segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ir ao dentista não compensa


Pelo que percebo, o conceito de "ir ao dentista" mudou muito. Em primeiro lugar, vai-se lá e o dentista já é da nossa idade, ao invés de um simpático dinossauro, que era o que normalmente acontecia quando éramos pequenos. Portanto, a coisa começa logo mal porque a pessoa sente-se imediatamente velha.
Segunda mudança, abrupta e terrível, pelo menos para mim: depois de horas sentada numa cadeira ingrata, com um jacto de luz boca adentro, dentição bem exposta e vulnerável, sorrio ao pensar na minha merecida, e opípara, recompensa: "coma gelados, Rita, coma muitos gelados nas próximas horas, para o dente ir mais ao sítio". De facto, acho que a razão pela qual eu nunca chorava quando ia ao dentista, em pequena, era porque no fim, quase invariavelmente, o simpático dinossauro dizia: "e agora tem de ir comer um gelado". E eu lá saía do consultório, com a minha mãe rendida à evidência de que, naquele dia, dois gelados de seguida seriam com certeza permitidos: primeiro, chocolate e caramelo, segundo, chocolate e baunilha (isto já sou eu perdida em sonhos; gelado sim, mas só um - chocolate e caramelo, pronto. O segundo gelado de enfiada só existe mesmo na minha cabeça).
Ora acontece que hoje em dia a tal recompensa já não existe. Está para lá uma pessoa sentada, em grande sofrimento e angústia nervosa, a torcer as mãos enquanto o dentista assegura que nada vai doer (e, de facto, raramente dói, mas a parafernália de instrumentos aguçados que por ali se vêem mais parecem vindos do consultório do Dr Mengele do que outra coisa, estimulam todo o tipo de tenebrosos pensamentos), dizia, depois de tal esforço penoso, que é da recompensazinha, que é do doutor a dizer-nos, "e agora vá comer gelados, coma muitos gelados", que é da nossa satisfação, completamente permitida e legítima de, ao menos uma vez, comer gelado até fartar porque o médico assim o exige, e não a nossa gula que tantas vezes nos deixa ficar mal? Eu respondo. Essa satisfação, a recompensa, não existe, porque os dentistas, com as modernices dos nossos tempos, já não consideram necessário ir comer gelados. Agora a moda é responder, à nossa inocente pergunta "e então o que é que eu posso comer hoje, doutor?", "esteja à vontade, tenha só cuidado a trincar, porque de resto é fazer vida normal".
"Vida normal". Que expressão curiosa e tão pouco útil, esta, "fazer vida normal". Se eu vou ao dentista para depois vir de lá a "fazer uma vida normal", mais vale não ir a nenhuma consulta, já que "fazer uma vida normal", que foi o que me levou ao dentista em primeira instância. O que é que custa ao dentista dizer para a gente ir comer um geladinho, que faz bem ao dente?
Eu decidi que, ainda que o meu dentista não me diga para comer gelados, eu comê-los-ei à mesma, porque sou uma pessoa com apego às tradições. Vivemos numa sociedade muito desiludida e insensível, e eu sou daquelas pessoas que quer manter viva a criança que há em mim, de modo que o que eu defendo é que, mesmo com sacrifício, se coma um gelado depois de se sair do dentista. É o que farei hoje, ainda que um cremoso gelado Strawberry Cheesecake com pedaços de bolacha e suave molho de morango não me esteja a apetecer mesmo nada e que vá fazer muito sacrifício para comer uma bolinha que seja.

1 comentário:

Pedro disse...

Adorei ler este post enquanto comia um gelado depois de ir à dentista.
Ela também falhou e não me mandou comer gelados, mas a caminho de casa na volta nao falhou :)