terça-feira, 29 de setembro de 2009

Conhece o teu inimigo

Hoje, vinha no carro a ouvir a versão de Abandono do Projecto Amália Hoje, e vinha também a pensar em várias coisas, desencadeadas principalmente pelo refrão (por teu livre pensamento, foram-te longe encerrar, tão longe que o meu lamento não te consegue alcançar - é um poema de estarrecer). Enfim, vinha a pensar na opressão, na ditadura e em inimigos e no facto de que ter um inimigo não é algo que se deseje, mas o que se pode desejar, sim, é conhecer o rosto do nosso inimigo, no caso de o termos. E é impossível não termos inimigos na vida, infelizmente - na geração anterior à minha, seria provavelmente a ditadura. As ditaduras são indefensáveis, e nunca me passaria pela cabeça escrever o que quer que fosse a favor de de um autoritarismo ditatorial mas, no entanto, quem lutava contra a ditadura lutava contra um rosto definido e bem conhecido, um alvo identificável. A minha geração tem dezenas de inimigos, todos eles sem rosto, todos eles mais escondidos e vagos, e portanto mais difíceis de atingir. O desemprego será, talvez, um dos mais claros inimigos das pessoas da minha idade, e das mais novas também. Porém, escondem-se por trás do desemprego uma série de inimigos, esses sim absolutamente ocultos e disseminados por todo o lado, de tal forma que é difícil lutar contra eles. Por exemplo, se eu um dia ficar desempregada, não duvido que haja imediatamente alguém que não só me diga que a culpa é inteiramente minha, como me apelide de preguiçosa e "subsídio-dependente" se tiver de recorrer ao subsídio de desemprego. Para certas pessoas, os responsáveis pelo desemprego são sempre os próprios desempregados, que, portanto, são os seus próprios inimigos e o caso morre ali, não havendo necessidade de se ir à procurar de restantes culpados.
Deixemos, porém, estes complicados raciocínios. Será talvez mais fácil concentrarmo-nos nos poucos inimigos aos quais conseguimos atribuir um rosto, uma identificação. Ao ler notícias escabrosas como esta, restam-me poucas dúvidas sobre a identidade desses inimigos. E, ao constatar o "pacote de medidas" implementadas para resolver a questão dos suicídios, as minhas dúvidas dissipam-se ainda mais.
E o meu lamento não pode, de facto, alcançar nada.


sábado, 26 de setembro de 2009

O absurdo desejo de chorar


Lembro-me, às vezes, talvez muitas, talvez demais, dos doces versos de Cesário e do seu "absurdo desejo de sofrer". Acho que compreendo Cesário, porque sou, às vezes, talvez muitas, talvez demais, assaltada por um absurdo desejo de chorar, motivado sabe-se lá porquê. Uma pessoa solitária, com as calças puxadas até meio da barriga, com um cinto inútil, sozinha, triste e feia, no intervalo de um concerto, que depois sai do espectáculo e caminha vagarosamente pela rua deserta e que, por qualquer razão, parece a encarnação mais irredutível e quase cruel da solidão - é um exemplo.
Ou então um senhor velhote, muito curvado, numa daquelas retrosarias muito antigas, com um sorriso no rosto, a atender as pessoas de calças, chinelos e camisola interior. A gente pensa que entrou na loja e que, por qualquer razão estranha e inaudita, o surpreendemos a vestir-se, mas não, é mesmo assim, é aquela a roupa que ele usa. E, na montra, há toalhas e peúgas e pijamas de homem de corte antiquado, que ostentam pequenos cartões que informam "Êste pijama é para quem pesar mais de 66 quilos" e "côr da moda. muito bonita." (a cor um beje chumbo, a lembrar hospital), e entretanto aos pés do pijama estão cintas e cuecas de senhora, umas às bolinhas de várias cores, e há outro cartãozinho, numa letra muito desenhada à menino de escola, que diz: "as cuecas da Mariquinhas, que as usava sempre às pintinhas". E dentro da loja continua o senhor curvado, sorridente, de camisola interior de alças, a dizer que nunca falha um voto, umas eleições. E a distância entre isto e o mundo maquilhado, das luzes artificiais, da boa-educação afectada e cortante dos cortes ingleses e das avenidas parece tão profunda, e os cortes ingleses todos onde vamos fazer compras parecem tão estúpidos.
Ou então é um pequeno gesto, como ir a uma loja comprar um objecto pequenino e insignificante, um lápis talvez, um bloco-notas, daquelas lojas onde se entra por acaso, e a senhora velhota que nos atende, de repente e porque pensa que estamos a olhar para o lado entretidos com qualquer coisa, ajeita com dedos esperançosos, como quem espera resolver um problema rapidamente, a cabeleira na cabeça pequenina, percebendo nós, pela primeira vez, que ela usa peruca, mas que isso não dá vontade de rir. Não dá mesmo vontade nenhuma de rir.
E portanto, de vez em quando, lembro-me de Cesário, e sinto um absurdo desejo de chorar, motivado sabe-se lá porquê.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Pessoa de raça peixeira

