quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

As razões que tenho contra o Acordo Ortográfico (ou: não gosto que me venham desarrumar a casa)

Em termos linguísticos, nada há que justifique o Acordo. Não interessa que venham hordas de linguistas e académicos e tentem justificar, com tantos argumentos quanto desejem, as razões linguísticas que tornam "leem" superior à grafia "lêem". A ortografia é uma convenção; se eu aprender que "leem" se escreve assim, com o acento circunflexo ausente, então pronto, é assim. Há certos casos que admitem de facto uma contra-argumentação absolutamente linguística, como "para" preposição e "pára" forma verbal, já que aqui sabemos que o acento é necessário e não se percebe que o eliminem, mas enfim, em geral a ortografia é de facto uma convenção e é assim que a aprendemos.
Alguns, contra o Acordo, brandem o critério etimológico e interrogam-se, como Pedro Mexia, sobre como explicar a uma criança que um "egípcio" é proveniente do "Egito". Eu compreendo, e até concordo, com o que diz Pedro Mexia, mas mais uma vez não é um critério etimológico que necessariamente rege a ortografia de qualquer língua - o que interessa é aprender a convenção, e se eu desde a primária me habituar à mesma, tanto faz escrever Egipto como Egito. Há critérios etimológicos, outros puramente fonéticos, que influem na ortografia, mas o verdadeiro critério, em países como Portugal, é a convenção que o Estado impõe, e esta é muito mais política do que linguística, diria até - exclusivamente política. Daí o argumento de que este Acordo torna a ortografia mais próxima da forma como as pessoas falam seja um tanto ou quanto espúrio (seria espúrio aplicado a qualquer ortografia). 
Daquilo que conheço do Acordo, e o meu conhecimento não é de todo exaustivo, tanto que tão cedo não faço tenção de respeitar a "ortografia" que ele impõe, há três coisas que saltam à vista e que me ferem o olhar. 
A primeira é que o Acordo não é necessário - a ortografia portuguesa antes do Acordo está longe de se assemelhar à ortografia inglesa, raramente modificada, e essa sim, bem menos fonética do que a portuguesa - night, right, knight, por exemplo. O que é que lá estão a fazer o dígrafo "gh" e o "k"? Nada, provavelmente, e no entanto é assim que se escreve e é assim que as pessoas escrevem, sem problema nenhum. Se a ortografia portuguesa nem sequer apresenta problemas (na falta de melhor palavra) semelhantes a este, porquê mudá-la? O Acordo também não é necessário no sentido de uma eventual aproximação ao Brasil - as diferenças sintácticas são bem mais flagrantes, e essas permanecerão. Não é com o Acordo que a língua portuguesa se torna universal - a língua portuguesa já é universal, em todas as suas pluralidades, diferenças, variedades. Há, por exemplo, algum português que leia bem um texto em português europeu e não consiga ler um texto em português brasileiro, e vice-versa? A haver dificuldades, aposto que provirão todas da sintaxe e vocabulário, e não da ortografia.
A segunda razão que me fere é a flexibilidade que os defensores do Acordo dizem que este último permite. Certas palavras (não sei quais são, penso as que têm "c" mudo, mas que às vezes pode não ser, como "aspecto" - as pessoas que pronunciam o "c" nesta palavra podem continuar a escrevê-lo, pelo que percebo), dizia, certas palavras podem escrever-se de forma diferente, dependendo da forma como as pessoas a pronunciam. Isto é  para preservar, lá está, o português e as suas variedades e para não ofender as pessoas, para elas pensarem que a sua língua ainda é delas. Acho que este argumento nem sequer precisa, ou merece, comentários, mas seria talvez bom que se atentasse no significado de "ortografia", já que o Acordo precisa tanto dela.
A terceira é que os falantes de qualquer língua, quer queiramos quer não, sentem sempre que a língua é propriedade sua, e têm com ela uma relação pessoal (mesmo que não seja necessariamente afectiva - é sempre pessoal). A não haver necessidade de se modificar a ortografia da língua, e eu creio que não há, e sabendo de antemão a sensibilidade que os falantes sentem em relação à língua materna, que é a nossa casa, porquê e para quê tentar arrumar a casa de outra forma? É exactamente a mesma coisa do que eu, quando tento re-organizar a estante - penso sempre que estou a fazer melhor e que vou ficar com uma estante toda profissional e moderna, e no entanto quando tento encontrar um livro fico de tal forma à nora que penso que o perdi. E nunca me consigo habituar, de tal forma que volto à ordem antiga. 
A língua não evolui, modifica-se. E, mesmo que evoluísse, não seria um acordo ortográfico que trataria da evolução. 
Obrigada a quem leu, e gabo-vos a paciência, já que se este texto não fosse meu, não sei se lia até ao fim. Daí reiterar os meus agradecimentozinhos, bem-haja, boa continuação, e disponham.

3 comentários:

Anónimo disse...

Li tudo e no essencial concordo.
Apenas chamar a atenção para um ponto:
não se pode confundir convencional com arbitrário. A ortografia é convencional - como a lei - mas não é arbitrária: há motivos históricos ou de ordem fonológica para que uma palavra tenha aquela e não outra grafia.

Rita F. disse...

Obrigada por ter lido até ao fim.

Não pretendi dizer que a convenção ortográfica é arbitrária. Há de facto critérios etimológicos e foneticistas que a podem reger, e referi alguns exemplos no texto. O que quis dizer é que a convenção não é exclusivamente linguística (cabendo aqui a etimologia e a fonética), e é, sim, eminentemente política. Em países como Portugal, em que o Estado se dá ao trabalho de legislar sobre a língua, pode perfeitamente haver uma lei que estabeleça que "lêem" se passa a escrever "leiem", por exemplo. Esta decisão não tem de ser justificada por critérios linguísticos, e muitas vezes não o é, de facto (alguns defensores do Acordo dizem, pura e simplesmente, que certas grafias introduzidas pelo mesmo acordo são melhores porque "mais fáceis"). Pode ser porque dá mais jeito ao Estado, política ou socialmente, adoptar uma certa grafia. É claro que, normalmente, a Academia pronuncia-se sobre isto e tem um palavra a dizer, mas em última instância é uma decisão política que impera, e não um critério exclusivamente linguístico.
E é mesmo assim, a língua é uma entidade política e social, não um sistema abstracto que paira acima dos falantes.
E pronto. Foi isto que quis dizer. Obrigada por ler até ao fim. :D

Bela Monstro disse...

Pois eu fico com uma sensação de alívio ao ler um texto desta qualidade acerca desta questão. Porque enraivece que venham "arrumar-me a casa de outra maneira". Se a casa também é minha eu deveria ter uma palavra a dizer. Mas acima de tudo, se a casa está arrumada e se os habitantes vivem perfeitamente nela, para quê toda esta azáfama de (des)arrumações? Raios os partam.