A BBC News tem um artiguinho interessante acerca do crescente narcisismo da juventude, e de como uma auto-estima exagerada não conduz necessariamente ao sucesso, acabando até por ser contra-producente. Faz-se um estudo interessante sobre pronomes pessoais, dizendo-se que se tem revelado uma tendência para os usar cada vez mais em número singular (eu e respectivas declinações), e cada vez menos em número plural (nós e respectivas declinações). Também se diz, a certa altura:
Num país em que se fala tanto dos portugueses que gostam de viver acima das suas possibilidades, teremos de confessar que a afirmação acima é um tanto ou quanto verdade. Não que eu defenda esta tese parva de que todos os portugueses, tradicionalmente pobres e com vidas difíceis, tenham vivido anos que nem burgueses rotundos, mas parece-me porém verdadeiro que temos uma certa tendência para o espalhafato e para gastar dinheiro em carros e telemóveis que não podemos pagar. E isto constata-se igualmente na minha geração, que deveria ser mais esperta do que a anterior, mas não é. Creio que as pessoas da minha idade, como já li algures, foram as primeiras depois do 25 de Abril a usufruir de um verdadeiro conforto material, aproximado da classe média americana - frigoríficos a abarrotar de Coca-Cola, despensa com bens inúteis e de terceira ou quarta necessidade tipo bolachas recheadas ou batatas fritas sabor a presunto, pares de sapatos que se compram não porque os pés precisam de ser aquecidos, mas porque precisamos de usar "coisas bonitas", férias lá fora, televisão com séries a mostrar o mundo novo dos adolescentes anglo-saxónicos, com dinheiro no bolso para compras de impulso, universidade para as massas, e etc (atenção: estou a falar em geral). E talvez isto tenha contribuido para uma determinada pré-disposição face ao mundo, uma certa ideia de que é preciso trabalhar, sim, mas apenas q.b., porque nascemos com direito natural a determinado conforto, mercê da nossa espectacularidade inata.
Institivamente, porém, sabemos que as coisas não funcionam assim e que o mundo se está absolutamente a marimbar se nós cá estamos ou não. A geração que sucedeu a minha parece-me ainda pior nesta coisa do narcisismo (discurso à Velho do Restelo, eu sei), e isto porque estão ainda mais habituados a dinheiro, a conforto, a famílias mais pequenas em que eles são o centro, e qualquer tipo de esforço que se exija deles é uma espécie de ofensa à sua inexpugnável inteligência. Tão inexpugnável, na verdade, que às vezes a gente nem nota que ela lá está, mas isso é outra conversa.
Lembro-me de ter assistido a uma comunicação numa conferência em que uma académica chinesa estuvdava, precisamente, as diferenças de uso nos pronomes pessoais e de elogios antes e depois da política do filho único na China. A diferença era absolutamente impressionante - a geração pré-filho único tendia ao "nós" e agradecia elogios, ao passo que a geração pós-filho único tendia ao "eu" e recebia elogios como se estes fossem verdades insofismáveis - em vez do "obrigado", diziam "eu sei" em resposta, por exemplo, a um comentário como "essas calças ficam-te bem".
E não posso deixar de pensar que o artigo da BBC também poderia descrever, com alguma precisão, a proliferação de blogues, nomeadamente blogues das chamadas "fashionistas", que pululam em Portugal. Não me excluo disto, também tenho um blogue, e talvez haja de facto um certo narcisismo inerente a quem se dispõe a vir para a internet amandar bocas (expressão que eu adoro) ou falar da vidinha. Eu faço ambas as coisas, e portanto mea culpa, mas mesmo assim há casos piores do que o meu, em que a vida é toda ali escarrapachada, acompanhada por sapatos e malas e roupas, e toda a gente vive bem com isso, com esse excesso de auto-estima, esse exagero de exposição. E com o mal dos outros posso eu bem, como se diz na nossa querida língua portuguesa.
São vidas, pronto. A ler o artiguinho da BBC, porque esta coisa do narcisismo, parece-me a mim, há-de ter consequências bem nefastas, como teve, aliás, para o Narciso. Os Gregos é que sabiam, pá.
