sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Tralha

Há pessoas de interiores. Não é que passem o dia todo em casa, mas vivem em interiores, em espaços privados. Não quer dizer que seja difícil entrar nestes espaços - às vezes, é muito mais difícil sermos próximos de pessoas extravagantes do que destas pessoas que procuram a intimidade e o intimismo. Está em tudo o que fazem, nos escritores que escolhem para ler, nos filmes que gostam de ver, na forma como se relacionam, ou preferem não se relacionar, com o mundo. Têm a desvantagem de carregar sempre consigo um fardo que faz impressão, parece que tudo lhes cai nos ombros, pensam demais, martirizam-se. 
No fundo, toda a gente é assim. Mesmo aqueles que vivem para fora, exuberantes, vivem, na verdade, em casa. Nunca conseguimos sair de casa. Podemos é pensar mais, ou menos, nesse fechamento que é a vida.
Não sou grande leitora de Vergílio Ferreira, porque, como a Aparição nunca me seduziu de forma alguma, acabei por ler pouco do que escreveu. Mas li o Pensar, e neste livro ele diz qualquer coisa como "quando morreres, há uma data de tralha que morre contigo, e imagina o que seria se alguém te tivesse dado um encontrão para te obrigar a deitar essa tralha toda fora". É esta a ideia, e disto nunca me esqueci.
É que nem conseguimos imaginar a tralha que os outros carregam. Imaginamos a nossa, porque dela não nos escapamos. Mas toda a gente tem uma tralha que nunca mais acaba. Alguns são espertos, vão deitando alguma tralha fora, mas outros acumulam, acumulam, acumulam, e quando isso acontece só há duas hipóteses, a meu ver, ou se enlouquece, ou se torna poeta. O problema é que a maior de nós não é poeta.
Mas enfim. Fora isso, como diz o Sérgio, cá vamos andando com a cabeça entre as orelhas. Há coisas em que não vale a pena pensar.

3 comentários:

Mónica disse...

Da tralha, como do seu proprietário, há que fazer o luto. Quando o meu irmão morreu (ele tinha 23 anos e ninguém podia supor que isso lhe/nos pudesse acontecer), eu ofereci-me estoicamente para tratar da sua tralha. Depois de várias tentativas em que ficava a olhar para cada coisa (de uma caneta publicitária a um rascunho da faculdade) como se aquilo não fosse dele - mas ELE - desisti. Ficou tudo dentro de uma caixa, à espera (ainda hoje, 7 anos depois) que algum de nós consiga, um dia, voltar a abri-la.

Alice disse...

Gostei muito do texto e tens toda a razão.

Glengarry Glen Ross disse...

se gostas de interiores fazia-te bem ver um filme com o Jack Lemmon chamado algo como The (...some american surname)Leads. Passa-se ( todo!)num escritório e é pleno de tensões másculas middle of the road. Talvez Roosevelt fosse o Pai, não sei nem interessa.