prefira sem dúvida a Condessa sanguinária.
2 comentários:
Quando era pequenina o meu livro favorito era um chamado "as mais belas histórias da Condessa de Ségur". Ao ler o teu post fiquei muito confusa porque lembro-me de gostar muito do livro mas não me lembrava de cenas horripilantes com chicotes mas agora fui pegar no livro, que estava lá sozinho a ganhar pó, e é mesmo, tem chicotes!
Estou ainda um bocado embasbacada..
Tem chicotes e muito mais! Requintes de malvadez, mesmo.
Era uma marota, esta Condessa. Eu também não me apercebi disso em pequena, mas é assim, crescemos e custa muito destruir mitos de infância. :)
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