3 comentários:
Acho que faltam aí algumas coisas importantes, e vou dizer duas porque são as primeiras de que me lembro:
1. As novas gerações não acham que têm de trabalhar mas qb, muito pelo contrário. Eu por exemplo trabalho com algumas pessoas mais velhas do que eu mas acima de tudo muito com mais novas e a nova geração foi educada para o "trabalhar por objectivos mesmo que sejam completamente irrealista e só exequíveis sob total sacrifício da vida pessoal" e para a "isenção de horário" em que tal isenção significa que se sai às oito e se tem de dizer que sim se às sete e meia alguém nos pergunta se podemos marcar uma reunião rápida para dali a um quarto de hora. Eles não só não sabem como dizer que não como se sentem mal se disserem que não, porque acham que não estão a cumprir com o ideal de young professional muito motivado e apostado na sua carreira, uma coisa Sex&The City meets Wall Street.
2. Este foco no eu, e especialmente no "eu=consumidor", no "consumo, logo sou" não vem do nada, é uma cultura criada e mantida acima de tudo por aqueles que têm maior interesse nela. Mas o que me parece mais importante nos efeitos que tem no indivíduo não é o narcisismo, é a multiplicação de inseguranças e sentimentos de desadequação. Será que sozinha eu me lembrava de sentir gorda, feia, burra, pouco motivada, fora de moda, absolutamente necessitada de um telefone novo, sem estilo, com um cabelo impossível acerca do qual tenho rapidamente de fazer alguma coisa? Não são só os produtos de beleza, é também o discurso do empreendedorismo ou a culpabilização do desempregado que não se esforça, não se sabe vender, não faz o seu pitch - é um quadro geral.
Rita Maria, obrigada pelo comentário. Concordo com o segundo ponto, que é mencionado, até, no artigo (crédito fácil, ultra exposição aos media, culpabilização do desempregado, como refere, entre outros aspectos). Quanto ao primeiro ponto, não concordo muito, embora não negue que a geração mais nova tem um azar imenso no que toca ao mercado de trabalho e, infelizmente, tem cada vez mais de se sujeitar a um mundo de exploração inaceitável. Eu também trabalho muito com pessoas bastante mais novas do que eu, e a questão de terem de se sacrificar pelo trabalho e isenções de horário não me parece uma ideia com que tenham sido educados (e ainda bem). É algo que infelizmente muitos têm de aceitar, mas que não fez parte da sua educação e não faz parte da sua mentalidade. O ideal Sex and The City - Wall Street tem mais a ver, quanto a mim, com uma questão de estilo de vida, social e estético, que se quer atingir (nomeadamente ter muito dinheiro para gastar, e sublinho o gastar) e que foi inculcado artificialmente pelos media, sem que isso corresponda a uma visão do mundo em que o Eu deixa de ser o centro. Pelo contrário, reforça até essa visão.
Duas coisas, antes de terminar: o narcisismo não me parece afectar apenas os mais novos, mas todas as gerações que se habituaram a viver com crédito, consumo e conforto material fácil ; há algum tempo,saiu um artigo, penso queno NY Times (não o consigo encontrar agora), que referia que os alunos do secundário, habituados ao conforto da casa dos pais, não estavam dispostos a aceitar, no futuro, empregos em que fossem explorados, a ganhar pouco, a trabalhar longas horas. É evidente que o mundo real poderá corrigir isto, mas pode ser também que o narcisismo contribua para que as gerações mais novas se tornem exigentes, procurem alternativas ao sistema em que vivemos e de certa forma acabem por encontrar boas respostas para as ofensas laborais a que todos nós estamos sujeitos. Always look on the bright side of life, como dizem os Monty Python.
Rita
Parabéns. Serão também um pouco narcisistas, que acerca do Narciso grego penso o mesmíssimo que a Rita, era um bocado parvo. Com tanto que olhar em volta, logo lhe deu para se mirar a si mesmo. É dose de idioteira, convenhamos.
Infelizmente concordo em grande parte com o que disse das gerações mais novas em geral. E espero que dêem esse salto por cima à Monty Python; ficando provado que não são tão desprovidos de inteligência. Mas enquanto espero para ver, admito que a outra falange de jovens é mesmo explorada. Como afirma Rita Maria. Não creio que por não saber dizer não, mas por temer dizê-lo. Por estar a entidade empregadora neste momento em Portugal a criar uma hegemonia perigosa que aduba na escassez de emprego.
Oscilamos entre os que tudo querem e nada fazem, arrogando como direito o que seria conquista, e os que tudo fazem para não perder alguma coisa. Ainda assim, prefiro os segundos. Parece-me que o salto da inteligência pode ser ali. Mas pode que me engane e este seja um princípio de quem foi educado no preconceito de que o trabalho frutifica. Ainda que leve o seu tempo. Que os frutos instantâneos são do desenho animado.
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