Foi com a campanha eleitoral, e mais propriamente há cinco minutos, que me apercebi de que há uma "raça" de pessoas em Portugal que tem sido ignorada e, provavelmente, bastante desrespeitada por não ter sido, sequer, reconhecida como "raça" e não ser alvo de qualquer protecção que a salvaguarde de ataques racistas. É que, de facto, e segundo aquilo que o Dr Paulo Portas me ensinou, além das pessoas de etnias que não a portuguesa, tais como os indivíduos de raça negra, ou indianos, ou pessoas da Europa de Leste, há uma outra "raça", provavelmente muito discriminada, a viver em Portugal, que são "as peixeiras". Há, precisamente, cinco minutos, apareceu o Dr Portas no telejornal a criticar o Dr Francisco Louçã (a profusão de títulos honoríficos neste post é a minha veia portuguesa a pulsar, que respeitinho é bonito, e quem tem estudos tem direito a ser doutor e pronto), dizia, o Dr Portas criticava o Dr Louçã, dizendo:
"As pessoas que trabalham com o peixe são trabalhadores como outros quaisquer e, quando vocês jantam bom peixe, alguém o arranjou. E é extraordinário o Dr Francisco Louçã dizer que não frequenta as peixeiras. E depois o racista sou eu!" (ispsis verbis, cortesia das novas tecnologias televisivas que permitem fazer pausa e pôr para a frente e para trás como se fosse no vídeo).
Fiquei, assim, elucidada sobre esta raça de pessoas que são as peixeiras, que são pessoas que se podem frequentar, pessoas que devem andar por aí em hordas, nos seus bairros, nas suas casas, e que se definem por aquela raça de ser humano que trabalha com o peixe. Mas não vale a pena encetar qualquer campanha tipo SOS Racismo, ou Todos Diferentes, Todos Iguais, porque também fiquei esclarecida sobre isso - as pessoas peixeiras são trabalhadores como outros quaisquer. Deve ser por isso que não devemos ser racistas e devemos ir frequentá-los.
Esta campanha eleitoral tem-me ensinado tanta coisa, tanta coisa, que eu até estou aturdida. É que é muito triste viver num país e perceber que há estas raças de pessoas que cá vivem cuja existência eu desconhecia. Nós a pensar que conhecemos um país e depois é isto.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Uma ficção eleitoral

