segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Umas coisas em que pensei por ter ido visitar o Museu Nacional de Arte Antiga

Há uns dias, devido ao tempo sombrio de invernia, fui revisitar o Museu Nacional de Arte Antiga (doravante MNAA, porque se o MoMA é MoMA, não estou a ver porque é que o Museu Nacional de Arte Antiga há de ficar atrás e não ser MNAA). Mas enfim. É bom ir a museus e ao cinema quando está a chover e faz frio. Consola muito. De modo que fui ao MNAA. 
Já não ia há uns anitos, e soube-me bem ver a Custódia de Belém e as outras custódias todas, muito giras, muito resplandecentes, e os biombos japoneses com os portugueses de nariz grande, e as reliquiazinhas de anjinhos gordos de olhinhos fechados, com ar muito beatífico, tão patusquinhos e queridos. E depois chega-se à parte da pintura portuguesa que, não contanto com os omnipresentes Painéis de S. Vincente, e independentemente da mestria toda das técnicas pictóricas, e das grandes influências flamengas, mas que bem, entre estes quadros portugueses e um pintor da Flandres daqueles a sério a gente nem vê diferença e etc. e tal, dizia, respeitando e apreciando tudo isto, a verdade é que uma pessoa sai das salas de pintura portuguesa com nada na cabeça sem ser Anunciações, Visitações, Calvários, Descidas da Cruz, Ascenções, e na sala a seguir Anunciações, Visitações, Calvários, Descidas da Cruz, Ascenções, e assim sucessivamente até se chegar à secção da pintura europeia e encontrar alguma variedade, pronto, uma naturezazinhas mortas, uns retratozitos, umas quantas coisitas do quotidiano, até aquele quadro de autor anónimo (português, por sinal) com um Lucifer animalesco e emplumado a cozer toda a gente viva, uma visão do Inferno do mais tenebroso que há, até este quadro, pela sua bizarria, serve para desenjoar porque marca a diferença, como se costuma dizer:


Não venho para aqui desdenhar da pintura portuguesa ao longo dos séculos, era o que faltava, e quero deixar bem claro que o acervo do MNAA é para ser respeitado e apreciado; muito menos  rejeito pintura de temática religiosa, pelo contrário - costumo gostar muitíssimo. Até há quadros que arrasam uma pessoa, extraordinários como este Ecce Homo que deixo aqui  à esquerda, ou coisas como uma obra que veio do Convento de Cristo e está agora no MNAA, não me lembro do nome do pintor, mas que representa, lá está, a Ascenção, e só se vêem os pezinhos de Cristo. O resto do corpo, como exemplarmente se compreende, ascendeu.
No entanto, o que resulta deste visionamento todo de tanto Jesus Cristo  atarefado, para cima e para baixo, na Cruz, a descer da Cruz, a subir aos Céus, enfim, o que resulta de tanta obsessão com a representação de Jesus Cristo, é que o espectador tem alguma vontade, a certa altura, de ver um quadro diferente, de conhecer um mestre português que se tenha preocupado com outras coisas, sei lá, uns amigos a jogar às cartas com um auto-retrato enxertado, um brinco de pérola, um rapaz mordido por um lagarto, uma maja desnuda, uma Afrodite numa concha, uma Ariadne abandonada, uma parede iluminada pela luz da manhã que entra por uma janela, retratos com olhos intensos, um Perseuzito, uma Andrómedazita, umas temáticas assim mais gregas, uma águia a comer um fígado que se regenera durante a noite, uns arrebatamentos mais renascentistas, ou simplesmente coisas da vida normal, do quotidiano, comida, bebida, olha o José Malhoa que pintou aquele quadro dos bêbedos, uma coisa assim para a pessoa se ir entretendo. 
No entanto, do século XIV ao século XVII, o que parece ter preocupado os pintores portugueses é a tal questão do rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Isto até é compreensivel, pois não me parece que haja ser humano imune a este rogo. Até acho que isto está presente na vida de toda a gente e que nem o Nietzsche nem o Marx se livraram. Não deixa, porém, de ser revelador tanta preocupação ensismemada com Jesus Cristo em toda a forma e feitio - um país que, pelos vistos, não teve mais nada que pintar durante séculos e séculos e séculos e séculos. Até para o próprio JC deve ser, digo eu, uma trabalheira tal que cansa.
Enfim. Como perguntava António Nobre, onde estão os pintores do meu país estranho, que não vêm pintar? Cadê?

3 comentários:

murmuria disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
murmuria disse...

É engraçado que quase não li este post por causa das imagens que escolheste, "ui, tem pinta de ser uma ode ao tédio, este" e resolvi deixá-lo quietinho na zona dos "unread items" até me dar vontade de ler. Enfim, eu já devia saber que o que tu escreves raramente me cansa, recebo sempre os teus textos com alegria, quanto mais longos, melhor e, lá está, este não foi excepção.

Pouco sei de História da Arte em Portugal e é possível estar enganada (aliás, espero mesmo estar), mas no Passado (mesmo para além dos séculos que mencionaste), o contributo dos portugueses no Mundos das Artes parece-me, efectivamente, um pouco vazio, o que me deixa triste. Não que não os houvesse com talento, o problema é que eram todos muito atadinhos. E É uma pena.

(E, sim, eu sei que há excepções, Negreiros)

Margarida Correia disse...

Nunca fui ao MNAA mas gosto deste Ecce Homo de autor desconhecido, por isso é que vim parar aqui.
Os autores portugueses, espanhóis e italianos a partir de certa altura eram mais católicos que o resto da Europa. Em comparação com os italianos , os portugueses não tinham a influência pagã da Antiguidade que fez da pintura renascentista italiana uma salada de crenças e de temas. Querer que os portugueses tivessem retratado aquilo que não lhe dizia respeito nem lhes interessava é que é quere-los "atados" sem que tivessem podido exprimir a sua própria cultura. Pintar na maioria das vezes era um ofício e não um hobbie, cada um fazia aquilo que lhe pediam e não aquilo que lhe apetecia.