segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Razões pelas quais estou contente por persistir na releitura do Auto dos Danados

Como tudo na vida, há vantagens e desvantagens. Comecemos pelas desvantagens, que são:

1) "Como os corpos na morgue, a Ana embrulhava-se naa colcha na extremidade da cama, e o piaçaba dos cabelos emaranhados despontava da roupa. O pingo triste de cera de um calcanhar defunto tombava no chão"

2) "Edward G. Robinson observou de esguelha o pechisbeque enquanto contornava o capot. A pistola debruçava-se do sovaco como uma lágrima de um olho"

3) aquela sensação mais ou menos desconfortável, ou pouco original, de que estamos face a uma versão portuguesa do Som e a Fúria, mas no mau sentido, porque cada livro deve ser único; ainda que um livro faça lembrar outro, uma proximidade tão grande, ou uma inspiração tão pronunciada noutra obra, não é muito agradável para o leitor. Isto, a meu ver, claro.

Passemos às vantagens, que superam as desvantagens, como penso que este excerto demonstra amplamente:

"... e eu calei-me por prudência, absorvido no caminho, em lugar de dizer que se tratava de uma família nojenta de cabras e bois mansos a devorarem-se mutuamente no casarão do Guadiana, a sonegarem-se as heranças, a odiarem-se, a roubarem-se, a esmagarem-se, a destruírem-se, e tudo isto debaixo da boquilha e da pálpebra cáustica do avô, derramado na cadeira de baloiço da sala, a assistir numa alegria formidável à agonia da sua matriz, como se não suportasse que nada de seu sobrevivesse no fim..."

Safa. Nos Danados, há este efeito quase de espiral destruidora, que eu acho que Lobo Antunes consegue muito bem em certos livros, e em que se descobre mais e mais das personagens e da história, e é tudo cada vez mais estéril, horrível, desesperado. A estrutura da narrativa, fragmentada em várias vozes, vem de facto do Som e a Fúria, mas acaba, de uma certa forma, por compensar o leitor, porque o deixa em sofrimento absoluto ao ir descobrindo cada vez mais da força avassaladora de uma família em derrocada.
E depois há esta ideia central nos Danados, que explica o título do livro e também o verdadeiro sofrimento que provoca (pelo menos em mim, provoca): a destruição total que a família, como unidade primordial da sociedade (as sociologias e as economias dizem que sim) pode representar. Se há força que consegue dar tanta felicidade como também esterilidade total, por mais paradoxal que seja, é a família.
Agora estou a sentir-me um bocado mal. Vou ter de ficar por aqui. A ler o Auto dos Danados, que vale a pena, pá.

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