Se eu por acaso fosse escritora, escreveria sobre um homem que vai votar, no dia das eleições, e está até ao último minuto para se decidir, de tal modo que está já com o boletim de voto na mão e mesmo assim não sabe, a decidir, a decidir, e depois põe a cruz no partido X, vai à urna, o papel escorrega lá para dentro a muito custo, e de repente o homem muda de ideias e quer à força que abram a urna para sacar o seu papelinho, que com certeza será fácil de identificar porque foi o último a cair para o monte, mas não o deixam, e ele lá vai para casa muito agastado, e depois vem a descobrir que o partido vencedor venceu por um único voto apenas, um simples e insignificante votinho. O homem sente-se muito mal, cheio de remorsos, afinal devia ter votado no partido Y, e agora se alguma coisa acontecer a culpa é dele, a culpa é toda dele, de tal forma que os meios de comunicação social passam a entrevistá-lo de cada vez que algo nefasto acontece no país, os impostos, os escândalos, a corrupção, tudo por sua culpa exclusiva, o homem a arranjar justificação atrás de justificação, mas sem nada que o justifique, o remorso a crescer, a culpa, o homem já cheio de olheiras e sem dormir, se é Verão há incêndios, se é Inverno há cheias, se não fosse o seu voto eram outros no lugar do Governo a endireitar o país, mas ele votou e estragou tudo, e continua no seu sofrimento até que vêm outras eleições. E o homem vota no partido Y. E descobre que o partido X voltou a ganhar, mas apenas por um voto, um único e mísero voto, que não foi o seu, e é a completa redenção. Os meios de comunicação social passam a entrevistar um outro homem, outro qualquer, outro que podia ser ele, outro homem que também não consegue dormir, se é Verão há incêndios, se é Inverno há cheias, os escândalos, a corrupção, tudo por causa do seu insignificante voto. O primeiro homem dorme descansado. O segundo homem morre de remorsos.
E vêm novamente as eleições. O partido X volta a ganhar por um voto. O segundo homem dorme descansado. O terceiro homem morre de remorsos.
E assim sucessivamente.

Problemática do Blogger Hipotético

Gosto imenso quando as pessoas me dizem "eu vou-te ser sincero/a", porque me parece comovente que alguém acredite, pelos vistos convictamente, na sua sinceridade, fazendo-me também, com tal candura, aceitar tal sinceridade.
Ora, eu vou também ser sincera para com as dignas pessoa que eventualmente lerão este post, apenas para dizer que sei que a série que encetei aqui no bloguezito designada por "Melhor Blogger Hipotético" não tem sucesso nenhum. Sei que não tem, embora não seja pelo facto de não ter comentários (há muitos posts aqui que não têm comentários, de modo que a ausência de reacção ao Blogger Hipotético não é novidade). Não tem sucesso porque a falta de comentários ao Blogger Hipotético não corresponde ao meu entusiasmo quando escrevo os posts. É dos posts que mais gosto de escrever, mas nunca ninguém liga nenhuma; nem mesmo os meus amigos, quando episodicamente vêm aqui ler a minha querida Rua, alguma vez produzem qualquer tipo de comentário ou crítica ao Blogger Hipotético. Passa-lhes completamente ao lado, o que me deveria obrigar a tirar as devidas ilações, e lá devidamente tiradas elas estão, mas eu prefiro ignorá-las.
Como me diverte muito, vou continuar a minha série de Blogger Hipotético, embora, e com as devidas distâncias, tenha a consciência de que começa a assemelhar-se àquelas séries de TV tipo Lost, que ninguém já tem pachorra para aturar (nem eu própria, apesar de todas as razões estéticas que me deveriam levar a ver o Lost). Um possível candidato será o marido de Virginia Woolf, o Leonard. Imagino-o um pobre homem (sei que não foi pobre homem nem homem pobre), aristocrata algo fleumático (que forma tão original de se descrever um inglês) convertido em dona de casa, a tentar dar algum sentido ao mar de depressão em que a mulher se afundava (a culpa não é da Virginia, claro - pensei que o Leonard a poderia tratar por "Ginny", eh eh). Mas ainda não sei bem como "abordar" a personagem.
Veremos. Pode ser que mude de ideias e escolha outra pessoa.
Foi este o meu momento de sinceridade. Acabou aqui.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ir ao dentista não compensa


