sexta-feira, 12 de junho de 2009

Beneficência

Quando se escreve uma tese, e tem se de ler a mesma tese vezes sem conta até se saber cada página de cor, há, como facilmente se calcula, alguns momentos de grande, incomensurável tédio. Alguns momentos, não muitos (pausa para absorver a ironia aqui contida). Outra consequência, além do tédio, é começar a reparar na forma como as pessoas falam, isto é, em qualquer pormenor que abstraia da tese.
Reparei que há pessoas que gostam muito, adoram, falar bom português. É uma idiossincrasia que têm. E, normalmente, estas pessoas gostam de partilhar o seu apreço pela língua com os outros, corrigindo-os amiúde, porque não suportam que a língua portuguesa seja maltratada, coisa que eu respeito e até apoio. Deste modo, quando dizemos, à frente de uma destas pessoas, "obrigado por teres aceitado", rapidamente recebemos a correcção "teres aceite! É 'teres aceite' que se diz!". Quando dizemos "isto está mais bem conseguido", outra útil chamada de atenção: "melhor conseguido! é 'melhor conseguido' que se diz!". De onde se conclui que, talvez, investir na aquisição da Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha eLindley Cintra, não seja má ideia - é a humilde recomendação que faço a este tipo de pessoas.
Também há outra conclusão a tirar daqui, que é o facto de as pessoas com esse hábito terrível de "corrigir" os outros serem algo insuportáveis Eu sei que o fazem por caridade; eu sei que há pessoas dotadas de conhecimento inabalável e inegável sagacidade intelectual, e que portanto encaram como um dever e sacrifício pessoais, e até sociais, corrigir a ignorância dos restantes miseráveis. Eu sei que estas pessoas que corrigem os outros apresentam um móbil extremamente altruísta, imbuído de grande generosidade. O meu apelo, porém, é que sejam um tanto ou quanto mais egoístas e refreiem este impulso de abnegação e amor ao outro, passando a corrigir menos. E o meu apelo deve-se a duas ordens de razões, sendo a primeira que quem passa a vida a corrigir os outros está, normalmente, errado e acaba por dar informações erradas, dando um triste e embaraçoso espectáculo; a segunda ordem de razões é que não enganam ninguém, meus amigos. Como disse o Marquês de Sade, homem que obviamente sabia do que falava, numa afirmação da Filosofia da Alcova que volto a citar, a beneficência é mais um vício do orgulho do que uma verdadeira ostentação da alma; é por ostentação que se dão alívio aos semelhantes, nunca é com a pura intenção de praticar um acto bom.

Pensar nisto.

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