sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Um caso da vida

Ao que parece, dizer ao chefe "pó caralho", tal como um cabo da GNR escolheu fazer recentemente, é mera virilidade verbal, e não indisciplina e insubordinação. Por mim tudo bem, gosto de saber que as relações laborais neste país são cordatas e compreensivas relativamente às liberdades e vernáculos da língua portuguesa; é, como se sabe, sinal de civilização e não de atraso, ainda para mais quando tal exemplo emana das forças de autoridade, mormente GNR e juízes da Relação. Muito me apraz tudo isto.
E porém. Há qualquer coisa neste caso que me incomoda um tanto ou quanto, e não é o vernáculo, que com ele posso eu bem. É a expressão "virilidade verbal", que foi o que safou o cabo da GNR de ir a julgamento. Se calha ele ter utilizado uma expressão menos viril e nitidamente menos à homem, como por exemplo "então faça favor, o senhor e a digníssima sua mãe que passa recibos verdes todas as noites num prostíbulo de meu conhecimento, de se dirigirem a um local, ou entidade, desagradabilíssima e mal-cheirosa onde nenhum ser humano deseja encontrar-se, vulgo 'merda'", se o cabo da GNR tivesse dito isto, assim já com certeza mereceria ser julgado e condenado, porque coisas deste calibre não são viris, como se sabe. São um tanto ou quanto efeminadas, mariquinhas, vá, de modo que neste caso lá iria o homem parar à barra do tribunal. E é disso que aqui estamos a falar, é isso que aqui realmente interessa - não é se a linguagem é ou não vernáculo, se é ou não adequada à situação, mas sim se é viril. É isso que interessa a todos nós, especialmente no local de trabalho.
De modo que aquilo que me incomoda, e que não tive ainda oportunidade de explanar, dado o longo e aborrecido intróito com que entretanto me fui distraindo, é que, sendo eu uma falante de português do século XXI, e vivendo em Portugal, não estou exactamente a ver quais as expressões de "feminilidade verbal" que me poderão acudir quando tiver de ir trabalhar e tiver vontade de mandar tudo pó caralho. Sim, porque esta pode ser uma digna expressão linguística de virilidade, mas o sentimento é universal e tão comum a homens como a mulheres. A pergunta que me ocupa é : quais as expressões encantadoras, equivalentes a este "pó c...." (já repeti vezes suficientes), que poderão as mulheres usar? Expressões de feminilidade verbal, por oposição a virilidade verbal - não estou a ver, nem vi que os senhores juízes estivessem preocupados com esta problemática, que claramente institui uma discriminação que eu não estou disposta a aceitar.
Não sei muito de Direito, mas sei alguma coisa, uns conhecimentozinhos mínimos. E sei, por exemplo, que o Estado de Direito assenta na justiça, e que a justiça do Estado de Direito assenta na equidade, que é dar a  cada um, no caso jurídico específico, a parte que lhe é merecida. Ora, neste caso jurídico em concreto, se o homem adquiriu para si expressões de virilidade verbal com que se pode aliviar linguisticamente, parece-me inteiramente justo que à mulher seja igualmente atribuída a devida escapatória linguística, vernácula e retumbante, para usar à vontade no local de trabalho, sem sofrer punição abusiva por parte dos superiores hierárquicos. Pensem nisto, senhores juízes. Pensem em dar a todas as mulheres deste país o justo direito de proferir "pó c....." ou, quem sabe, "pá c...." sem sofrerem represálias laborais e sem serem olhadas de lado socialmente. Insto-os, igualmente, a elaborarem uma pequena listagem, se quiserem, até, poderão "elencar", como alguns de nós gostam de fazer, expressões de feminilidade verbal para uso e alívio de todas as mulheres, duas vezes escrava, duas vezes proletária, já dizia o Marx (os homens são só uma vez), e que bem merecem uma benesse, um sinal de que a justiça portuguesa se preocupa com elas e está atenta à sua situação.
É isto que eu peço. Não é pedir muito. Vejam lá isso.

7 comentários:

V disse...

Então, Rita? Não lê blogues cor-de-rosa? Uma das expressões mais usadas pelo mulherio é "cabra" ou "bitch".
Exemplos:
Giselle Bunchen - bitch.
Sarah Jessica Parker - bitch.
Colega favorecida pelo patrão devido ao par de mamas que tem - cabra.
Chefe que não percebeu que temos vida própria fora do emprego - grandessíssima cabra.
E por aí vai.
Não tem a pujança da expressão usada pelo cabo da GNR, mas considero um bom exemplo da linguagem que as mulheres usam.

fado alexandrino. disse...

Excelente post um pouco amargurado de feminismo.

Não é isso que está em causa embora a desastrada intervenção do Meritíssimo ajude a desfocar a ideia primária.
Este entendeu que a expressão não era um insulto porque faz parte da linguagem corrente e, deixe-me fazer um aparte, já a ouvi de lindas bocas femininas muito descontraídas no comboio de Sintra.
E é verdade e escuso de estar para aqui a dar exemplos mas quem não ouviu ou disse "és boa pra c...".

Aliás certamente que conhece uma boa quantidade de palavras da nossa língua que se empregam num sentido completamente diferente daquele que originalmente tinham.
De momento não me estou a lembrar de nenhum exemplo porque estou mas é a pensar numa gaja boa como o milho.

à bas, les banquiers, les lieutenants, les generaux disse...

"À bas" é viril?...

André Breton estipulou que a única atitude surrealista É sair para a rua armado e disparar ao acaso.
(les Manifestes, suponho)

Previu ainda que em seguida o encerrariam num hospício perpétuamente ( "talvez assim me deixassem em paz...")

que um guarda armado recorra à língua em detrimento do chumbo é, digamos, um florilégio.

Woman Once a Bird disse...

Grande, grande post (afirmou Woab com uma veemência quase viril).

josépacheco disse...

Sou só um novo seguidor. Mas deslumbrado. E tão deslumbrado, que lhe enviei imediatamente um dardo que me tinha sido enviado por Betarix. (Calculo que não seja nada de novo. De certeza que já recebeu dezenas de dardos destes...)!

Rita F. disse...

V, tem razão, tinha-me esquecido dessa idiossincrasias linguísticas... lindíssimas, diga-se.

Fado, independentemente do milho que é bom ( :D ), não acha que o caso é ridículo?!

WOAB, eu também tenho sempre o intento e a intenção de ser muitíssimo viril na linguagem. A linguagem serve é para isso.

José, por acaso nunca recebi dardo nenhum nem sei bem como funciona, mas acredito que seja uma coisa boa, e portanto agradeço-lhe a simpatia. :)

fado alexandrino. disse...

Absolutamente de acordo.
Se algum julgava que isto se resolvia com uma perna ás costas segue o link do acórdão

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/85e3b7ab708fb737802577dd00582b94?OpenDocument

Palavras caras, justiça do mesmo valor.