sexta-feira, 29 de maio de 2009

O meu moinho


Hoje tenho muito para fazer, embora não pareça, pois estou aqui a escrever. A verdade, porém, é que estou efectivamente muitíssimo ocupada. No entanto, decidi fazer uma pausa não com Kit-Kat, mas antes com a memória de um livro que li imensas vezes quando era mais pequena, Cartas do Meu Moinho, de Alphonse Daudet. É uma colecção de histórias, ou cartas, sobre as personagens e a vida rural francesa que o narrador envia aos seus amigos da cidade, depois de ter decidido mudar-se para um moinho desabitado. A maior parte das histórias, pelo menos aquelas que eu me lembro, são melancólicas e tristes, ainda que, como diria Herman José a imitar Carlos do Carmo, tenham alguns "apontamentos de humor". Alguns destes contos permanecem ainda muito vívidos na minha memória, mormente (adoro este advérbio) A Cabrinha do Senhor Seguin e O Moinho do Tio Corneille (não sei se é exactamente assim que se chama este último conto, mas partamos do princípio que sim).
Vou deixar a história da cabrinha para outro dia e concentrar-me apenas no Tio Corneille, que é mais relevante para dias de trabalho como o de hoje. O Tio Corneille era um moleiro simpático que vê a sua actividade desprezada e os seus colegas transformados em peças de motor após a proliferação de fábricas e máquinhas que moem cereais mais eficazmente e fazem farinha mais branca. Todos os moinhos da região fecham, desmoronam-se em ruínas ou são invadidos por ratos e bicharada, mas o do Tio Corneille não. Todos os dias, os habitantes da região viam as velas do seu moinho enfunadas, a enfrentar vitoriosamente o vento, a rodar, a rodar, enfim, a moer grãos e a trabalhar. Ninguém sabia onde ia o Tio Corneille buscar clientes e trabalho, mas a verdade é que, dia após dia, lá se afadigava ele no seu moinho, sob as grandes velas sempre em orgulhosa circulação.
Até que um dia a neta do velhote, que saíra de casa já não sei porquê, volta para que o avô conheça o seu noivo, com quem tem casamento marcado para breve. Quando os jovens chegam ao moinho, não encontram o Tio Corneille, e decidem entrar. O que vêem é a mó em movimento, não triturando alegres grãozinhos de cereais, mas antes a moer, pobre e esforçadamente, pedra e cascalho. À falta de trabalho, mas recusando condenar o seu moinho à morte e à inutilidade, era assim, com pedra e lixo, que o Tio Corneille salvava a dignidade das suas velas enfunadas. Não me lembro como acaba - acho que o Tio Corneille regressa, vê o seu segredo desvelado, e chora muito e zanga-se. Penso que há algum final feliz para esta história, mas o que é certo é que não me lembro, só me lembro disto, do Tio Corneille deseperadamente salvando a glória do seu moinho e do seu trabalho.
O que adoro nesta história é o facto de o Tio Corneille gostar tanto do seu moinho e do seu trabalho. Do pouco que percebo de Hegel e Marx, o que me parece é que a questão da dialéctica senhor/escravo está muito bem vista - quando transformamos o mundo com o nosso trabalho, somos livres; quando deixamos que alguém o faça por nós, dependemos do trabalho alheio e somos nós os verdadeiros escravos. O Tio Corneille não queria ser escravo, e por isso sabia que o seu querido moinho era a sua salvação.
Acontece que hoje tenho pilhas de trabalho, mas nenhum deste trabalho serve para salvar o meu moinho. Não tenho nenhum moinho para salvar, com alguma pena minha. E por isso gosto tanto do Tio Corneille, apesar de a sua história me entristecer. Mas enfim, como me disse o meu pai quando lhe contei que as Cartas do Meu Moinho me davam para a melancolia, "pões-te a ler literatura, ainda por cima francesa, ainda por cima romântica, e é no que dá".

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