quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A cada um, sua camisola




Há coisas que me fazem muita espécie, uma espécie desesperada, se é que isso existe (deve existir - as espécies, há-as de todas as formas e feitios, não é?). Bom. Uma das coisas que me provoca essa tal espécie é o fenómeno do "vestir a camisola", que me atormenta verdadeiramente (a metáfora, não o acto literal de se vestir camisolas, embora, como se verá, o vestuário também é coisa para me fazer espécie).
Atormentam-me as pessoas que assumem uma identidade profissional como se isso correspondesse à sua verdadeira identidade. Por exemplo, ontem fui ao supermercado com uma amiga, e dos altifalantes saía uma música verdadeiramente irritante, as palavras cuspidas muito depressa, "venha ao Pingo Doce", ou algo semelhante, uma melodia rápida e tonta a martelar o ouvido. A minha amiga comentou com a senhora da caixa que a cançãozinha não tinha graça nenhuma - era "um bocadinho feia". "Olhe que não", respondeu a senhora, "parece, mas não é". A senhora da caixa parecia tão convicta desta apenas aparente fealdade da música ("parece feia, mas não é verdadeiramente feia - dê-lhe uma hipótese e descobrirá o verdadeiro Eu desta música, que é, no seu íntimo, um amor de pessoa") que não tive coragem de a rebater, tanto mais que a mesma senhora da caixa começou a explicar pormenorizadamente todos os pormenores da publicidade ao Pingo Doce, e os "spots" novos que a televisão ia passar, e que giros que eles eram.
Por um lado, esta convicção leal à entidade empregadora é, até, comovente. Por outro lado, não é.
O exemplo mais ilustrativo, e literal, do "vestir a camisola" produziu-se quando entrei para a faculdade. Era uma faculdade conservadora, pesadona, daquelas que assustam mal transpomos a soleira da porta, um cinzento opressivo por todo o lado, carantonhas envelhecidas e de poucos (pouquíssimos) amigos nas aulas. O tipo de faculdade que existe, verdadeiramente, para "formar" os alunos, o que seria até algo bastante positivo, não fosse o facto de essa formação corresponder, verdadeiramente, a uma "formatação". E que melhor exemplo desta formatação do que quando comparávamos os colegas dos mesmos anos que, entrando na faculdade como pessoas, vá, normais, chegavam ao terceiro ano (nem sequer esperavam pelo final do curso) absolutamente transfigurados - as calças de ganga davam lugar a sóbrias calças pretas ou cinzentas, ou saia travada e collants para as senhoras; os blusões descontraídos, as camisolas largas eram trocadas por pullovers, camisas engomadas e repuxadas, saias-casaco, os queridos ténis Converse-All Star (ainda hoje tenho os meus, ai pois tenho) substituídos por camafeus horríveis com berloque, se preciso fosse, ou sapatos de enfermeira pretos ou castanhos, enfim - um pavor. Toda uma farda entediante que parecia cumprir um único propósito, o de esconder qualquer tipo de juventude, descontracção, alegria. E as pessoas conformavam-se com esta necessidade de vestir este tipo de camisola, porque só assim eram "pessoas sérias", alunos responsáveis, confiantemente trilhando o caminho do sucesso que, pelos vistos, era o único objectivo que os havia levado àquela faculdade. Pessoas que se levam a sério, respeitáveis.
Não me vou esquecer de uma manhã parda (ai que descrição tão original de uma manhã de Outono, realmente, este blog é só originalidades), dizia, não me vou esquecer de uma manhã parda em que vi um rapaz entrar para a faculdade e, não o reconhecendo, tive porém a nítida sensação de já o ter visto antes. Tinha barba (uma espécie de "pêra"), blaser azul escuro, calças cinzentas, os livros debaixo do braço, um ar de pedra, postura sólida, a transbordar daquela confiança excessiva da arrogância. Eu sabia que conhecia aquela cara, e de facto conhecia - era um rapaz que se tinha sentado, há dois anos atrás, ao pé de mim, num enorme anfiteatro, de T-shirt e calças desbotadas, e que me tinha perguntado o significado de "arrogar".
Enfim. Vistamos camisolas num dia de Inverno, quando precisamos delas, e vistamos apenas as camisolas que são nossas. Camisolas que nos querem oferecer ou impingir não são grande coisa, vem uma chuvada e esfarelam-se todas.

2 comentários:

Xantipa disse...

Lembro-me tão bem de andares nessa faculdade! Em boa hora a deixaste e te mudaste para a vizinha da frente!

Rita F. disse...

Em boa hora, de facto. Embora a vizinha da frente também deixasse muito a desejar, mas por outros motivos que nada tinham a ver com camisolas. Era mais a "clientela". :)