Pelo que percebo, o conceito de "ir ao dentista" mudou muito. Em primeiro lugar, vai-se lá e o dentista já é da nossa idade, ao invés de um simpático dinossauro, que era o que normalmente acontecia quando éramos pequenos. Portanto, a coisa começa logo mal porque a pessoa sente-se imediatamente velha.
Segunda mudança, abrupta e terrível, pelo menos para mim: depois de horas sentada numa cadeira ingrata, com um jacto de luz boca adentro, dentição bem exposta e vulnerável, sorrio ao pensar na minha merecida, e opípara, recompensa: "coma gelados, Rita, coma muitos gelados nas próximas horas, para o dente ir mais ao sítio". De facto, acho que a razão pela qual eu nunca chorava quando ia ao dentista, em pequena, era porque no fim, quase invariavelmente, o simpático dinossauro dizia: "e agora tem de ir comer um gelado". E eu lá saía do consultório, com a minha mãe rendida à evidência de que, naquele dia, dois gelados de seguida seriam com certeza permitidos: primeiro, chocolate e caramelo, segundo, chocolate e baunilha (isto já sou eu perdida em sonhos; gelado sim, mas só um - chocolate e caramelo, pronto. O segundo gelado de enfiada só existe mesmo na minha cabeça).
Ora acontece que hoje em dia a tal recompensa já não existe. Está para lá uma pessoa sentada, em grande sofrimento e angústia nervosa, a torcer as mãos enquanto o dentista assegura que nada vai doer (e, de facto, raramente dói, mas a parafernália de instrumentos aguçados que por ali se vêem mais parecem vindos do consultório do Dr Mengele do que outra coisa, estimulam todo o tipo de tenebrosos pensamentos), dizia, depois de tal esforço penoso, que é da recompensazinha, que é do doutor a dizer-nos, "e agora vá comer gelados, coma muitos gelados", que é da nossa satisfação, completamente permitida e legítima de, ao menos uma vez, comer gelado até fartar porque o médico assim o exige, e não a nossa gula que tantas vezes nos deixa ficar mal? Eu respondo. Essa satisfação, a recompensa, não existe, porque os dentistas, com as modernices dos nossos tempos, já não consideram necessário ir comer gelados. Agora a moda é responder, à nossa inocente pergunta "e então o que é que eu posso comer hoje, doutor?", "esteja à vontade, tenha só cuidado a trincar, porque de resto é fazer vida normal".
"Vida normal". Que expressão curiosa e tão pouco útil, esta, "fazer vida normal". Se eu vou ao dentista para depois vir de lá a "fazer uma vida normal", mais vale não ir a nenhuma consulta, já que "fazer uma vida normal", que foi o que me levou ao dentista em primeira instância. O que é que custa ao dentista dizer para a gente ir comer um geladinho, que faz bem ao dente?
Eu decidi que, ainda que o meu dentista não me diga para comer gelados, eu comê-los-ei à mesma, porque sou uma pessoa com apego às tradições. Vivemos numa sociedade muito desiludida e insensível, e eu sou daquelas pessoas que quer manter viva a criança que há em mim, de modo que o que eu defendo é que, mesmo com sacrifício, se coma um gelado depois de se sair do dentista. É o que farei hoje, ainda que um cremoso gelado Strawberry Cheesecake com pedaços de bolacha e suave molho de morango não me esteja a apetecer mesmo nada e que vá fazer muito sacrifício para comer uma bolinha que seja.

