E como eu estava a dizer, o filme Sunset Boulevard é dos meus preferidos. Neste filme, uma velha e decadente actriz, Norma Desmond, aka Gloria Swanson as herself, uma pobre criatura bela e esquecida, deselegante e demente na sua velhice precoce, apaixona-se por um inútil, no entanto jovem, escritor. Este último não tem grande paciência para a fragilíssima Norma, mas vê-se reduzido à evidência de ter de a aturar, uma vez que nem dinheiro tem para pagar a renda e "gasoil" para o carro, ao passo que a actriz tem dinheiro a jorros, e não se importa nada de lhe pagar tudo e mais alguma coisa. De modo que o escritor passa a ser propriedade de Norma, que remédio tem ele. Ora, a Norma não se apercebe disto - como passa a vida sozinha e louca, aparece-lhe um jovem no fulgor da idade e ela deslumbra-se e arrebata-se. Compra-lhe tudo para lhe demonstrar o seu amor, e a certa altura oferece-lhe uma pequena cigarreira (é assim que se diz "caixa para guardar cigarros"?) de prata, oferecida por Cole Porter, com a seguinte inscrição: Mad About the Boy (que é, diga-se, uma canção de Cole Porter, que a Billie Holliday até cantou - cantou, não cantou? Acho que sim).
Bom. Esta oferta da cigarreira não é terrivelmente importante no filme, mas eu acho que quer dizer muita coisa. O amor desta Norma foi completamente desperdiçado no jovem escritor, que não a suporta, apesar de não ser má pessoa. Quando a Norma lhe dá a cigarreira, com a declaração de amor "Mad About the Boy", é quase uma humilhação. É daqueles momentos do filme que eu vejo e não consigo evitar ficar envergonhada pela Norma. Sinto-me mesmo mal.
Isto faz-me pensar que o amor, de facto, é um sentimento terrível. Se é recíproco, belas e queridas confissões como "Mad about the Boy", I love you e quejandos enchem-nos de alegria, de uma felicidade profundíssima, inacreditável. Mas alguém a quem não conseguimos corresponder vem com estas coisas, Mad about the Boy, I love you e quejandos, e sentimo-nos tão mal, tão envergonhados, não por nós, mas pelo outro - quase com pena. Sentir pena de alguém é uma coisa abjecta, é o pior sentimento que se pode ter, pior que o ódio, acho eu. Acho que não odeio ninguém, mas entre odiar alguém e ter pena, preferia odiar.
E, portanto, quando a Norma oferece o tal Mad About the Boy inscrito na linda cigarreira de prata ao escritor que não quer saber dela, sentimos pena da pobre actriz. Aliás, o filme está muito bem conseguido porque, entre outras coisas, o espectador apercebe-se perfeitamente de que aquilo que o tal escritor sente por Norma não é nada mais do que pena, pena, pena, apenas acentuada com presentes e dinheiro e cigarreiras e Coles Porters.
Grande filme, Sunset Boulevard. Espero nunca sentir pena de ninguém. Batam-me na cabeça se isso acontecer.
4 comentários:
Este filme deixa-me um pouco louco. É sem dúvida dos melhores que me passaram pela frente. Mas acho que já falámos sobre isso. Vim só comunicar-te que (se calhar até sabes, mas enfim) o Montgomery Clift era a escolha original para o papel do escritor, mas depois acabou por recusá-lo, já não sei porquê.
Agora, a questão é: como é que um dos melhores filmes de sempre poderia ser ainda melhor? Tendo o Monty lá no meio, claro está.
(Li algures que se estava a pensar fazer um remake do Sunset Boulevard. É razão para sentirmos uma pontinha de medo. Não há como a Gloria Swanson, não há.)
É razão para sentirmos muito medo, mesmo. Não há como a Gloria Swanson, pois não há. quem é que eles vão arranjar para o papel? A Liza Minelli?
O Monty teria ficado muito bem neste filme, admito que sim senhora. Mas o William Holden também se saiu muito bem; ainda por cima, ele sabia que era segunda escolha e já era, na altura, um tanto ou quanto has-been; enfim, por acaso gosto bastante dele no Sunset Blv, mas a verdade é que adoro todos os actores deste filme (menção especial para Erich von Stroheim por razões óbvias, não é - mistura perfeita de ficção e realidade).
Ainda estou à espera de um post, desta feita no Mictório, sobre o Sunset. :)
Eu ouvi falar na Glenn Close, que faz de Norma no musical, mas não sei.
Quanto ao post, terei que revê-lo. Não o vejo há mesmo muito tempo. Curioso. Tenho mesmo que revê-lo. :)
A Dinah Washington tem uma versão de morte da Mad About the Boy, que eu associo sempre ao Crepúsculo dos Deuses.
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