quinta-feira, 8 de abril de 2010

Viver v. limpar


Em Inglaterra, há um programa em que duas senhoras muito bem compostas vão a casa de outras pessoas, um bocadinho porcas, e limpam-lhes a casa toda de cima a baixo. Na verdade, as casas que aparecem no programa são pocilgas imundas e certamente mal-cheirosas, lugares peçonhentos que não se compreende que consigam albergar vida humana.
Mas a verdade é que albergam. E com isto quero dizer que, sendo uma pessoa com todo o apreço por limpeza e boa apresentação, sendo até inclusivamente uma pessoa que limpa regularmente a sua casinha, varandas e tudo, e num dia bom até janelas e persianas, sendo uma pessoa desta índole, julgo, porém, que a limpeza é algo sobrevalorizado.
Não entraria nunca numa casa pocilga cheia de peçonha, mas se há algo que me enerva e que causa até um ténue sentimento de desprezo é uma casa a rebrilhar, a cheirar a Sonasol, tudo esfregado até, certamente, terem as unhas saltado dos dedinhos da pobre lavadeira. Não acho natural que os sítios sejam muito limpinhos, a não ser que estejamos a falar de um hospital ou de uma enfermaria. Uma casa onde vivem pessoas tem de ter a sua parte de higiene, a sua parte de arrumação e a sua quota de desarrumação acompanhada por um bocadinho de pó, uma nódoazita aqui e ali (desde que não sejam nódoas na roupa - nódoas na roupa são efectivamente horríveis). É normal. É humano. É sinal de que, naquela casa, as pessoas respiram, vivem, descontraem.
Odeio casas a rebrilhar de limpo. Faz-me lembrar a história do pobrezinho mas honrado, o que eu tenho é pouco, mas olhem tão bem apresentadinho que está. Faz-me lembrar o excerto do Lobo das Estepes, em que o Lobo se senta nos degraus de uma viúva, que os esfregava e voltava a esfregar, para se deleitar com a limpeza arrumadinha da pequena burguesia.
Esta limpeza arrumadinha é uma seca, é uma coisa anódina, é um eterno almoço de Domingo que nunca mais acaba, é a Última Ceia na parede, é aquela árvore que se pendura no carro a deitar cheirete, é o garrafão de vinho tinto na praia, areia nos óculos, cães lulus no sofá (acho que estes cães se chamam poodles e eu não os suporto por serem antipáticos e sempre à beira do colapso nervoso), criancinhas de três anos com pulseiras a desfazerem-se em gritos, tudo condensado num eterno bocejo, aborrecimento, tédio, tédio, tédio.
É por isso que, para mim, uma casa limpa só se suporta com conta, peso e medida. Como tudo na vida, as nossas escolhas deverão ser, à semelhança do que escreveu George Orwell, entre ler e fumar, e não entre viver e limpar. Escolho sempre as primeiras opções.

5 comentários:

Destination disse...

Concordo plenamente... eu gosto de revistas em cima da mesa da sala, desordenadas, de peças de decoração arrastadas para colocar uma chávena ou um prato do lanche fora da cozinsa.. livros na cabeceira, papéis espalhados na secretaria. Com peso e medida são eles próprios objectos de decoração, sinal de vida, de alegria, de que realmente se vive a casa e não apenas na casa.

esquilinho disse...

Tenho uma amiga que, de vez em quando, chega ao pé de mim e me descreve, felicíssima, a sua rotina de limpeza do dia anterior - basicamente esfregar a casa toda de cima a baixo com lixívia, incluindo a loiça das refeições… Fico cansada só de ouvir e penso para mim própria como sou feliz por chegar a casa depois do trabalho e ficar simplesmente a vegetar no sofá.

fado alexandrino. disse...

Este post deu-me uma imensa alegria e depois uma grande tristeza.
É que, como vivo sozinho e não me apetece estar a pagar dinheiro para me virem limpar a casa sou eu que faço tudo, uma comida mal amanhada, fazer a limpeza da casa e passar a roupa a ferro, engomar como se diz cá.
E por isso como é feito com as limitações masculinas sai um bocadinho trapalhão.
E por isso fiquei muito feliz por o pó que há por aqui ser considerado como natural.
Mas acontece que também tenho Uma Última Ceia na parede e eis a razão porque entristeci e isto pouco depois de termos perdido em Liverpool fez-me chorar.

Desobediência Vegana disse...

Na verdade não existe lugar assim. Pois até mesmo os hospitais são sujos, é impossível um lugar completamente limpo. Mas, as pessoas com mania de limpeza jamais pararam para pensar nisso.
Eu tenho fases em que adoro tudo organizado, outras em que gosto de um desalinho em tudo. Mas o fato é que, por mais que limpemos as coisas, há bactérias e baratas em todo o lugar. Infelizmente a vida humana convive com isso. E foram os humanos que trouxeram ratos, baratas e outros seres para nosso convívio, não é culpa deles.
Grande abraço e parabéns pelo texto!

Desobediência Vegana disse...

Outra: os poodles, coitados, não tem culpa de serem assim....hehehe
são resultado de cruzamentos artificiais feitos pelos seres humanos e uma das raças mais inteligentes que se tem notícias...

Abraços carinhosos... :)