sábado, 19 de setembro de 2009

Elogios na sapataria


Desconfio sempre de elogios. Quer dizer, gosto muito que me elogiem, mas a questão é que a veracidade do elogio me suscita muitas dúvidas. Sempre que recebo um elogio, começo a pensar nos motivos ulteriores que o motivam. A sinceridade nunca é um desses motivos - que razão terá alguém em elogiar outra? Eu só elogio quando quero algo em troca, e não tenho razões para pensar que as coisas se processem de modo diferente com as outras pessoas.
Continuando. O melhor elogio que recebi até hoje foi numa sapataria no chamado "estrangeiro". Estava com uma amiga minha num destino turístico a comprar sapatos, em amena cavaqueira com o senhor dono da livraria, e de repente diz-nos eles, também "em estrangeiro": "ai meninas, vocês são tão bonitas, parecem vindas de um filme do Almodovar!". Até hoje, este elogio ecoa na minha mente - pareço vinda de um filme do Almodovar. Que pinta.
Decidi partilhar este elogio com uma pessoa cuja opinião eu prezava. Mandei uma chamada SMS a dizer-lhe, "olha, dizem que eu pareço uma actriz vinda de um filme do Almodovar", à qual a resposta foi "as actrizes do Almodovar são todas travestis, não são?". Há gente mesmo estúpida.
Os elogios não interessam a ninguém.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O cinzento e o branco

Eu acho que o coração se divide em três partes: as pessoas de quem gostamos, as pessoas de quem não gostamos e as pessoas que nos são indiferentes.
No entanto, tenho uma amiga que discorda profundamente da forma como o meu coração está dividido. Diz ela que o seu coração tem uma parte branca, para o amor, uma parte negra, para o ódio, e uma parte (uma grande parte) cinzenta, quase a tocar no amor, mas que não é bem amor. Esta parte cinzenta pode, porém, ser muito perigosa, pois se a parte branca é reservada ao namorado, a parte cinzenta rserva-se sabe-se lá para quem. O que pode fazer perigar a imaculada parte branca. Não sei se me estou a fazer entender.
Fiquei a pensar nisto. Aliás, tenho pensado nisto há imenso tempo, meses, mas ainda não tinha escrito nada sobre o assunto porque, primeiro, arrisca-se à lamechice, que é coisa que me enerva, segundo, até recentemente não tinha acentos no teclado e isto não é matéria que aguente um post sem acentos. Como agora já tenho acentos, já posso escrever sobre o que me apetecer, "encetando todos os esforços" (que belíssima expressão) para fugir à horripilante lamechice fofinha e queridinha, que é verdadeiramente aquilo de que falamos quando falamos de amor (oh, que referência tão bem enxertada, não me venham dizer que não - estou a brincar).
Bom. Dizia eu. Fiquei a pensar na tal parte cinzenta do coração, e na forma como é possível olharmos para alguém e pensar que não estamos apaixonados, mas podíamos perfeitamente estar. E a consciência dessa possibilidade é clara como a água. Então, qual é a diferença entre estar apaixonado e saber que é perfeitamente possível, em abstracto, apaixonarmo-nos por uma pessoa específica? E mais, quando isto acontece, o que fazer à parte branca do coração, aquela que, pelos vistos, se reserva para aqueles por quem estamos verdadeiramente apaixonados? Será que a parte cinzenta contamina necessariamente a parte branca? E indo ainda mais longe, se a parte cinzenta não contaminar a branca, será que justifica e desculpabiliza aquilo que com tanto desprezo apelidamos de "traição"?
Este post está desnecessariamente complicado. Nem eu própria sei se compreendo o que escrevi, com tanto colorido (estranhamente monocromático) à mistura. Mas para bom entendedor, meia palavra (ou até muitas) basta, não é verdade? É.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A importância da pastilha Gorila


