terça-feira, 8 de setembro de 2009

Historia do olho


Continuo sem acentos - aviso a navegacao.
O meu pai diz que ha duas maneiras de se ver um filme: com os olhos da cara ou com o olho do cu (o meu pai inventou esta teoria quando eu lhe disse que nao tinha gostado de um filme que ele, por acaso, tinha apreciado muito. E claro que, segundo ele, quem nao tinha visto o filme com os olhos da cara era eu). Adiante. Aquilo que o meu pai diz dos filmes tambem se aplica aos livros, que podem ser lidos com os olhos da cara ou com o do traseiro (sejamos um tanto ou quanto delicados relativamente a designacao de determinadas partes da anatomia humana que, por muito alivio que possam trazer, arriscam igualmente alguma deselegancia). Por exemplo, um livro que eu adoro, adoro, adoro e li repetidas vezes e Rebecca, de Daphne du Maurier. Na edicao inglesa, pode ler-se na afterword de Sally Beauman:
Rebecca, from the time of first publication, has been woefully and wilfully underestimated. It has been dismissed as a gothic romance, as "women's fiction" - with such prejudicial terms giving clues as to why the novel has been so unthinkingly misinterpreted. Re-examination of this strange, angry and prescient novel is long overdue.
Eu propria, numa primeira e superficial leitura de Rebecca, pensei tambem tratar-se de um pequeno romance-pipoca, ainda que muitissimo atraente. Talvez por ser um livro tao facil de ler, e este e um erro que, quanto a mim, se comete amiude - quando algo e facil de ler, o leitor mais intelectualoide e inseguro, que usa o olhinho do rabiosque quando deveria usar os dois que tem na cara, torce o nariz. E mais compensador ler Wasteland e perceber alguma coisa daquilo, a todos os niveis (socialmente, fica melhor poder anunciar publicamente que lemos TS Eliot, ao inves de Daphne du Maurier).
Longe de mim querer comparar Rebecca e Wasteland. O que afirmo e que ambos sao igualmente bons, em patamares diferentes. Nao se deve ter medo daquilo que e facil, ou banal. Um livro facil nao tem de ser mau, um livro dificil nao e necessariamente bom (se a leitura se tornar impossivel, o livro sera ate, pura e simplesmente, mau). Ainda recentemente vi uma exposicao de Jeff Koons (vide foto), onde se informava o espectador que o "artista" gostava de obrigar as pessoas a reflectir sobre a arte e sobre o preconceito que o mundo artistico dissemina em relacao a fruicao daquilo que e banal. O que e banal esta mal.
Nem sempre. O facil, o banal, a simplicidade, podem encerrar tanta beleza como a sofisticacao e a complexidade do que e dificil. Apenas temos de usar os olhos da cara mais do que o do cu, como diz o meu pai, que tem sempre muita razao. A arte e como o sol, quando nasce e para todos.

2 comentários:

JB disse...

Confesso que continuo a ter alguns posts do Rua da Abadia em atraso, mas este seduziu-me pelo título e pela imagem. «Bataille e Koons? Hum, deixa cá ver isto rapidamente», pensou o Zé.
Não li o Rebecca. Se for o romance que deu origem ao filme, estou a favor. O Rebecca continua a ser o meu filme preferido do Hitchcock, crucifiquem-me se quiserem, que eu cá sou meio masoquista e tudo. Tenho andado para rever o Vertigo. Cheira-me que amá-lo-ei à segunda visualização, e depois talvez reavalie as minhas prioridades.
Curioso falar no Hitchcock. O Hitchcock é um dos realizadores mais amados de sempre, e eu gosto imenso também, confesso, mas é uma das minhas escolhas-pipoca. O que quero dizer é: certos tipos querem desanuviar, vêem o Spiderman, ou lêem ficção científica ou o último da Guida. Eu vejo um Hitchcock. Com todo o génio que ali há, e que reconheço, não deixa de ser um dos meus realizadores-pipoca, no sentido em que é a ele que recorro quando quero ser divertido.
E agora um tipo intelectualóide que pensa com o olho do cu gritaria:
«Heresia!»
Mas é precisamente o contrário. Eu gosto tanto do Hitchcock precisamente porque é um dos meus realizadores-pipoca de eleição. Acho que as coisas-pipoca são subvalorizadas. Há as muito boas, como ambos sabemos.

No meu exame final na cadeira de arte norte-americana, no ano passado, acabei por escrever umas quantas páginas acerca do Koons, especialmente da sua série de obras visando a sua pessoa e a da Cicciolina. E isto não tem grande relevância para a conversa, mas lembrei-me, e por isto referi-o. Não é que goste muito do Koons, mas parece-me um fenómeno curioso, e acho piada que muitos «amantes de arte» (que devem amar com o olho do cu, também) se revoltem tão intensamente contra ele, e não entendam que aquilo é uma piada. O Koons sabe que a pipoca vale a pena, e por isso tem o meu voto.

Woman Once a Bird disse...

Nunca vi o filme, mas li o livro e achei-o soberbo, na altura (li-o à saída da adolescência e entretanto perdi-o de vista).