quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Todos somos super dotados

Quando as pessoas me começam a falar dos filhos, eu começo na contagem decrescente até ouvir "até me chegaram a dizer que o meu filho era sobredotado" ou, numa versão assim mais moderna, "até me chegaram a dizer que o meu filho era super-dotado". 
Eu fico feliz com estas novas gerações que prenunciam um futuro tão brilhante para o país, com hordas de crianças que, não lhes basta a sobredotação, têm até uma super-dotação espectacular. Têm quatro anos e já sabem falar ao telemóvel, jogar computador e debitar o nome das personagens do Noddy de cor, sinais deslumbrantes de inteligência, sinais esses que também se revelam quando as criancinhas vão aos Sequins de Ouro e Toma Lá Uma Canção Para Ti e sei lá o quê, em que, sob o olhar atento e indesculpável dos paizinhos, se desfazem a serem queridinhos e a cantar música para adultos da maior qualidade. Eu adoro ver estas evidências conspícuas destas crianças super-dotadas, é uma coisa que consola e que faz perceber que estamos mais que preparados para enfrentar a crise e evitar o FMI.
Bom. Isto para dizer que, na infância e na adolescência, é fácil ser-se "super-dotado", aliás - é fácil ser super em tudo. Normalmente, numa escola normal, é muito fácil ter aquele olho que os outros, ao que parece, não têm, e ser-se rei. Basta dizer umas coisas engraçadas e chegou-se lá. Mas, a não ser que sejamos Mozarts, a escrever Requiems aos seis anos ou qualquer coisa equivalente, o que eu duvido que seja possível até para o próprio Mozart, a nossa esperteza e sobredotação rapidamente se revelam naquilo que realmente é: a normalidade. Quando se chega ao mundo real, há muita gente que é efectivamente pior do que nós, mas há indubitavelmente mais gente que é muito melhor e ao pé de quem não somos nada de especial. A não ser, lá está, que sejamos o Mozart, e, à partida, não somos.
"Don't try", dizia, ao que parece, Bukowski. Por outro lado, se formos ler antes  Kavafis e a sua bela Ítaca, aprendemos que o que verdadeiramente conta não é o destino, é a viagem. Podemos encetar a nossa viagem para chegarmos ao patamar do Mozart, mas não faz mal se nunca lá chegarmos, como provavelmente nunca chegaremos. É um esforço honesto, pronto, uma forma de dar dignidade à nossa condição humana.
Uma vez, uns amigos meus foram ver um concerto com um daqueles pianistas adorados pelo mundo inteiro, não me lembro quem era. No fim, diz uma, sonhadora, "ah, será que algum dia eu conseguirei tocar piano como ele?!", ao que um outro amigo, realista e pouco dado a confortos, replica, "não sejas parva. É claro que não".
Não sejamos, nós, parvos. É claro que não. Mas enfim, podemos sempre pensar que sim. O sonho é uma constante da vida, para terminar o post com esse outro enorme poeta António Gedeão. É muito bonito pensar assim.

4 comentários:

fado alexandrino. disse...

Muito obrigado por trazer aqui estes dois génios.
O Requiem KV. 626 foi oportunamente publicado no meu blog na versão Philips 411 420-2.
De Kavafis tive a irrepreensível edição da Editorial Inova, emprestei-o nunca mais o vi.

Rita F. disse...

Não sei qual é a versão que aqui está, Fado. Foi a que me pareceu mais bonitinha, de umas quantas de encontrei no Youtube (apelidar a Lacrimosa de "bonitinha" deve ser um crime punível até três anos de prisão, não? :) ).
Faz parte da vida do leitor perder livros por ter emprestado, acho eu. Eu perdi O Processo e o Catcher in the Rye. Não eram edições irrepreensíveis, mas eram edições que eu agora vou ter de voltar a comprar.

Brandie disse...

É isso e ver as mãe a compararem as aquisições que os filhos foram fazendo e em que idade: "ai o meu nessa idade já falava tudo"...pois sim.

fado alexandrino. disse...

Conhece certamente, mas no cimo da Calçado do Carmo Nr. 50 há um alfarrabista (Livraria Antiga do Carmo)que tem tudo. Falar com ele é um espectáculo, sabe práticamente de cor todos os livros publicados.
Vale uma visita, estive lá hoje.