As maravilhosas férias de Verão, maravilhosas sobretudo por serem férias, e que já acabaram, embora eu não esteja minimamente preparada para outro ano de trabalho devido a uma preguiça intrínseca, deram-me um tempo precioso para me embrenhar em alguma da literatura norte-americana que queria pôr em dia, nomeadamente sulista; infelizmente, e porque o tempo não é infinito e porque fiz outras coisas nas férias além de ler, só me embrenhei até aos joelhos e não da cabeça aos pés, mas enfim, embrenhar-me até aos joelhos rendeu o suficiente para ler Truman Capote (magnífico primeiro romance, sobre o qual escrevi abaixo) e, fundamental e finalmente, O Som e a Fúria, de William Faulkner.
É impossível não admirar este livro. É também impossível não o considerar dificílimo de ler, pelo menos quando o lemos pela primeira vez. As primeiras narrativas são um teste à capacidade do leitor de conseguir agregar narrativas e torná-las discursos inteligíveis - e sim, eu já sabia, antes mesmo de começar a ler, que a primeira narrativa provinha do doce e abandonado Benjy, atrasado mental. O que torna, porém, este Som e Fúria magnífico é a forma como recompensa o leitor. Quando a leitura se aprofunda, e toda a história, triste e desiludida, começa finalmente a fazer sentido, é quase uma epifania. É como se nos estivessem a dar uma pastilha Gorila, um chupa-chupa, um Epá, qualquer coisa que comprove e premeie o nosso esforço. E, a partir daí, podemos verdadeiramente apreciar a escrita furiosa.
Gosto de livros que recompensam o leitor. A principal razão de gostar tanto de Lobo Antunes foi, precisamente, a sensação de revelação que sentia ao ler aquela narrativa fragmentada e finalmente chegar ao ponto de agregação total, em que todas as personagens e toda a história começam finalmente a fazer sentido. Cada livro de Lobo Antunes era uma corrida ansiosa para ganhar a pastilha Gorila, e como sabia bem mastigar a pastilha depois de a termos merecido...
Falo de Lobo Antunes porque quem, como eu, o leu antes de ler Faulkner, reconhece imediata e claramente a influência do segundo sobre o primeiro. Faulkner é a matriz a que Lobo Antunes foi beber, o que, aliás, este escritor nunca negou. No entanto, o último livro que li de Lobo, Não Entres Tão Depressa..., não me deu nenhuma pastilha Gorila, o que me entristeceu bastante. Pela primeira vez, senti que a escrita densa, hermética, as personagens isoladas e fechadas em si nunca se abriram e se tornaram claras como a água, como acontecera nos romances anteriores que eu lera. A escrita hermética permaneceu exactamente isso, hermética, um muro à minha frente, e por mais que admire a complexidade da escrita de Lobo, isso não me faz necessariamente gostar de um livro que se recusa a abrir. Ou talvez seja eu que não o saiba abrir.
Enfim. Isto para dizer que, na escrita e na leitura, tal como no jardim infantil, a pastilha Gorila é fundamental.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Entourage


Sou fã, fã, fã desta série, desta Entourage. Não sei explicar muito bem porquê - é das séries mais misóginas que já vi, não tem nenhuma espécie, nem intenção, de conteúdo social ou interventivo, e trata da vida de quatro semi-rufias de Nova Iorque que se mudam para Los Angeles - um que é uma estrela de cinema, Vicent Chase, e os outros, três amigos que constituem a sua "entourage", que vivem às suas custas.
Mas Entourage é soberba. Infelizmente, o facto de não conter nenhuma personagem feminina que sirva um propósito pouco acima do decorativo não me incomoda de todo. A série é divertidíssima, e vale pelos diálogos irresponsáveis, a descontracção das personagens, e fundamentalmente, quanto a mim, pela interpretação exagerada e magnífica de Jeremy Piven (o agente aceleradíssimo Ari Gold, em permanente estado de raiva, incansável, absolutamente manipulador e sem um pingo de escrúpulos) e Kevin Dillon, no papel de Johhny Drama, irmão de Vincent e actor falhado, dado a exageros de toda a espécie e com um claro problema do chamado "anger management".
Depois, há uma série de pormenores que fazem de Entourage uma pérola. O genérico impecável, epíteto do cool, a começar desde logo na cançãozinha dos Jane's Addiction e passando pela matrícula orgulhosamente nova-iorquina do carro dos quatro amigos, enquanto se passeiam por Los Angeles; cameos em cada episódio; o facto de fazerem pouco (gosto desta expressão) de Britney Spears, de forma mais ou menos subtil (começaram logo na temporada 1, e continuam - estamos na temporada 6). A forma como retratam a indústria de Hollywood - infantil, egoísta, ridícula, caprichosa, povoada por personagens absurdas para qualquer adulto minimamente razoável. Os únicos que, de alguma forma, se mantêm incólumes face a um sistema tão bizarro são, curiosamente, o inocente Vicent Chase e os seus fiéis amigos.
Enfim - gosto. E não estou sozinha, porque ouvi dizer que há outra pessoa neste mundo que também gosta muito destes rapazes, e que por acaso até se chama Barack Obama, toma-toma.
Nunca tenho saudades nenhumas de Portugal, mas confesso que o teclado com acentos já começáva a fazêr fálta. Múíta fálta.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Historia do olho


