terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Apuro-me em lançar, originais e exactos, os meus alexandrinos...


Contaram-me uma vez que Almeida Garrett, esse grande vate do Romantismo que, aliás, introduziu o próprio Romantismo em Portugal, que advogava os arrebatamentos da alma e a inspiração do poeta, deixou caderninhos de rascunho de esquemas e esquemas de rimas (ababcc, aabbcc, etc.), métricas e formas, que depois preenchia com palavras diferentes. Isto é, primeiro decidia-se pela forma, pelo esquema rimático, e só depois é que aparecia a tal inspiração, os tais tormentos de amores, o ignoto deo e tal.
E isto vindo de um poeta romântico. É claro que o poeta como a flauta de Deus, que Shelley descrevia, não poderá nunca ser verdade. Os poetas parecem-me, acima de tudo, humanos, pelo menos os bons poetas. Não estou a falar, obviamente, de poetas de cantina, como aquele rapaz que, uma vez, se sentou ao pé de mim na cantina do liceu e me perguntou se eu gostava de poesia e se conhecia Fernando Pessoa. Eu disse que sim. Ele aproveitou para dizer que, caso eu não soubesse, ele próprio escrevia poemas e as pessoas a quem ele mostrava os poemas diziam que eram muito parecidos com os do Fernando Pessoa. "Às vezes, as pessoas até me dizem que não sabem distinguir!", dizia o rapaz. Pobre Pessoa.
Este rapaz da cantina não era, obviamente, um poeta. Talvez fosse, porém, tocado por Deus. Parecia ter loucura suficiente para isso.
Mas voltando a Garrett. Imagino-o à secretária, de língua de fora, num esforço burguês para acertar com a rima e a métrica, e depois ler o poema finalizado, com um sorriso satisfeito, tal como um alfaiate olha para os ombros perfeitos do casaco que acabou de coser. A diferença é que, no caso de Garrett, o resultado era um poema. Um poema verdadeiro é sempre uma coisa inexplicavelmente estrondosa que, porém, resulta de um conjunto de tarefas, pelos vistos, tão pouco inspiradoras, tão pouco devedoras das musas, com tão pouca glória... talvez resida aqui o mistério da Literatura. É trabalho, como qualquer outro trabalho, mas com resultados gloriosos.
É por isso que sei que não sou escritora (quer dizer, não só por isso, mas principalmente por isso), embora tente permanentemente escrever. Tudo aquilo que escrevo está rigorosamente dependente da inspiração. Quando não tenho inspiração, que é na maior parte dos dias, não consigo escrever. Não sei o que é trabalhar para escrever um conto ou um romance, porque não sei escrever sem essa coisa desconhecida que é "a inspiração". E, até aprender como é que se faz da escrita trabalho, nunca poderei, verdadeiramente, ser "escritora". E eu queria tanto.
Estou bem lixada.

3 comentários:

lenor disse...

Há pessoas que num dia trabalham tão bem que não precisam de trabalhar o resto do mês. Quer dizer, deve haver. E tu poderias ser uma delas se quisesses arriscar. Há quem arrisque. Há quem viva a arriscar, sem nós sabermos imaginar como é possível.

Rita F. disse...

Viver a arriscar é um bom plano. A mim, parece-me que sim. Hei-de experimentar, um dia.

arribro disse...

é um lugar comum mas de facto a inspiração são só os tais 5%...