Continuo sem acentos - aviso a navegacao.
O meu pai diz que ha duas maneiras de se ver um filme: com os olhos da cara ou com o olho do cu (o meu pai inventou esta teoria quando eu lhe disse que nao tinha gostado de um filme que ele, por acaso, tinha apreciado muito. E claro que, segundo ele, quem nao tinha visto o filme com os olhos da cara era eu). Adiante. Aquilo que o meu pai diz dos filmes tambem se aplica aos livros, que podem ser lidos com os olhos da cara ou com o do traseiro (sejamos um tanto ou quanto delicados relativamente a designacao de determinadas partes da anatomia humana que, por muito alivio que possam trazer, arriscam igualmente alguma deselegancia). Por exemplo, um livro que eu adoro, adoro, adoro e li repetidas vezes e Rebecca, de Daphne du Maurier. Na edicao inglesa, pode ler-se na afterword de Sally Beauman:
Rebecca, from the time of first publication, has been woefully and wilfully underestimated. It has been dismissed as a gothic romance, as "women's fiction" - with such prejudicial terms giving clues as to why the novel has been so unthinkingly misinterpreted. Re-examination of this strange, angry and prescient novel is long overdue.
Eu propria, numa primeira e superficial leitura de Rebecca, pensei tambem tratar-se de um pequeno romance-pipoca, ainda que muitissimo atraente. Talvez por ser um livro tao facil de ler, e este e um erro que, quanto a mim, se comete amiude - quando algo e facil de ler, o leitor mais intelectualoide e inseguro, que usa o olhinho do rabiosque quando deveria usar os dois que tem na cara, torce o nariz. E mais compensador ler Wasteland e perceber alguma coisa daquilo, a todos os niveis (socialmente, fica melhor poder anunciar publicamente que lemos TS Eliot, ao inves de Daphne du Maurier).
Longe de mim querer comparar Rebecca e Wasteland. O que afirmo e que ambos sao igualmente bons, em patamares diferentes. Nao se deve ter medo daquilo que e facil, ou banal. Um livro facil nao tem de ser mau, um livro dificil nao e necessariamente bom (se a leitura se tornar impossivel, o livro sera ate, pura e simplesmente, mau). Ainda recentemente vi uma exposicao de Jeff Koons (vide foto), onde se informava o espectador que o "artista" gostava de obrigar as pessoas a reflectir sobre a arte e sobre o preconceito que o mundo artistico dissemina em relacao a fruicao daquilo que e banal. O que e banal esta mal.
Nem sempre. O facil, o banal, a simplicidade, podem encerrar tanta beleza como a sofisticacao e a complexidade do que e dificil. Apenas temos de usar os olhos da cara mais do que o do cu, como diz o meu pai, que tem sempre muita razao. A arte e como o sol, quando nasce e para todos.